Inspiração para criação de 'Ainda Estou Aqui', relatório da Comissão da Verdade traz dados sobre ditadura no Ceará
O filme que é a aposta brasileira para o Oscar foi baseado no livro homônimo, de Marcelo Rubens Paiva
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A história de Eunice e Rubens Paiva percorreu o mundo — e as principais salas e festivais de cinema. O filme "Ainda Estou Aqui", dirigido por Walter Salles e protagonizado por Fernanda Torres, foi indicado ao Globo de Ouro e está na shortlist do Oscar — a lista conta com os filmes pré-indicados na categoria "Filme Internacional".
A obra é baseada no livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho caçula do casal central da trama. Além das memórias sobre o período da ditadura militar e o forte impacto dela na história familiar e do País, um outro elemento foi fundamental para a escrita do livro: a Comissão Nacional da Verdade.
"Por conta da Comissão da Verdade, tive elementos para escrever o livro Ainda Estou Aqui, e agora temos esse filme deslumbrante", escreveu Marcelo Rubens Paiva em novembro deste ano na rede social X (antigo Twitter).
Criada em 2011, a comissão funcionou de maio de 2012 a dezembro de 2014. Os trabalhos resultaram em um relatório lançado em três volumes e mais de 3,3 mil páginas, nas quais são detalhadas a forma como a ditadura militar violou os direitos de milhares de brasileiros nos estados do País.
Detenções ilegais, violência contra crianças e adolescentes, locais e métodos de tortura, história dos desaparecidos e também daqueles que foram executados pelo regime são informações detalhadas no documento, considerado fundamental para desvendar os crimes cometidos durante a ditadura militar.
“A ditadura foi exercida, sobretudo, de forma clandestina e ilegal. Mesmo em relação à legalidade terrível da ditadura, a atividade repressiva foi realizada, em grande parte, de maneira clandestina, ilegal”, resume o professor da Universidade Estadual do Ceará, Eudes Baima. “Assim, o regime militar é, sobretudo, um regime criminoso, um regime fora da lei”.
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No Ceará, o relatório da Comissão Nacional da Verdade identificou locais de tortura e de violações a direitos humanos, além de repressões promovidas no campo e a perseguição vivenciada nas universidades.
“Nós tivemos vários presos políticos aqui no Ceará. Os estudantes aqui no Ceará também foram muito perseguidos, os diretórios foram fechados... Assim, tudo o que aconteceu nos outros lugares (do País) aconteceu aqui no Ceará também. O que nos falta é informação sobre essa temática. E, ainda hoje, há uma dificuldade enorme de falar sobre esse tema”, afirma Lúcia Alencar. Ela coordena o Eixo Memória, Verdade, Justiça e Reparação, vinculada a Secretaria de Direitos Humanos do Ceará — o que torna a pasta do governo cearense a única no País a ter um grupo voltado para o tema.
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Os endereços de tortura e violação de direitos no Ceará
Uma das iniciativas promovidas pelo Eixo Memória, Verdade, Justiça e Reparação é o "Percursos da Memória". Voltado a estudantes, principalmente do Ensino Médio, o projeto caminha por "lugares da memória" da ditadura no Ceará, como define Lúcia Alencar. São percorridos "os lugares identificados, durante os trabalhos da Comissão (Nacional da Verdade), como locais clandestinos de tortura, sequestro e morte". "E o Ceará também tem esses lugares", explica Alencar.
Entre os locais visitados estão, por exemplo, o Quartel General da 10ª Região Militar, em Fortaleza, e a antiga sede da Polícia Federal, também localizada na Capital. Ambos são listados pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade como um dos que ocorreram "graves violações de direitos humanos" durante a ditadura militar.
A lista inclui também:
- 23º Batalhão de Caçadores, em Fortaleza;
- DOI-CODI, em Fortaleza;
- DOPS, em Fortaleza;
- Escola de Aprendizes – Marinheiros, em Fortaleza;
- Instituto Penal Paulo Sarazate, em Fortaleza;
- Polícia Federal, em Fortaleza;
- Presídio do 2º Distrito Policial da Delegacia de Segurança Pública, em Fortaleza;
- Casa dos Horrores, em Maranguape.
Ex-presos políticos deram detalhes sobre as torturas realizadas no centro clandestino que ficou conhecido como "Casa dos Horrores". O local ficava na zona rural de Maranguape, cidade da Região Metropolitana de Fortaleza, em terreno próximo ao depósito de armas da 10ª Região Militar. Conforme os relatos, policiais federais e policiais do DOPS/CE atuavam no local.
Um dos depoimentos registrados foi o do ex-deputado federal Chico Lopes (PCdoB). Ele disse que permaneceu "por quase 24 horas, algemado e encapuzado, com, pelo menos, três ou quatro agentes da repressão, além de um profissional da área da saúde, provavelmente um médico", cita o texto do relatório. O médico inquiria o ex-deputado e dizia:
“‘Aguenta mais. Esse filho da p*ta aguenta mais! O coração dele é bom!’ Eu tenho um sopro, mas é de nascença. E eles deram um [golpe] tão forte, que eu caí todo o corpo pra trás. Aí, eles viram abrir. Puxaram na marca e feriram. 'Este filho da p*ta morreu de sorte, porque o choque era para ter se concentrado na boca dele'. Assim que a coisa acontecia”, disse Chico Lopes em depoimento a CNV.
O ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Valter Pinheiro, também relatou, em 2012, as sessões de torturas sofridas na Casa dos Horrores. "Ao chegar a esse local, eu tinha de me despir e então eles me amarravam e colocavam deitado no chão e ligavam eletrodos nos lóbulos das orelhas, colocavam eletrodos no meu pênis, nos mamilos e na ponta da língua, e aí começava a sessão. Aí começava o verdadeiro terrorismo, tortura e terrorismo", disse, segundo registro no relatório da CNV.
Outro relato trazido pelo documento é do ex-preso político Benedito Bizerril. "Percebi que eram três agentes. O piso do andar superior era de madeira e lá me conduziram para um quarto. Tiraram toda a minha roupa. Colocaram fios no dedão do pé e nos testículos. Me colocaram sobre duas latas e fiquei me equilibrando. Iniciaram mais ou menos às seis horas da manhã e me torturaram até o início da noite. [...] O tempo todo eu caía dessas latas, e eles me colocavam de volta", detalhou.
Repressão no campo
O fato do mapeamento dos locais onde foram cometidas graves violações de direitos humanos pela ditadura estarem concentradas em Fortaleza e na Região Metropolitana não significa que o campo ficou livre das consequências da repressão durante o regime totalitário.
O relatório do CNV traz informações sobre as violências sofridas pelas Ligas Camponesas — ou por suas lideranças, após elas serem extintas no início do regime militar — e por comunidades indígenas, inclusive em cidades do Interior cearense.
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Ainda é destacado o fato de que houve um "endurecimento da repressão do regime militar no meio rural, com apoio das Polícias Estaduais em aliança com latifundiários locais". Um dos casos emblemáticos disso, prossegue o documento, é o conflito da Fazenda Japuara, em Canindé.
A propriedade foi palco de diversos confrontos em tentativas de expulsão de trabalhadores rurais e de suas famílias. Um dos mais sérios aconteceu em janeiro de 1971, quando houve mais uma tentativa de despejo.
O dono das terras, Júlio César Campos, "contratou homens que trabalhavam nas frentes de emergência da seca para destelhar as casas e destruir as benfeitorias" e teve apoio das forças policiais: "um subdelegado acompanhado de policiais militares invadiu a fazenda, havendo resistência dos moradores, que se defendiam com foices, facões e outros instrumentos de trabalho".
Houve registro de quatro pessoas mortas, além de feridos. Os líderes camponeses se esconderam na mata, enquanto mulheres e crianças foram espancados e perseguidos pelas autoridades policiais para entregá-los.
"Um dos casos foram os maus-tratos sofridos pelo menino Francisco de Souza Barros, de nove anos, registrados no livro Brasil: nunca mais (1985, p. 43): interrogado pela polícia sobre onde estava seu pai, ele foi sequestrado e obrigado a carregar armas pesadas mata adentro, ficando com graves sequelas emocionais".
Expulsão e perseguição nas universidades
A instalação da Comissão Nacional da Verdade, ocorrida em 2012, serviu de "estímulo" para a instalação de colegiados em entidades e instituições, como sindicatos e universidades, conforme lembra Eudes Baima. No Ceará, a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Universidade Estadual do Ceará (Uece) lançaram a Comissão da Verdade das universidades cearenses.
Baima foi um dos integrantes do grupo. Ele explica que o motivo para a junção foi que a Uece surgiu apenas em 1976. Antes, as instituições de ensino vinculadas ao Estado do Ceará eram certificadas pela UFC. A instalação da comissão ocorreu em 2013 e o trabalho durou cerca de um ano — "a toque de caixa para que o nosso relatório tivesse tempo de entrar no relatório geral da Comissão Nacional".
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Foram realizadas entrevistas com ex-estudantes e ex-professores, além de levantamento de documentos sobre o aparelhamento policial dentro das instituições. "É a história de como a ditadura perseguiu o movimento estudantil, professores e servidores", resume o professor Rafael Silva, presidente da Comissão de Direitos Humanos da UFC.
Dez anos depois da finalização, o relatório foi transformado no livro "Tempos de 'Nunca-Mais': as graves violações dos direitos humanos nas universidades públicas do Ceará", lançado no dia 10 de dezembro, em meio às comemorações dos 70 anos da UFC.
> Confira o livro "Tempos de 'Nunca-Mais': as graves violações dos direitos humanos nas universidades públicas do Ceará"
O lançamento ocorreu junto a inauguração, na Reitoria da UFC, do Espaço Cultural Bergson Gurjão, homenagem ao estudante de Química morto pela ditadura militar na Guerrilha do Araguaia — o reconhecimento da morte foi feito apenas em 2009. Durante a graduação, Bergson atuou no movimento estudantil e foi vice-presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE).
Ele foi um dos atingidos pelo Decreto-Lei nº 477, de 1969, "que impossibilitava a organização estudantil nas instituições de ensino", cita o relatório da Comissão Nacional da Verdade. Ele foi expulso da UFC em 1968 baseado neste decreto editado pelo regime militar. Mas não foi o único.
"São 48 nomes que foram expulsos oficialmente da UFC", afirma Rafael Silva. "Essa comissão (das universidades cearenses) trouxe à tona 108 nomes que foram atacados pela ditadura", completa. Além da expulsão, houve quem não pode assumir cargos públicos ou foi impedido de lecionar, exemplifica.
"Mas essa lista não é fixa, porque a gente vai 'tropeçando' e encontrando as pessoas, (porque) nós não temos todos os documentos internos", pontua Silva.
"Foi o corte de uma geração. Na universidade, especialmente, isso é muito grave. Houve uma interrupção do desenvolvimento pessoal, profissional e político de todo uma gama de jovens. Mesmo aqueles que não foram diretamente atingidos pela repressão, tiveram uma passagem extremamente empobrecida na universidade uma vez que o ensino foi cerceado, foi vigiado. (...) É uma geração que poderia ter dado uma contribuição à sociedade extremamente maior do que a que pode dar. Isso é uma perda irrecuperável".
Apesar de irrecuperável, como destacado por Baima, a reparação pelas violências sofridas durante a ditadura é peça fundamental. Também no dia 10 de dezembro, a UFC entregou um termo de reconciliação histórica a ex-militantes do movimento estudantil que foram perseguidos pelo regime.
"A justiça só acontece quando a verdade é restabelecida. Então, a verdade foi restabelecida a partir da memória. É uma espécie de pacto que a UFC está fazendo com seu passado: volta a ele para refazer o presente. A importância é exatamente devolver à história o seu sentido de verdade", resume Rafael Silva.
'Ficou pelo caminho'
A Comissão Nacional da Verdade também fez 29 recomendações gerais ao Estado brasileiro. A maioria — 21 delas — foram feitas ao Poder Executivo. Mas existem também recomendações ao Poder Legislativo (13) e ao Poder Judiciário (4). Foram feitas ainda recomendações específicas voltadas para os povos indígenas e para a população LGBTQIA+.
Contudo, uma década depois do fim dos trabalhos da comissão, apenas duas recomendações foram realizadas pelo Estado brasileiro. Dez foram parcialmente realizadas e 17 sequer começaram a ser aplicadas.
"Uma questão fundamental é trabalhar essa questão do passado, da memória numa perspectiva muito voltada para o presente e para o futuro. Nessa perspectiva, a Comissão Nacional da Verdade é um instrumento muito importante para fazer o que o Brasil não fez ainda hoje sobre as reparações políticas, econômicas e simbólicas das violências do passado cometidas pelos agentes estado", explica o diretor do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sotilli.
O instituto foi o responsável por elaborar, em 2023, relatório com a situação das recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade. No ano passado, relembra Sotilli, a aplicação das medidas sugeridas pela CNV estava ainda menor.
"Depois do impeachment da presidenta Dilma (Rousseff, em 2016), todas essas recomendações foram praticamente abandonadas. E, ao contrário de só abandonadas, houve algum retrocesso em relação a algumas recomendações", explica. Até o final do Governo Jair Bolsonaro (PL), 7 recomendações possuíam o status de "retrocedidas" — equivalente a 24% do total.
Agora, com o avanço na aplicação das recomendações, Sotilli destaca algumas que são "extremamente importantes", como a mudança nos currículos das academias militares e a retificação do atestado de óbito das vítimas da ditadura — este último, foi destaque no filme "Ainda Estou Aqui" e teve avanço recente no País.
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No dia 10 de dezembro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Definiu que os cartórios brasileiros estão obrigados a corrigir gratuitamente as certidões de óbito de pessoas mortas pela ditadura militar. Cerca de 434 brasileiros mortos ou desaparecidos devem ter no registro que a causa da morte foi “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”.
Outra urgência, segundo ele, é a instalação de comitê de monitoramento no âmbito do Poder Executivo. O compromisso tinha sido assumido, ainda em 2023, pelo então ministro de Direitos Humanos, Sílvio Almeida, e agora voltou a ser feito pela atual titular da pasta, Macaé Evaristo.
"O Estado brasileiro deve perseguir o cumprimento dessas recomendações para que finalmente vire essa página da história", reforça Sotilli.
"O Brasil nunca fez todos os processos de reparação sobre as violências do passado, sempre encontrou uma forma de deixar para lá. E o que acontece? Essa impunidade, essa não responsabilização política, jurídica, judicial produziu a repetição. O desrespeito às leis, à Constituição, à condição humana e produziu a violência".
Para Eudes Baima, a sensação é de que "o trabalho da Comissão Nacional da Verdade ficou pelo caminho". "Não é que não tenha importância. A memória é extremamente importante. Mas, do ponto de vista da punição dos culpados ou de nos dar base para um processo político de reforma profunda nas instituições, tirando delas tudo o que restou do período militar, isso não foi feito", conclui.