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Litígio Ceará x Piauí: antes de ação no STF, plebiscito queria consultar população sobre disputa

A expectativa era realizar plebiscito com as eleições, mas a medida acabou nunca sendo votada na Câmara dos Deputados

Escrito por Luana Barros , luana.barros@svm.com.br
Urna eletrônica
Legenda: A perspectiva é de que o plebiscito poderia ser realizado junto com as eleições
Foto: Fabiane de Paula

A expectativa para os próximos dias é de que o Exército brasileiro divulgue os resultados da perícia na área de litígio entre o Ceará e o Piauí. Os estudos foram determinados pela relatora do caso no Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, e devem embasar o julgamento sobre o caso. Após pedido de adiamento do próprio Exército, o prazo para apresentação das conclusões encerra nesta sexta-feira (28).

O governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), disse que a expectativa "é muito positiva" quanto às conclusões do Exército, principalmente de que a análise "considere o aspecto populacional de pertencimento da população da região da Ibiapaba com os estados que estão no litígio". "Toda a população tem um sentimento de pertencimento ao estado do Ceará", disse no dia 17 de junho, quando indagado sobre os próximos passos do processo no Supremo.  

O pertencimento da população que vive nos quase 3 mil quilômetros do território cearense reivindicado pelo Piauí tem sido um dos argumentos mais utilizados por autoridades do Ceará para defender a permanência destas terras com o estado. 

A premissa não é novidade. Antes mesmo do Piauí ajuizar a Ação Cível Originária 1831 — no qual questiona o limite entre os dois estados — em 2011, projeto de Decreto Legislativo foi apresentado pelo então deputado federal cearense Raimundo Gomes de Matos para convocar plebiscito com a população residente em "áreas geográficas dos Estados do Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte". 

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"Com o objetivo de identificar e formalizar os limites territoriais interestaduais, visando superar a existência da indefinição vigente e promover o desenvolvimento destas áreas e favorecer o bem-estar das comunidades ali residentes", detalha o texto da proposta, apresentada na Câmara dos Deputados em 2009.

O projeto de lei foi rejeitado duas vezes na Comissão de Constituição e Justiça na Câmara dos Deputados, mas continuou a ser desarquivado ao longo das legislaturas, até que foi arquivado de forma definitiva em 2019 — dez anos depois de ser apresentado na casa legislativa. 

'Sentimento de pertinência'

Na justificativa do projeto de lei, a necessidade de ouvir a população dos estados sobre os limites é reforçado.

"A população local deve ser consultada sobre seu sentimento de pertinência: a qual Estado e Município se sentem parte? Por mal ou por bem, os limites são conhecidos, apenas não são formalmente reconhecidos pela Administração Pública nos três níveis de governo, mas o são pelas comunidades locais. De modo que cabe identificar quais seriam esses limites no saber popular e na cultura local", descreve o texto.

Ainda segundo a proposta, cerca de 10 mil brasileiros viviam, naquele ano, nos limites entre o Ceará e o Piauí e entre o Ceará e o Rio Grande do Norte — neste último caso, não há nenhuma disputa judicial sobre os limites. 

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"Por uma série de fatos de natureza histórica, cerca de dez mil brasileiros são privados dos elementos essenciais ao exercício da cidadania, pois desconhecem, formalmente, em qual Estado e Município estão situadas as localidades onde vivem", continua a justificativa do projeto. 

No ano em que o projeto de Decreto Legislativo foi apresentado na Câmara dos Deputados, a disputa territorial entre Ceará e Piauí não tinha chegado à Justiça, mas o impasse é histórico e remonta ao período do Brasil Imperial. 

> Confira o texto completo do Projeto de Decreto Legislativo 

Em entrevista ao Diário do Nordeste, Raimundo Gomes de Matos — hoje, presidente da Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci) da Prefeitura de Fortaleza — explica que a ideia para o projeto de lei surgiu a partir de um impasse sobre distribuição de recursos. 

Na época, ele era relator de projeto de lei que tratava do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). "E aí surgiu de novo aquela questão de para onde iam os recursos do SUAS. Para o Ceará? Para o Piauí? Essa questão toda", lembra. Ele afirma que essa não foi a primeira vez em que o parlamento se deparou com o problema. 

"Nas competências do Congresso Nacional, está lá problema de terra indígena, questão de recursos hídricos, questão de riquezas minerais. E também é competência do Congresso Nacional dirimir essas questões limite interestadual. Se fosse uma coisa, vamos supor, entre Crateús e Quiterianópolis, é Assembleia Legislativa. Mas é uma coisa entre Ceará e Piauí, então é de competência do Congresso Nacional", ressalta.

'Inconstitucionalidade'

A proposta foi aprovada por unanimidade, em 2010, na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, mas acabou sendo barrada na CCJ no mesmo ano. 

Neste colegiado, o então deputado federal Paes Landim, do Piauí, foi designado relator e votou pela inconstitucionalidade do projeto. Segundo o parlamentar, "não cabe e não pode a União decidir pela convocação de plebiscito para a discussão do tema".

"Se há dúvida ou litígio, o ponto de partida natural e necessário para estabelecer a discussão é a existência de norma legal que tenha disposto sobre tais limites, não a 'vontade da população'", diz o voto do relator. 

Ele diz ainda que os "limites entre Estados existem, juridicamente e fisicamente falando" e usa, no voto, o Decreto nº 3.012, de outubro de 1880, como base para a alteração da linha divisória das, na época, províncias do Ceará e do Piauhy. O mesmo decreto, assinado pelo imperador D. Pedro II, foi usado para embasar a ação ajuizada pelo Piauí no STF em 2011. 

Após o voto pela inconstitucionalidade de Paes Landim, o projeto de Decreto Legislativo acabou sendo arquivado, conforme regra do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Apesar de ter dado parecer contrário à proposta, o relator não levou o texto para votação. "Ele sentou em cima e nunca botou, na CCJ, essa matéria pra ser votada", relembra Gomes de Matos.

Reeleito deputado federal nas eleições de 2010, Raimundo Gomes de Matos pediu o desarquivamento da proposta. Na época, a expectativa era tentar realizar o plebiscito junto às eleições municipais de 2012. A primeira comissão a analisar o texto foi a da Amazônia, Integração Nacional e de Desenvolvimento Regional. Entre idas e vindas, o projeto ficou sob análise deste colegiado por mais de um ano — tempo em que teve três relatores designados e uma mudança no texto. 

O último relator do projeto, o deputado federal Plínio Valério, do Amazonas, apresentou substitutivo no qual determinava que o plebiscito deveria consultar toda a população dos estados do Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte — não apenas os que viviam nas áreas atingidas pelo litígio. 

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Em setembro de 2013, o projeto foi encaminhado à CCJ e o parecer ficou novamente a cargo do deputado Paes Landim, que votou pela inconstitucionalidade da matéria com as mesmas justificativas apresentadas três anos antes. Mais uma vez, o projeto foi arquivado em 2015, com o fim da legislatura.

Com o início de uma nova legislatura, em 2015, o projeto voltou a ser desarquivado por Raimundo Gomes de Matos, mas a tramitação não avançou e o projeto foi arquivado de forma definitiva em 2019. "Quando a gente perde a eleição, quando a gente não está (no mandato), não tem mais o poder de levar o projeto à frente. Aí o projeto morreu", disse.

"Ao meu modo de ver, eu ainda continuo com meu pensamento: não tinha nada de pedir o Supremo para deliberar sobre esse assunto e pedir o Exército brasileiro pra ir lá fazer delimitação da área. Quem tem que dizer se quer ficar no Ceará ou no Piauí é a população", completa. 

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