Cariri foi cogitado para luta armada contra a ditadura e serviu de refúgio a perseguidos políticos
Esta é a quinta reportagem de série do Diário do Nordeste que aborda os 60 anos do golpe que instaurou a Ditadura Cívico-Militar no Brasil e seus desdobramentos no Ceará
"No coração do Nordeste", define o professor e historiador Airton de Farias, ao falar sobre a localização do Cariri cearense. A região, ao sul do Ceará, faz fronteira com outros três estados — Pernambuco, Paraíba e Piauí. No sopé da Chapada do Araripe, a região possui ainda água em abundância — um diferencial em meio ao sertão nordestino. Estes fatores foram importantes para que o Cariri fosse uma das regiões cogitadas para desenvolver a luta armada em combate à Ditadura Cívico-Militar, instaurada no Brasil em 1964. A escolha foi feita por movimentos da esquerda brasileira, influenciados pelos modelos cubano e chinês da revolução comunista.
"Esses revolucionários (vinculados à luta armada) imaginavam que a revolução ia começar no campo. Isso é uma coisa muito forte desses grupos revolucionários. Iam para o campo, instalavam grupos de treinamento para depois, então, fazer um ataque final ao regime", explica Airton de Farias.
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A intenção de implementar o foco guerrilheiro no Cariri nunca foi efetivada, mas as cidades da região cearense acabaram servindo de refúgio e rota de fuga para muitos militantes perseguidos pelo regime militar — além de terem servido, por vezes, de retaguarda para aqueles envolvidos na Guerrilha do Araguaia.
"Foi a contribuição contra o regime", explica o ex-deputado constituinte Eudoro Santana. Sem se envolver na luta armada, Eudoro e a esposa, Ermengarda Sobreira, foram figuras centrais na proteção a militantes perseguidos pela ditadura militar.
"Alguns só passavam. A maior parte era de passagem, de alguns dias. Mas alguns ficaram muito tempo", relembra Eudoro. Junto ao casal, a professora Sílmia Sobreira também foi fundamental no auxílio a quem chegava ao Cariri cearense — uma resistência que acabaria sendo punida com a prisão e tortura anos depois.
Esta é a quinta reportagem da série que trata da Ditadura Cívico-Militar brasileira e seus desdobramentos no Ceará. Desde o domingo (31), data que marca os 60 anos do Golpe Militar de 1964, o Diário do Nordeste publica textos que tratam do regime autoritário que durou 21 anos no País.
A ditadura no Cariri
"Eu considero que houve dois momentos de repressão (no Cariri)", cita o professor e historiador Aurélio Matias. Ele é autor do livro “Resistência, rota de fuga e refúgio: o Cariri cearense na ditadura militar”. Segundo ele, o primeiro momento ocorre ainda em 1964, logo após o golpe militar.
"Quem era ligado à esquerda, especialmente ao Partido Comunista, aos sindicatos, foram todos presos e perseguidos. No primeiro dia (da ditadura), foram presas mais de 100 pessoas e levadas para o Juazeiro (do Norte). Os mais destacados, como Eloi Teles de Moraes, como o Raimundo Bezerra — que depois chega a ser prefeito — foram recambiados para Fortaleza", cita.
Naquele início dos anos 1960, o Crajubar — formado por Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha — já era o eixo central do Cariri cearense. Enquanto Barbalha continuava a ter predominância rural, Crato e Juazeiro já tinham um desenvolvimento avançado, principalmente Crato.
"O núcleo mais importante era o Crato, porque na época tinha uma Faculdade de Filosofia, que foi fundada nos anos 1960. Tinha intelectuais, tinha cinema... Os intelectuais aqui tinham contato com o que acontecia no resto do mundo. Tinham grupos de esquerda que apoiavam o João Goulart, tinha o Partido Comunista (do Brasil, PCB) já organizado, (tinha) a Juventude Comunista desde 1946", detalha Aurélio Matias.
Antes do golpe militar, foram organizados os primeiros sindicatos do Cariri — de categorias como a construção civil e os bancários. Havia sido fundada ainda a União dos Estudantes do Crato em 1946 por Sérvulo Esmeraldo, que se tornaria um dos mais importantes escultores do Ceará, assim como diversos grêmios estudantis nas escolas da região.
"Então, quando se tem o golpe, tinha forças que ficaram contra. Mas também tinha forças que apoiaram", continua o historiador. A ditadura militar recebeu forte apoio da família Bezerra, que, naquele momento, dominava a política no Cariri.
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Em 1962, Humberto Bezerra havia sido eleito prefeito de Juazeiro do Norte pela coligação "União pelo Ceará", formada por UDN e PSD, que a nível estadual também apoiou o golpe militar. Ele foi ainda vice-governador do Ceará na gestão César Cals (1971-1974), ambos indicados pelo regime militar.
Irmão de Humberto, Adauto Bezerra foi governador do Ceará, também indicado pelos militares — os chamados governantes biônicos. "Os Bezerra, que foram a família que se favoreceu com o golpe, manteve o domínio político aqui, a hegemonia, o monopólio, durante 20 anos", relembra Matias.
Além do clã Bezerra, houve apoio de empresários locais e da Igreja Católica. Por conta disso, a cidade chegou a ter duas edições da "Marcha da família com Deus pela Liberdade" — a exemplo do que ocorreu em outras cidades brasileiras, como o Rio de Janeiro, como forma de mostrar apoio ao regime militar.
"O Cariri sempre foi, na nossa visão inclusive política, uma área bastante reacionária nesse ponto", pontua Eudoro Santana, que também cita o domínio dos Bezerra como um exemplo desse conservadorismo.
"Embora a gente fosse descobrir alguns focos (de resistência) e chegamos a trabalhar algumas áreas lá nesse sentido, mas o grosso (era conservador). E Crato era uma cidade, embora mais cultural, mais adiantada do ponto de vista político, era uma cidade muito conservadora do ponto de vista dos prefeitos. O ambiente não era o ambiente muito propício (...), embora comparando com o Juazeiro, o Crato fosse muito mais avançado", reforça.
> Leia o livro "Resistência, rota de fuga e refúgio: o Cariri cearense na ditadura militar" de Aurélio Matias”
AI-5 e a resistência no Cariri
O segundo momento de repressão citado por Aurélio Matias acontece em 1968. Naquele ano, foi editado o Ato Institucional 5, o AI-5, pelo general Costa e Silva, que ocupava a presidência da República. O AI-5 inaugura o período mais repressivo do regime militar até o momento.
Nele, o presidente ficava autorizado a decretar o recesso do Congresso Nacional e de outros órgãos legislativos; a cassar mandatos eletivos; a intervir nos estados e municípios sem as limitações previstas na Constituição; a suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão; a decretar o confisco de “bens de todos quantos tenham enriquecido ilicitamente”; e a suspender a garantia de habeas-corpus.
O endurecimento do regime militar faz com que organizações e partidos políticos precisem passar a funcionar na clandestinidade, assim como políticos e militantes que vinham — de maneira mais ou menos enfática — fazendo oposição à ditadura.
"Quem era daqui, saiu e foi para outros locais. E a turma que fazia movimento nas capitais ou em outros centros, muitos vieram para o Cariri. O Cariri entra nessa rota de fuga quando os grupos de esquerda decidem fazer a resistência armada e a resistência popular", explica Matias.
Dois movimentos — clandestinos, à época — atuam no Cariri naquele período: o PCdoB e a Ação Popular (AP). Um dos principais dirigentes de movimentos de esquerda, Haroldo Lima — que integrou a Ação Popular e depois foi do PCdoB, quando houve uma integração, foi um dos primeiros a chegar ao Cariri, ainda em 1968.
"Ele dizia o seguinte: como eles eram influenciados pela revolução Cubana, que foi nas serras — a guerra, a luta, o confronto — eles foram atrás especialmente de locais de difícil acesso e locais de serra. Pensavam eles, na época, que seriam bons locais de se esconder, de fazer guerrilha, de organizar guerrilhas. Eles achavam que o campo é que teria a força naquele período histórico", explica Aurélio Matias.
Haroldo Lima, que faleceu em 2021, foi um dos entrevistados de Matias para o livro sobre os movimentos de resistência no Cariri. Naquele final da década de 1960, Haroldo Lima era um dos responsáveis por realizar incursões para definição de "áreas de resistência estratégica". E é assim que ele chega ao Cariri.
Com a escolha da região do Araguaia como centro da guerrilha de combate à ditadura, o Cariri passa a servir de "rota de apoio". "Para dar suporte inclusive com hospital, com transporte, naquele momento em que o PCdoB começa a se preparar e deslocam os seus militantes para a Guerrilha do Araguaia", completa Matias.
Refúgio e rota de fuga
Engenheiro civil, Eudoro Santana fez parte da fundação da Ação Popular na Bahia quando ainda morava em Salvador, onde era funcionário da Petrobras. A intenção, explica ele, é que a AP pudesse se transformar em um partido político. "Se idealizou criar um partido que tivesse ligação com a Igreja, que foi a Ação Popular que, na verdade, morreu no nascedouro, porque quando estava se estruturando, veio a ditadura", explica.
Com o golpe, Eudoro foi demitido da Petrobras e retornou a Fortaleza. Antes do retorno, a ligação com a AP acabou sendo motivo da primeira prisão. Na capital cearense, ele relembra que teve uma "participação pequena" junto a AP em funcionamento na cidade. Com a continuidade das perseguições, ele aproveita uma oportunidade de emprego para se mudar para o Cariri.
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Ele chega na região em 1965, quando inicia o trabalho na empresa Cerâmica do Cariri S/A (CECASA), da qual seria diretor poucos anos depois. Neste cargo, ele irá conseguir oferecer emprego a militantes perseguidos pela ditadura.
"A nossa ligação foi mais com aqueles que ou eram da AP ou foram da AP e estavam, naquele momento, no PCdoB", explica. "Eu era um ponto de apoio. Por lá passou muita gente. (...) Nós tivemos lá um ponto de apoio permanente durante anos".
Por meio de mensageiros, os contatos eram feitos e dirigentes da Ação Popular chegavam no Cariri. Alguns passavam poucos dias, usando as cidades de apoio para a fuga da repressão. Outros, por sua vez, passavam meses ou anos.
"Por exemplo, o ex-presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes), o Zé Guedes (José Luis Guedes), morou lá três anos, quase quatro anos. Ele era estudante de Medicina, foi perseguido pela ditadura e acabou indo para lá. Inclusive, depois trouxe a família, a esposa e filhos", relembra.
Naquele momento, Guedes precisava "visitar o Nordeste, precisava andar", fala Eudoro, como parte da atuação dentro da Ação Popular. Por isso, ele passou a trabalhar como vendedor. Como a venda feita por ele era baixa, Eudoro diz que orientava que as vendas feitas na loja física da fábrica fossem colocadas como feitas por Guedes.
Outras figuras centrais na resistência à ditadura, como Wladimir Pomar, que integrava o Comitê Central do PCdoB e chega ao Cariri para atuar na unificação do partido com a Ação Popular, também vai trabalhar na CECASA, por exemplo.
"A Emengarda, na entrevista que eu tive com ela, colocou que eles colocaram uma loja no Juazeiro (...) que era para dar emprego para as pessoas que vinham ficar aqui no Cariri clandestinamente. Ela arrumava escola, arrumava assistência médica. Ela deu sustentáculo a essa turma", cita Aurélio Matias.
"Houve uma montagem de uma rede de apoio para dar refúgio a esses clandestinos", completa o historiador. Além do casal Eudoro Santana e Emengarda Sobreira, Matias destaca ainda a participação da professora Sílmia Sobreira.
"A Sílmia foi uma figura importante, porque não só participava, como era uma pessoa que recebia as pessoas. Para ir para outros estados, trazer pessoas que não conhecia", relembra Eudoro Santana. "Silmia foi uma figura extraordinária. Foi presa também na última vez comigo".
Fim da rota do Cariri
Em 1974, a rota do Cariri é cortada e muitos são presos. Não apenas quem integrava a rede de apoio criado nas cidades cearenses, como também quem veio se refugiar no local. Entre os presos, estão Eudoro Santana e Sílmia Sobreira.
Eudoro relembra que um dos motivos que o levou à prisão foi a ajuda oferecida a José Luis Guedes — que consegue fugir para a França, onde fica exilado e conclui a Faculdade de Medicina. A estrutura para fornecer refúgio aos perseguidos, além de boatos como o de que seria feita uma "guerrilha em cima do Araripe — coisa assim sem nenhum fundamento", também foram usados como justificativa.
"Eu fui sequestrado de casa e fui levado para Juazeiro e, de lá, eu fui encapuzado levado para Recife. (A família passou) 32 dias, coisa assim, sem notícias. Só com 30 dias, 20 e poucos dias, é que os amigos começaram a se mobilizar, a família, e acabou a gente sendo descoberto que estava lá", relembra.
Pesquisador da luta armada no Ceará, Airton de Farias relata a fragilidade desta movimentação não apenas no Estado, como no Brasil.
"Eram grupos pequenos, estudantes de classe média. A ditadura foi se preparando, se organizando e aí vai se ter um massacre. A luta armada no Brasil é muito frágil. Concretamente, não dura três, quatro anos. Se pensar que ainda hoje, por exemplo, existem guerrilhas na América Latina, como na Colômbia, que estão ativos há mais de 40, 50 anos. E no Brasil, esses grupos duraram apenas três, quatro anos (...) Eles foram massacrados, foram derrotados e acabaram depois punidos duramente pelo regime", pontua.
Para Aurélio Matia, existia "muito mais a vontade do que as condições concretas de resistência". Se houve pouca resistência "a altura" do golpe militar em 1964, em 1974 "foi a liquidação completa".
"Mas o trabalho deles eu considero que foi importante, porque ficou a semente, ficou o sentimento de resistência, que esse sentimento depois ele brota. Em 1979, na luta pela anistia, na redemocratização, na eleição (candidatura) do Lula em 1989. Essa história de resistência do povo permanece", reforça.