'Movimento dos Sargentos': os militares da Base Aérea de Fortaleza contrários ao golpe militar de 64
Esta é a segunda reportagem do Diário do Nordeste que aborda os 60 anos do golpe que instaurou a Ditadura Cívico-Militar no Brasil e seus desdobramentos no Ceará
Exatas 24 horas depois do general Olympio Mourão ordenar a marcha da 4º Divisão da Infantaria, da qual era comandante, saindo de Juiz de Fora (MG) em direção ao Rio de Janeiro — iniciando assim o golpe militar de 1964 —, uma marcha bem distinta transcorre nas dependências da Base Aérea de Fortaleza.
Os sargentos da Base Aérea, após reunião no Cassino dos Suboficiais e Sargentos, decidem organizar parte da tropa e marchar em direção ao comando da unidade. Estes militares — sem "nenhuma intenção de danos materiais ou de vida", conforme relatos de quem participou da marcha — queriam respostas do então comandante interino Ivan Teixeira Leite a respeito dos recentes acontecimentos do País.
Eles buscavam entender o posicionamento do comando da Base Aérea diante do novo regime, mas também expressar o apoio à legalidade e às autoridades constituídas, como era o caso do presidente deposto João Goulart, e dizer que "não pretendiam apoiar nenhum movimento golpista". Somados, foram quase 300 militares a participar desta marcha — entre sargentos, cabos e soldados.
Se, naquele momento, a atitude do então comandante Ivan Teixeira Leite foi apaziguar os ânimos, a reação posterior ao movimento liderado pelos sargentos foi bem mais rígida. Considerados 'cabeças' do movimento, os sargentos foram acusados de "tramar contra o regime" e de ter uma "atuação perniciosa com a disciplina e a moral".
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As palavras constam no inquérito instaurado para investigar os acontecimentos do dia 1° de abril de 1964, disponibilizado no acervo digital do projeto "Brasil Nunca Mais". No total, 28 militares foram indiciados, presos e expulsos da corporação — muitos deles antes mesmo da ação penal ir a julgamento na Justiça Militar.
A punição destes militares cearenses durante a ditadura cívico-militar não é algo isolado. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), mais de 6,5 mil integrantes das Forças Armadas foram presos, torturados ou expulsos de suas corporações por serem contrários ao regime autoritário que vigorou no País por 21 anos.
Esta é a segunda reportagem de série que trata da Ditadura Cívico-Militar e seus desdobramentos no Ceará. Desde o domingo (31), data que marca os 60 anos do Golpe Militar de 1964, serão publicados textos que tratam do regime autoritário que durou 21 anos no Brasil e os movimentos de resistência a ela.
Primeiro, o contexto
Antes de chegarmos ao dia 1º de abril de 1964, é preciso entender o processo que levou aos sargentos da Base Aérea de Fortaleza a uma mobilização contrária aos movimentos golpistas coordenados diretamente pelos oficiais das Forças Armadas — superiores aos sargentos na rígida hierarquia militar.
Os graduados das Forças Armadas — sargentos, suboficiais e cabos — eram proibidos de exercer mandatos eletivos pela Constituição de 1946. Contudo, o direito à elegibilidade vinha sendo uma das bandeiras de movimentos de sargentos.
Em 1961, com a atuação direta dos sargentos para garantir a posse de João Goulart, a categoria acaba ganhando força política junto à presidência da República — que enxerga ainda, na proximidade com os sargentos, uma forma de estar mais próximo das patentes mais baixas, como cabos e soldados.
O Ceará não está isolado deste contexto, com mobilizações para a participação política partindo, principalmente, de sargentos da Aeronáutica e do Exército por meio dos clubes e associações militares.
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Com isso, apesar da proibição constitucional, sargentos indicam candidatos próprios para concorrer às eleições legislativas de 1962. Alguns deles, como é o caso do sargento do Exército Antônio Garcia Filho, pelo estado da Guanabara (RJ), conseguem tomar posse devido a brechas na legislação.
Contudo, sargentos eleitos em outros estados, como São Paulo e Rio Grande do Sul, são impedidos de tomar posse em 1963. Em reação a isso, sargentos cearenses lançam, em maio daquele ano, o "Manifesto dos Sargentos".
O documento é lido na Rádio Dragão do Mar e defende a participação dos sargentos no processo eleitoral, além de defender os manifestos lançados também em outros estados — alguns dos quais criticavam autoridades do Exército nacional, incluindo o então ministro da Guerra, Amaury Kruel.
Como o manifesto cearense não teve a lista de signatários divulgada, foram punidos apenas dois sargentos do Exército, responsáveis por levar o documento até a rádio.
Contudo, houve uma forte repercussão política deste manifesto. Além da pressão do então comandante da 10ª Região Militar, Almério de Castro Neves, para ter acesso a todos os autores do documento, o assunto ainda foi levado para a Assembleia Legislativa e para a Câmara Municipal de Fortaleza por parlamentares, além de debatido pela imprensa e dentro dos próprios quarteis.
Este contexto é detalhado pelo professor de História Flávio da Conceição na dissertação “As Práticas Políticas do ‘Movimento dos Sargentos’ na Base Aérea de Fortaleza”, defendida em 2015 na Universidade Estadual do Ceará (Uece).
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Ele explica que essa mobilização política dos sargentos não era bem vista pelos oficiais das Forças Armadas, o que deixava os militares desta categoria em uma "encruzilhada".
"Os sargentos dentro da força militar é o elo entre a baixa patente e os oficiais. Ao mesmo tempo, a possibilidade de promoção de um sargento depende de uma citação de boa conduta, um elogio do oficial. (...) Então era um jogo de força e poder, porque o sargento acabava tendo essa dificuldade de atuar politicamente e, ao mesmo tempo, depender de um oficial para fazer um elogio para que ele pudesse ascender na carreira militar, nas patentes", explica.
E é exatamente por essa intensa participação política no início dos anos 1960 que os sargentos vão ser a patente militar mais punida pelo regime, devido ao risco de subversão dentro da tropa. "Tinha que haver, no corpo da tropa, uma relação de extrema confiança, sem qualquer vestígio de movimento político", pontua.
> Confira o inquérito sobre o dia 1º de Abril de 1964 na Base Aérea de Fortaleza
Dia 1º de abril de 1964
"Tem sempre que tomar cuidado com a data. Não é só o dia 1º de abril. É o processo que começa em 1961 (com a posse de João Goulart). Olhar só para a data às vezes impossibilita ver o que está acontecendo", alerta Flávio da Conceição. A noite do dia 1º de abril de 1964 é, portanto, o ponto de culminância do processo construído ao longo do início dos anos 1960.
Antes de chegar naquela noite, vamos voltar novamente no tempo. Mas dessa vez, apenas 24 horas. Na noite do dia 31 de março de 1964, o general Olympio Mourão marcha com a sua tropa, saindo de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro. A decisão do oficial precipita o golpe cívico-militar, que já vinha sendo orquestrado não apenas pela cúpula das Forças Armadas, mas também por setores da sociedade civil brasileira.
Apesar de antecipado, existe uma movimentação do IV Exército — responsável pelo Norte e Nordeste — para garantir a efetivação do golpe. A 10ª Região Militar, em Fortaleza, recebe uma das comunicações do comandante do IV Exército, general Justino Alves Bastos.
Nas mensagens, o Comando Militar ordena que sejam proibidos "qualquer comícios, reuniões, passeatas públicas ou manifestações sindicais", além da necessidade de que providências fossem tomadas para "evitar a eclosão de greves". "Tudo visando a preservação da ordem e segurança do povo", encerra o comunicado.
No amanhecer do dia 1º de abril, o comando da 10 Região Militar pede "esclarecimento sobre a atitude tomada pelo Cmt do IV Exército", no que é respondido que o Comando do Norte e Nordeste está "solidário ao restabelecimento da legalidade democrática", em referência ao golpe militar em curso. A troca de mensagens faz parte da documentação da pesquisa de Flávio da Conceição e foi obtida dos arquivos da própria 10ª Região Militar.
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É dessa troca de informações que os sargentos da Base Aérea de Fortaleza são informados por um colega, este sargento do Exército e responsável pela comunicação da 10ª Região Militar. Com isso, os sargentos resolvem reunir-se no Cassino dos Suboficiais e Sargentos, às 19 horas, para discutir todos os acontecimentos e o risco de, a depender do posicionamento do comando da Aeronáutica no Ceará, haver um enfrentamento direto com o Exército — que, naquela altura, havia aderido ao novo regime ditatorial.
Ao final da reunião, decidiram seguir em marcha, de maneira ordenada, até o comando da Base Aérea de Fortaleza. Eles mobilizaram, então, cabos e soldados presentes na unidade militar naquela noite. "(Mas) É um movimento, não é uma revolta. É um movimento democrático, legalista", reforça Flávio da Conceição. O inquérito aberto traz detalhes sobre a marcha liderada pelos sargentos.
"Ficou decidido que sub-oficiais e sargentos, cabos e soldados, que se encontravam em regime de meia prontidão, entrariam em forma e, em formatura, com todo o espírito de disciplina possível, dirigiriam-se ao Sr. Comandante da Unidade, a fim de interpelá-lo sobre o seu pensamento e sua definição, relativamente, ao movimento revolucionário de 31 de março de 1964 (sic)".
O documento do inquérito descreve ainda que a resolução dos sargentos de que quem falaria pelos militares seria o sargento Edson Gereba de Farias, que "interpelaria o Comandante a fim de ouvir sua palavra sobre os acontecimentos do dia anterior". Edson Gereba de Farias foi um dos entrevistados por Flávio da Conceição durante a pesquisa de Mestrado, quando relata como foi a conversa com o então comandante interino da Base Aérea de Fortaleza, o tenente-coronel Ivan Teixeira Leite.
"Havíamos tido uma reunião [...] onde ficou resolvido que os sargentos iriam ao Comando da Base pedir informações a respeito da situação do país, pois todos estavam muito apreensivos; que iriam disciplinados e em ordem e que a ida dos sargentos ao Comando não seria uma insinuação; que os suboficiais e sargentos não pretendiam apoiar nenhum movimento golpista, mas que eram constitucionalistas e patriotas verde-amarelo; que iriam ao Comando sem nenhuma intenção de danos materiais ou de vida; que eram patriotas de verdade", relata o ex-militar.
Além de Gereba, também fala ao comandante o sargento Ernande Correia Ferreira. No inquérito, esse momento é descrito como sendo um "atalhado a palavra do seu Comandante, quando este se dirigia a tropa formada, numa visível intenção de agitar seus colegas".
Apaziguamento e medo
Em resposta às indagações dos sargentos, o tenente-coronel Ivan Teixeira Leite disse que "a situação não era para desespero e que, tão logo tivesse informações oficiais, falaria aos militares". Segundo sargentos presentes nesta noite, o oficial chegou a sugerir que os subalternos fossem ao cinema da Base Aérea — que naquela noite exibia o filme "O grande motim", segundo a pesquisa de Flávio da Conceição.
Antes do fim da conversa entre o comandante e a tropa, um segundo pelotão — menor em número de componentes, mas com todos armados — chega ao local, comandado por dois capitães da Base Aérea. A intenção é pressionar o movimento liderado pelos sargentos.
No entanto, a postura do comandante interino da Base Aérea continua sendo de apaziguamento, apesar de não responder de forma direta aos sargentos a respeito do posicionamento do comando da Unidade sobre o golpe militar.
"Esse tipo de coisa não se diz. Enquanto oficial, o coronel não diz para a praça (tropa). Não é importante dizer a eles. Geralmente, isso (comunicar e discutir a posição) é de major para cima. Essas decisões são decisões de confiança e não cabe ao restante da tropa", detalha Flávio da Conceição.
O conflito direto é evitado na noite do 1º de abril e a tropa dispersa. Alguns dos sargentos chegam a ir para o cinema, mas, segundo Conceição, muitos sargentos já temiam a reação ao movimento e, por isso, evitaram ir para o local, considerado "vulnerável e fechado". O inquérito contra os militares chega a registrar início de tumulto na sala de cinema, devido ao boato de que um colega teria sido preso.
Apesar de nenhuma prisão ter sido realizada na mesma noite, muitos sargentos preferiram não dormir nos alojamentos e prosseguir armados durante toda a noite.
"Tudo leva a crer que os passos dos sargentos estavam sendo vigiados pelos oficiais após terem se manifestado a favor da constitucionalidade do Presidente João Goulart. Entre os sargentos, houve um temor de retaliação, mas, evitando um confronto maior, as perseguições e prisões ocorreram dias depois", cita Flávio da Conceição no texto da dissertação.
Apesar da reação do comando não ter ocorrido ainda no dia 1º de abril, ela veio pouco tempo depois. As primeiras prisões ocorreram ainda em abril, dias antes de sindicância ser aberta contra os sargentos, no dia 13 de abril de 1964. Segundo Conceição, os primeiros militares foram presos ainda no dia 4 de abril. Contudo, o processo para punição destes sargentos prossegue nos dois anos seguintes.
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Indiciamento, prisão e expulsão
A sindicância aberta pela Base Aérea de Fortaleza serviu de base para o Inquérito Policial Militar (IPM) contra os militares envolvidos no "Movimento dos Sargentos", conforme nomeado por Flávio Conceição.
O responsável pela investigação aberta em maio de 1964, é Ivan Teixeira Leite, o tenente-coronel que era comandante interino da Base Aérea naquele 1º de abril. No inquérito, os primeiros ofícios determinando a "prisão incomunicável" de indiciados são de maio de 1964. Contudo, segundo os sargentos investigados, as detenções começaram no dia 4 de abril de 1964.
Em entrevista a Conceição, o sargento Gereba de Farias relata como ocorreu a própria prisão, no dia 6 de abril. "Durante a formatura em frente ao prédio do comando [...] fui retirado da tropa e preso. Entregue a militares que já me aguardavam com viatura pronta, fui conduzido a avião estacionado no 1º/4º Esquadrão. Daí seguiria para o Rio de Janeiro, fazendo escala em Recife e depois em Salvador, Base Aérea onde 'dormi' com guarda à porta", descreve.
As transferências ocorriam para separar aqueles considerados "cabeças" do Movimento do 1º de abril do restante da tropa, principalmente cabos e soldados. Com a abertura do inquérito, outras prisões preventivas foram determinadas e o número indiciados aumentou de 12, na sindicância, para 28 — entre sargentos, que eram maioria, suboficiais e cabos.
Alguns dos militares investigados foram postos em liberdade ainda em maio e junho daquele ano, mas a maioria dos indiciados foi solta apenas em novembro de 1964. O inquérito, no entanto, ficou quatro meses parado na auditoria da 7ª Região, em Recife, sem parecer.
No documento referente às investigações, não é possível encontrar os documentos de expulsão dos sargentos que participaram do "Movimento dos Sargentos". Isto porque, apesar de muitas páginas terem sido preservadas, outras se encontram rasuradas ou ilegíveis.
Contudo, em decisão da Justiça Militar de novembro de 1964 — que tratava da revogação da prisão de alguns militares envolvidos no dia 1° de abril — Edson Gereba de Farias e Ernande Corrêa Ferreira já são identificados como "ex-sargentos". Segundo Conceição, muitas das expulsões ocorreram em setembro de 1964 e, mesmo expulsos, alguns dos investigados continuaram presos.
O julgamento dos agora ex-militares foi finalizado apenas em setembro de 1965, quando os indiciados foram absolvidos pela Justiça Militar, julgando "improcedente a denúncia oferecida pela Promotoria Militar contra os acusados". A Promotoria Militar não aceitou o resultado e apresentou recurso ao Superior Tribunal Federal (STM).
Em junho de 1966, o STM confirmou a decisão da instância anterior. "Provado está que nenhum dos acusados praticou crime algum por ocasião da reunião no cassino dos suboficiais e sargentos, na qual não se criticou ato de autoridade nem se cuidou de assunto atinente à disciplina militar.
Contudo, a essa altura, os indiciados já haviam sido expulsos da corporação. Com a decisão, apenas os oficiais envolvidos e um sargento foram reformados. A anistia de 1979 vai alcançar estes ex-militares, mas não é a única necessidade deles.
"Depois da anistia, vem a reparação. Porque foram pessoas que tiveram que se virar. Foram expulsas, a maioria deles foram trabalhar de vendedores", cita Flávio da Conceição. "Feita a anistia, havia a necessidade de reparação — jurídica, salarial, de patente. Tem muitos que ainda esperam por essa reparação, são processos ainda em trânsito".