Como foi a votação em que os cearenses rejeitaram ser governados por um rei e um primeiro-ministro

O Baú da Política conta a história de quando os brasileiros foram às urnas decidir entre a monarquia parlamentarista, a república parlamentarista e a república presidencialista

Escrito por
Igor Cavalcante igor.cavalcante@svm.com.br
Baú da Política
Foto: Louise Dutra (arte)

“Um presidente, para ser eleito, negocia acordos e conchavos, loteia o governo. Tudo tem seu preço, só seu voto é de graça”. Essas críticas, que poderiam ter saído da rede social de algum brasileiro decepcionado com a política, na verdade, foram feitas há exatos 32 anos. Elas eram parte de uma propaganda eleitoral gratuita transmitida na televisão dos brasileiros em abril de 1993. À época, o Brasil passou por uma campanha eleitoral incomum: os cidadãos puderam escolher se queriam ser governados por um rei e por um primeiro-ministro.

No Ceará, a campanha mobilizou discursos inflamados, gerou “fake news”, propagou jingles criativos e contou com a militância de políticos como o ex-ministro Ciro Gomes (PDT), o ex-governador Lúcio Alcântara e o ex-prefeito José Sarto (PDT). O Baú da Política revisitou os arquivos do Diário do Nordeste e da Biblioteca Nacional e ouviu parlamentares e ex-parlamentares para recontar como foi, no Ceará, a campanha que levou os brasileiros a dizerem “não” ao rei e “sim” ao presidente.

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“Vote no rei”

Na prática, o que ocorreu em 21 de abril de 1993 foi um plebiscito popular. A consulta já era prevista desde a aprovação da Constituição de 1988, quando uma emenda aprovada incluiu essa condição. O mecanismo é adotado para consultar a opinião pública sobre questões nacionais de natureza “constitucional, legislativa ou administrativa”. 

A lógica é semelhante à dos referendos, com a diferença que o plebiscito é convocado previamente à criação do ato legislativo ou administrativo que trate do assunto em pauta, e o referendo é convocado posteriormente, cabendo ao povo ratificar ou rejeitar a proposta.

À época, a população deveria escolher a forma — república ou monarquia — e o sistema de governo — presidencialista ou parlamentarista. Na lei que estabeleceu as regras do plebiscito, foram definidos ainda três linhas de propaganda eleitoral: a da monarquia parlamentarista (com rei e primeiro-ministro), a da república parlamentarista (com presidente e primeiro-ministro) e a da república presidencialista (com presidente). Por não ter como coexistir, a monarquia presidencialista não tinha divulgação, já que era impossível unir um presidente e um rei.

Cédula adotada na votação
Legenda: Cédula adotada na votação
Foto: Reprodução/Justiça Eleitoral

Na televisão, a propaganda dava o tom de acirramento na disputa. “Quem foi rei nunca perde a majestade", dizia o jingle de campanha dos monarquistas. "Vote no rei", dizia o slogan da campanha. "Presidencialismo é fome, miséria, humilhação", anunciava outro vídeo com um tom de denúncia. “A república surgiu de um golpe militar, a monarquia é legítima”, pontuava outro.

Apoio de artistas

As propagandas eram transmitidas em toda a rede de rádio e televisão nacional e contavam com a participação de artistas que estavam em alta na época. "Com o rei não tem mau tempo. Não é à toa que o sol é o astro-rei", dizia, para todo o Brasil, a atriz Cissa Guimarães. Ela imitava o estilo de uma garota do tempo para defender a monarquia como forma de governo. Em resposta, os parlamentaristas divulgaram um vídeo da atriz Neusa Borges, que integrava o elenco do programa “Você Decide” e tinha participado de novelas como “Rainha da Sucata” e “Pedra Sobre Pedra”.

Cissa Guimarães durante a propaganda pró-monarquia
Legenda: Cissa Guimarães durante a propaganda pró-monarquia
Foto: Reprodução/Horário Eleitoral Gratuito

O Jornal carioca Tribuna da Imprensa, à época, chegou a narrar que a mobilização invadiu o Carnaval do Rio de Janeiro. A atleta da ginástica rítmica Lígia Azevedo, por exemplo, dizia ser favorável à monarquia. "O Dom Joãozinho é um gato maravilhoso, por isso vou votar na monarquia", disse. 

Jornal carioca Tribuna da Imprensa
Legenda: Jornal carioca Tribuna da Imprensa
Foto: Reprodução/Biblioteca Nacional Digital

A cantora Beth Carvalho e a atriz Betty Farias eram favoráveis ao presidencialismo. "Monarquia? É uma sacanagem que querem fazer com o povo que já paga tantos impostos e agora vai ter que financiar um rei", disse Betty. O grupo também contava com apoio do ator Milton Gonçalves

Já o time dos parlamentaristas era reforçado pelo ator Eri Jonhson. Havia ainda os indecisos, como a atriz Cláudia Ohana. "Acho que tudo no Brasil acaba em samba", resumiu. "Não irei votar em mais nada, me decepcionei com o Collor e acho que o Itamar está muito em cima do muro", declarou o jogador Renato Gaúcho. 

Campanha no Ceará

Entre os políticos do Ceará, a mobilização contou com debates públicos, principalmente em escolas e no Plenário da Assembleia Legislativa do Ceará. Nomes como Roberto Pessoa (União), atual prefeito de Maracanaú; o ex-governador Lúcio Alcântara, à época, vice-governador do Ceará; o ex-prefeito e ex-deputado estadual José Sarto (PDT) e o ex-senador Mauro Benevides integravam a campanha pró-presidencialismo com direito a pinturas no rosto e mascote de uma urna.

Mobilização no Plenário da Alece em 15 de março de 1993
Legenda: Mobilização no Plenário da Alece em 15 de março de 1993
Foto: Paulo R. Rocha/Arquivo Diário do Nordeste

Decano da Alece, o deputado estadual Fernando Hugo (PSD) estava, à época, em seu primeiro mandato na Casa. Segundo ele, a polarização sobre o tema afetou muito mais políticos que os eleitores. 

“Eram debates diários com grupos defendendo a monarquia e outros a república presidencialista, mas isso pouco chegava na população, quase toda desprovida da percepção maior do que era essa mudança"
Fernando Hugo (PSD)
Deputado decano da Alece

"Eu já era muito ativo no parlamento e defendia o presidencialismo, devo ter participado de uns quatro debates públicos, mas não existia movimentação nas ruas, não existia fanatismo para A ou B, isso não existia. Os comentários eram mais restritos ao rádio e à televisão”, conta.

Mobilização no Plenário da Alece em 15 de março de 1993
Legenda: Mobilização no Plenário da Alece em 15 de março de 1993
Foto: Paulo R. Rocha/Arquivo Diário do Nordeste

O ex-deputado e historiador Artur Bruno, presidente do Instituto de Pesquisa e Planejamento de Fortaleza (Ippla) Fortaleza, reforça o teor restrito dos debates.

“Os partidos políticos, movimentos sociais e as organizações não-governamentais participaram pouco da mobilização. Eu, por exemplo, defendi a república parlamentarista e fui minoritário. Na época, eu era deputado estadual e cheguei a participar de alguns debates, mas pressenti que as pessoas não queriam mudança”, diz.

Entre os defensores do presidencialismo estavam José Sarto, Roberto Pessoa, Lúcio Alcântara e Mauro Benevides
Legenda: Entre os defensores do presidencialismo estavam José Sarto, Roberto Pessoa, Lúcio Alcântara e Mauro Benevides
Foto: Ana Aragão/Arquivo Diário do Nordeste

“O povo queria uma república presidencialista, era claro. Poucos defenderam a monarquia e o parlamentarismo era um sistema desconhecido. Por mais que levássemos a proposta e argumentássemos que na Europa era muito comum e era a melhor solução para resolver as crises políticas, o povo tem muito essa cultura do presidente como chefe de governo e de estado", afirma.

"Há uma cultura geral no Brasil do salvacionismo, de uma liderança forte. Não é algo de agora, desde o Império isso persiste. Lamentavelmente, o presidencialismo venceu, e venceu com uma larga maioria”
Artur Bruno (PT)
Historiador e ex-deputado

Segundo o historiador, interesses partidários também influenciaram a baixa adesão à campanha. “O PT, meu partido, era majoritariamente presidencialista porque existia a esperança de o Lula — que tinha ido para o segundo turno em 1989, contra o Fernando Collor — ser eleito presidente em 1994”, aponta.

O então vice-governador Lúcio Alcântara durante a campanha pró-presidencialismo
Legenda: O então vice-governador Lúcio Alcântara durante a campanha pró-presidencialismo
Foto: Paulo R. Rocha/Arquivo Diário do Nordeste

No Ceará, segundo Artur Bruno, a adesão ficou ainda mais restrita às câmaras municipais e ao parlamento estadual.

 “A Constituição de 1988 tinha garantido esse plebiscito, então a realização foi mais para ‘cumprir tabela’, foi para atender à Constituição, não houve campanha de massa nas ruas, não houve passeata, manifestação de grande porte, nada disso. Na época, o governador era o Ciro Gomes, que estava no PSDB. O PSDB em si, aderiu à campanha parlamentarista, mas nunca liderou ou fez esse debate massificado para fazer a população conhecer mais”, conclui.

“Fake news”

Apesar do pouco interesse popular, a campanha rendeu situações inusitadas — principalmente por conta da campanha pró-monarquia — e até desinformação. Para combater os monarquistas, alguns militantes presidencialistas e parlamentarista espalhavam a boato de que o retorno de um rei ao comando do Brasil faria voltar também a escravidão. 

A possibilidade de voltar ao poder ainda gerou intrigas entre os descendentes da Família Real sobre quem iria assumir o trono. Alguns parlamentares também questionavam, no Plenário do Congresso Nacional, como seria a “desproclamação” da República.

“O Império foi tresloucado. E não só porque teve a mancha da escravidão, que é terrível. D. Pedro I, irritado, era capaz de sufocar com sangue qualquer movimento. D. Pedro II também não teve clemência em determinados momentos. A Guerra do Paraguai é a coisa mais ridícula da história do Brasil. Até hoje não há quem a explique. Estamos no século 20, na era do computador, e agora há essa história de rei. Isso é uma autêntica palhaçada”, disse o então senador cearense Cid Saboia de Carvalho (PMDB) em discurso no Plenário. 

O resultado das urnas

A eleição ocorreu em todo o País no dia 21 de abril de 1993, no dia do feriado de Tiradentes, uma data criada pelos republicanos para celebrar o mártir da independência do Brasil.

No Ceará, o desinteresse da população no embate entre republicanos, monarcas, parlamentaristas e presidencialistas se refletiu nas urnas. Do total de eleitores, que à época era de 3,8 milhões, 35% faltaram, o equivalente a 1,3 milhão. A incidência de votos brancos e nulos, somados, foi de aproximadamente 20%. 

Na forma de governo, a república venceu com ampla margem, totalizando 66,87% de apoio popular no Ceará. Já a monarquia somou 8,59%. Considerando o sistema de governo, o presidencialismo teve 59,9% de apoio popular, já o parlamentarismo chegou a 18,7% de apoio.

A república presidencialista venceu em todos os 184 municípios cearenses. Onde a monarquia recebeu mais apoio foi na cidade de Granja, mas o apoio foi de apenas 23,2%. Já Iracema teve a maior adesão proporcional à república, com 96%.

Já no parlamentarismo, o maior apoio foi em Cruz, com 49,3% do eleitorado. Solonópole foi o município com maior apoio ao presidencialismo, com 92,1%.

Resultado nacional

Nacionalmente, a república presidencialista também venceu com ampla margem. Contudo, assim como no Ceará, a participação popular foi baixa, com 74,3% de comparecimento mesmo o voto sendo obrigatório.

A emenda constitucional que previa o plebiscito era uma aposta do então deputado federal Antônio Henrique Bittencourt Cunha Bueno na possibilidade de voltar à monarquia. Ele apontava que, durante o reinado de Dom Pedro II, o Brasil viveu um período de prosperidade.

À época do plebiscito, o Brasil vivia um momento de turbulência política. As memórias da ditadura militar ainda eram recentes e, em 1992, o primeiro presidente eleito por voto popular direto após o regime ditatorial havia sofrido impeachment.

Ao todo, a república recebeu 66,26% dos votos, o correspondente a 43,8 milhões de eleitores. A monarquia somou 10,2%, uma fatia de 6,7 milhões. Votos brancos somaram 10,2% e os nulos totalizaram 13,2%. A abstenção foi de 23,2 milhões de eleitores, equivalente a 25,7% do eleitorado.

Já quanto ao sistema de governo, presidencialismo venceu com 55,67% dos votos, somando 36,6 milhões. O parlamentarismo teve 24,9% de apoio, o equivalente a 16,4 milhões. Brancos foram 3,1%, 4,8%; e nulos somaram 9,6 milhões, uma parcela de 14,5% do eleitorado. As abstenções foram de 23,2 milhões, sendo 25,7%.

No pleito, o Piauí foi o estado que surgiu como mais adepto à república. Do total de eleitores, 95,2% defenderam essa forma de governo. Já os adeptos da monarquia totalizaram 4,8%. Por outro lado, São Paulo e Rio de Janeiro surgiram como os mais monarquistas, cada um com cerca de 16% de apoiadores dessa forma de governo. 

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