'Percursos da Memória': projeto resgata a história de locais ligados à ditadura militar no Ceará
No dia em que a Lei da Anistia completa 46 anos, o PontoPoder conta como funciona a iniciativa da Secretaria Estadual de Direitos Humanos
No dia 28 de agosto de 1979, João Baptista Figueiredo, último general a ocupar a presidência da República durante a ditadura civil-militar, assinou a Lei da Anistia, passo contundente rumo à redemocratização "lenta e gradual" — e que se consolidaria apenas uma década depois, com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, e as primeiras eleições diretas em 1989.
Entretanto, essa legislação também acabou por ser usada como "óbice ao processamento e apuração de graves violações de direitos humanos perpetradas pelos agentes da repressão durante a ditadura", com decisões judiciais compreendendo o "direito ao esquecimento" dos atos praticados por militares, como sequestros e torturas, conforme narra o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
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"É um passado muito recente nosso e que, durante muito tempo, ficou nesse lugar do silêncio. E dado esse lugar do silêncio, a cultura da ditadura permaneceu", resume Lúcia Alencar, orientadora do Eixo "Memória, Verdade, Justiça e Reparação" da Secretaria Estadual de Direitos Humanos (Sedih).
E se, há exatos 46 anos, a Lei da Anistia favoreceu o esquecimento quanto aos atos de violência institucionalizada cometidos pela ditadura militar, o Eixo "Memória, Verdade, Justiça e Reparação" segue agora exatamente o caminho inverso. "Falar disso é importante para se conhecer uma época, porque a gente precisa conhecer esse passado para que não se repita", reforça Lúcia.
Uma das iniciativas é o Percursos da Memória, projeto que desde 2017 percorre endereços vinculados ao regime militar em Fortaleza e no Ceará, como centros clandestinos de tortura e antigas prisões onde foram detidos perseguidos políticos. Estes espaços são chamados de "Lugares de Memória" e ajudam a contar um pouco da história do período ditatorial vivenciado pelo Brasil entre 1964 e 1985.
O PontoPoder acompanhou, no dia 19 de agosto, um desses percursos, realizado pela Secretaria de Direitos Humanos e que levou idosos vinculados ao Coordenadoria de Políticas Públicas para Pessoas Idosas da Sedih para conhecer um pouco mais sobre a história da ditadura militar no Ceará.
Lugares de Memória
A cartilha “Memória e Verdade”, lançada em 2025 pelo Ministério dos Direitos Humanos, define os lugares de memória como "espaços que preservam e reconstroem a história das violações e abusos durante regimes autoritários, como a ditadura militar". A nomenclatura segue orientação da Organização dos Estados Americanos (OEA) e é adotada por outros países sul-americanos, como Argentina, Chile e Uruguai, que também viveram ditaduras.
A criação destes lugares também atende a recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em mais um esforço de preservar a memória deste período de exceção no Brasil. No Ceará, a comissão apontou dez lugares de memória: nove localizados em Fortaleza e um situado em Maranguape.
Dois desses locais foram visitados pelo projeto "Percursos da Memória" realizado em agosto, ambos no centro de Fortaleza. O primeiro deles foi a 10ª Região Militar do Exército brasileiro. Na sequência, houve a visita a atual sede da Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor), que abrigou a Polícia Federal durante os anos da ditadura.
Os dois lugares — onde houve a detenção de presos políticos e onde há relatos de tortura a opositores do regime — tratam a história do período ditatorial de formas distintas. Antes do início do passeio, Lúcia Alencar explica que, na 10ª Região Militar, não é autorizada a visita às celas onde ficavam os presos políticos.
No local, foi visitado o Museu Brigadeiro Sampaio, onde existem peças traçando um pouco da história da infantaria e do Brigadeiro Sampaio, além de um pouco da história da Fortaleza Nossa Senhora da Assunção — que antes era chamado Forte Schoonemborch, e teve importância para a expansão da vila que se tornaria a cidade de Fortaleza.
Por outro lado, a Secretaria de Cultura de Fortaleza, reinaugurada no início de agosto, preserva duas das celas usadas durante o período da ditadura: uma comum e uma solitária. No local, está afixada placa que marca o início da preservação desse espaço, ainda durante a gestão da ex-prefeita Maria Luiza Fontenele.
"Este prédio, antes símbolo do cerceamento da liberdade e do fascismo, que pela tortura deixou marcas em vários corpos e mentes humanas, hoje é resgatado pela ação transformadora daqueles que constroem o novo, será marca de compromisso com a promoção e a libertação dos indivíduos. Os gritos que foram ouvidos daqui para frente serão brados e vitória, hinos de libertação", diz a placada, data de 29 de agosto de 1986.
Primeira mulher a ser eleita como prefeita de uma capital brasileira, Maria Luiza Fontenele também foi uma opositora ao regime militar, integrando inclusive o Movimento Feminino pela Anistia, criado em 1975, e um dos responsáveis pela pressão popular que resultaria na Lei da Anistia.
O relato de quem viveu
Ao adentrar a antiga cela da Polícia Federal, quem acompanhava o "Percursos da Memória" pode ouvir a história de quem esteve naquele espaço como preso político. "Fui preso aqui em 1977", começa Célio Miranda Albuquerque, quando junto com um pequeno grupo entra na cela comum preservada na sede da Secultfor.
Os três meses que passou detido na antiga sede da Polícia Federal aconteceram depois de ser preso em Teresina, no Piauí, para onde tinha se mudado em busca de trabalho e também para dar início ao processo de ida para o Canadá, onde um dos irmãos estava — Célio, dois irmãos e uma irmã foram perseguidos políticos na ditadura militar.
Na época, ele era suspeito de articular a criação de um novo partido, o que não era permitido pelo regime, que era regido por um modelo bipartidário, nos quais só eram autorizados o Arena, partido de apoio aos governos militares, e o MDB, legenda de oposição.
"Resultado: fui trazido para cá. Aqui eu passei uns três meses. O Aldo Filho estava preso aqui comigo, na sala vizinha, a gente se comunicava... Tinha uma portinha que tinha, não sei se no segundo andar, sei que a sala era muito parecida com essa. E eu respondi o processo em liberdade, fui solto e fui absolvido", detalha.
Essa foi a segunda vez que ele foi preso pela ditadura militar. Na primeira, a prisão foi por um ano no Instituto Penal Paulo Sarasate — também considerado um dos Lugares de Memória do Ceará. "Lá, era uma cadeia nova e que abrigava presos comuns, mas houve uma exceção e criaram duas alas de presos políticos. Eu era o mais novo dos presos e o que sabia o dia que ia sair, porque boa parte era condenado à prisão perpétua, ou 40 anos, 50 anos", explica.
A presença de ex-presos e ex-perseguidos políticos, como Célio Miranda, durante o "Percursos da Memória" acontece em todas as edições. São os chamados "Agentes da Memória".
"Todo percurso é acompanhado por um agente da memória. O percurso é memória, verdade e justiça. É memória porque a gente vai nesses lugares, fala desses lugares de memória e é verdade, porque os agentes de memória são essas pessoas que confirmam a existência, que também estão ditas na nossa Comissão da Verdade", detalha Lúcia Alencar.
"É uma troca", resume o presidente da Comissão Especial de Anistia Wanda Sidou (CEAWS), Ernesto Sales, o Sal. "Esse projeto da memória, de visitar e levar as pessoas que não têm conhecimento disso, além dos que tem, que viveram, é muito rico, porque é uma troca".
"O Paulo Freire fala que processo de educação é esse, ensinando e aprendendo simultaneamente. Então a gente acredita nessas teses, a gente acredita que a realidade possa ser transformada a partir desses signos que são colocados, de repressão também, mas que a gente, através da nossa sensibilidade, a gente vai reconstruindo essa história".
A definição feita por Ernesto Sales converge com o principal público alvo do "Percursos da Memória": estudantes do Ensino Médio. "A partir de uma pesquisa nós percebemos que essa faixa etária, tem um desconhecimento muito grande desse passado recente do país, por isso a escolha desse perfil", explica Lúcia Alencar, que acrescenta que, apesar disso, outros públicos também são atendidos, como foi o caso da edição que o PontoPoder acompanhou.
Ampliação dos Lugares de Memória no Ceará
Para além do "Percursos da Memória", o Eixo "Memória, Verdade, Justiça e Reparação" trabalha em outras frentes para ampliar o conhecimento a respeito da ditadura militar no Ceará. Uma delas é a disposição de placas recordatórias nos Lugares de Memória do estado.
Além dos 10 identificados pela Comissão Nacional da Verdade, está sendo feito um mapeamento em outras cidades do Ceará, encabeçada pela Secretaria de Direitos Humanos, mas que também envolve outras pastas do Governo do Ceará como Educação e Cultura, além de historiadores.
A lista ainda está sendo construída, explica Lúcia Alencar, para que haja a colocação das placas indicando os lugares ainda em 2025. Nesse primeiro momento, serão 34 lugares, 10 aqui, no município de Fortaleza e em Maranguape, e os demais ficam entre Baturité, Sobral e o Cariri, o Interior Central também, Quixadá", cita.
Ernesto Sales defende que a lista seja ampliada, para incluir também as populações marginalizadas. "A gente tem que ir também aonde os indígenas sofreram, a gente tem que ir aonde os negros sofreram. Então, meu compromisso é nessa perspectiva", explica.
Ele cita como exemplos bairros como Pirambu e Alvaro Weyne, este último o "primeiro bairro operário do Brasil". "Ali que tinha as células comunistas, ali que tinha... Ali que eu fui preso. A minha mãe teve prisão domiciliar juntamente com quatro filhos", relembra a história, ocorrida quando tinha por volta dos três anos de idade. "São locais de memória. E eu atribuo como algo bastante relevante nesse resgate e no papel que eu tenho a cumprir agora na comissão", diz.
"O Ceará é um dos estados mais avançados nesse resgate da memória da verdade, da justiça e da reparação. Eu acredito que continue assim durante muitos anos e que a gente consiga fazer justiça para todos. (...) Não tem sentido que seja alguma coisa escamoteada nesse processo. É um momento da gente sentar e construir quais são as alternativas de reparação", conclui