O que explica a crise entre Câmara e Senado e como isso influencia nas estratégias para 2026
O PontoPoder conversou com cientistas políticas para entender quais os desdobramentos do tensionamento entre as duas casas legislativas
Setembro foi um mês atípico no Congresso Nacional. Habitualmente alinhados — inclusive, em embates contra o Executivo ou contra o Judiciário —, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal tiveram divergências em pautas de grande repercussão social, e a postura adotada por cada uma das casas legislativas levou a insatisfações e atritos entre deputados federais e senadores.
O embate teve como epicentros a Proposta de Emenda à Constituição que dificultava a investigação contra parlamentares, apelidada de PEC da Blindagem, e o avanço do PL da Anistia — transformada, agora, no PL da Dosimetria.
Contudo, a falta de alinhamento se reflete também na demora para pautar projetos de interesse da população, como a isenção do Imposto de Renda — que teve um texto diferente aprovado pelos senadores para pressionar pela análise na Câmara dos Deputados da proposta enviada pelo governo federal.
Ao PontoPoder, cientistas políticas elencam fatores que contribuíram para essa desarmonia dentro do Congresso Nacional. A pressão da opinião pública, a diferença no impacto eleitoral do voto do senador ou do deputado federal em pautas de interesse da sociedade, além do enfraquecimento do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), são alguns dos elementos citados para explicar esse ‘ponto fora da curva’ na relação entre Câmara e Senado.
Os desdobramentos devem interferir diretamente nas estratégias para as eleições de 2026, principalmente em um cenário em que o Senado Federal já vinha sendo central nas articulações eleitorais de partidos como o PL, que quer ter maior domínio sobre a Casa Alta.
E com a credibilidade do Congresso Nacional em baixa – a desconfiança dos brasileiros quanto ao Legislativo federal alcançou 81%, pesquisa divulgada pela Atlas/Bloomberg em agosto – existe ainda uma preocupação quanto às chances de reeleição dos parlamentares no próximo ano.
Isolamento da Câmara dos Deputados
No dia 17 de setembro, a Câmara dos Deputados aprovou a PEC da Blindagem, prevendo a necessidade de autorização do Congresso Nacional para a abertura de ação penal contra deputado federal ou senador pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Após manobra legislativa, a previsão de votação secreta foi recolocada no texto, enviado ao Senado Federal.
Após a aprovação, foram registradas manifestações populares em mais de 30 cidades brasileiras, incluindo todas as capitais, além de críticas contundentes de senadores, incluindo o presidente da Comissão de Constituição e Justiça, senador Otto Alencar (PSD-BA). Ao chegar ao Senado, apenas uma semana depois de ser aceita por deputados federais, a PEC da Blindagem teve reação unânime: foi rejeitada por todos os senadores da CCJ e, na sequência, arquivada pelo presidente da Casa, Davi Alcolumbre (União-AP).
Agora, a discussão sobre a PL da Dosimetria, com a urgência aprovada na Câmara dos Deputados, está travada pela falta de consenso com Alcolumbre.
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A cientista política Priscila Lapa pontua que a relação entre Câmara dos Deputados e Senado é pautada levando em conta justamente esse poder de veto exercido pela outra casa legislativa.
"E o Senado sempre é muito visto com esse poder de veto, de vetar essas iniciativas da Câmara. Claro, a Câmara também pode vetar iniciativas do Senado, mas costumeiramente a produção legislativa da Câmara é muito grande, e o Senado atua como essa casa revisora. Então, esse relacionamento entre os dois sempre leva em conta esse poder de veto que o outro tem sobre as suas medidas e o quanto isso pode gerar mais desgastes do que benesses".
Apesar desse cálculo político, divergência entre as duas casas legislativas, contudo, é um "ponto fora da curva", considera.
"De uma forma geral, nos últimos anos, as duas casas legislativas têm andado muito alinhadas. Até no processo de escolha dos seus dirigentes, existe uma certa formação de consenso da linha política que esses dirigentes terão. (...) E a gente viu também em outros momentos críticos, de conflito com o Executivo e até de conflito com o Poder Judiciário, sobretudo com o STF, em que as duas casas caminharam em bloco dentro de uma estratégia única", detalha.
Para Luciana Santana, cientista política e professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), a crise entre as duas casas legislativas ocorre porque "os interesses e as prioridades da Câmara se inverteram e isso provocou esse mal estar".
"Tem, ao mesmo tempo, a discussão da (proposta de) emenda (da Blindagem) e do projeto da anistia. Sendo que a expectativa, inclusive do próprio Senado, era que se discutisse, por exemplo, a isenção do imposto de renda ou também que já viesse a proposta de reforma administrativa", elenca. "Então, a gente pode falar muito mais do contexto e da forma equivocada do encaminhamento da Câmara, que acabou provocando essas tensões".
A cientista política e professora universitária Paula Vieira acrescenta que esse "enfrentamento" feito agora pelo Senado, ao derrubar decisões e articulações políticas da Câmara dos Deputados, não é um fato isolado. "A impressão que eu tenho é que a gente está vendo uma contraposição à Câmara vindo das instituições políticas", argumenta.
"O Judiciário não é uma instituição política, mas ele tem agido na política. Então, entre os três Poderes, ele vem dentro desse equilíbrio, mas que tem feito um enfrentamento às decisões da Câmara. Nós temos um governo federal que não consegue dialogar com a Câmara dos Deputados. O governo federal não está conseguindo inserir a sua agenda nos processos decisórios da Câmara, nem a Câmara está agindo orientada por uma agenda política que seja em consonância com o Poder Executivo. Por último, a gente tem agora o Senado entrando nesse enfrentamento à Câmara".
Vieira reforça ainda que o Congresso Nacional vive um momento de pouca credibilidade com a sociedade brasileira, o que impulsiona a ação dos senadores — visto que Senado e Câmara dos Deputados são enxergados enquanto "instância única". "O Senado tem tido que responder a essas ações da Câmara que estão desarticuladas com o momento político em que as demais instituições estão envolvidas", diz.
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Fragilidade de Hugo Motta
A presidência de Hugo Motta na Câmara dos Deputados também é citada para explicar o recente tensionamento entre as casas legislativas. Mais especificamente a "pouca legitimidade" de Motta. "Ele está completamente isolado, ele não tem força", diz.
"O Senado vai fazer esse enfrentamento com o presidente da Câmara que está descredibilizado, que tem pouca legitimidade entre os seus. Entre o seu próprio grupo, que é o Centrão, ele não está conseguindo ter forças para tomar as medidas regimentais que sejam favoráveis aos movimentos políticos", completa Vieira.
A cientista política reforça que os presidentes anteriores da Câmara dos Deputados, a começar pelo ex-deputado federal Eduardo Cunha, reforçaram regimentalmente o papel da presidência, concentrando as decisões parlamentares. Rodrigo Maia e Arthur Lira sustentaram essa influência entre os demais deputados federais. Essa concentração se perdeu com Hugo Motta, que, apesar de ainda estar no primeiro ano no comando da Câmara dos Deputados, já passa por desgaste. "A Câmara hoje, diante da liderança de Hugo Motta, tem se mostrado mais vulnerável", resume Luciana Santana.
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Tal situação é agravada pelo nível de visibilidade que a Câmara dos Deputados tem tido diante da opinião pública, um movimento também iniciado durante a presidência de Eduardo Cunha — um dos responsáveis pela articulação para o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
"A fragilidade do presidente e a instituição visada são dois ingredientes não muito desejáveis", continua Santana. "Isso acaba deixando as vulnerabilidades da Câmara em evidência, e isso é muito ruim".
Cálculo eleitoral para 2026
Uma das consequências desses embates é a demora na análise de propostas importantes na agenda da população, como foi o caso da isenção do imposto de renda para quem recebe até R$ 5 mil por mês. O assunto demorou a ser pautado na Câmara dos Deputados, o que levou a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado a aprovar um texto alternativo, no dia 24 de setembro.
Uma semana depois, nesta quarta-feira (1º), os deputados federais aprovaram, por unanimidade, o texto enviado pelo Governo Lula. Agora, esse projeto segue para análise do Senado, antes de ir para a sanção presidencial.
Para Priscila Lapa, o que vai determinar se a crise entre Câmara dos Deputados e Senado Federal vai perdurar será como ficam a tramitação de pautas importantes para a população — e que podem ter repercussão eleitoral para os parlamentares.
"O que pode determinar o rumo que essas pautas terão em cada uma dessas casas legislativas é a tentativa de encontrar esse espaço de protagonismo junto à opinião pública, cada um está mirando fortemente nisso".
"A tentativa de otimizar as propostas, de cada um tentar trazer uma proposta que, ao mesmo tempo, contemple os interesses da classe política, mas sinalize para a população; é o que vai pautar efetivamente, mais do que propriamente o conflito em si entre as duas casas. É como se fosse assim: se tiver que criar um conflito, a gente até cria, contanto que ganhe protagonismo e ganhe proeminência perante a população".
Paula Vieira pontua que, para os senadores, as repercussões eleitorais são ainda mais preocupantes. Em 2026, além de estarem em disputa dois terços das cadeiras dos senadores – ou seja, 54 das 81 vagas —, a eleição para a Casa Alta é também majoritária, exigindo a maioria dos votos para conquistar o mandato.
Na Câmara dos Deputados, por outro lado, a escolha é feita pelo sistema proporcional, "então, o deputado não precisa de uma maioria de votos, ele precisa de um recorte de votos", explica. Para ela, o desgaste de votar em pautas negativas é menor para os deputados federais.
"Um eleitor que vê um deputado votando contra uma medida que seria a favor da população, pode ser que ele diga: 'não, não voto mais'. Mas, normalmente, o deputado tende a ter um contato com a base eleitoral mais próxima, inclusive pela própria questão do orçamento, porque temos o orçamento que ele direciona para aquela base. Então, a base não fica desassistida de tudo", afirma.
Exatamente por sentir mais o impacto eleitoral de decisões que contrariem a opinião pública, como no caso da PEC da Blindagem, e da falta de credibilidade do Congresso Nacional, é que os senadores tem "esse fôlego de reação para poder parar ali essas decisões" da Câmara dos Deputados.
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Luciana Santana alerta que, com o modelo de "freios e contra pesos" sendo usado pela Casa Alta para barrar decisões da Câmara dos Deputados, a tendência é que se fortaleça a disputa para ter maioria no Senado a partir de 2027 — o que pode deixar o Legislativo "sem um ponto de bloqueio importante", na avaliação da cientista política.
"Há uma estratégia muito bem articulada de tentar ampliar, por exemplo, o número de bolsonaristas na casa, mas não com as vistas de tentar melhorar e qualificar a produção legislativa, mas para fazer frente ao Judiciário", argumenta.
Até lá, a projeção feita por Priscila Lapa é de que as duas casas legislativas tendem a entrar em um "caminho de equilíbrio" para voltar a construir consensos dentro do Congresso Nacional. "Os interesses comuns de performar bem perante a opinião pública e de interferir diretamente nas políticas que o Executivo vai propor e até ganhar protagonismo nesta pauta contra as ações que são consideradas excessivas do Poder Judiciário, de certa forma, unem mais do que separam essas duas casas legislativas", ressalta.