Entenda a crise no Enem e o que a política tem a ver com isso
Um impasse que parecia relacionado às rotinas técnicas do Inep acabou expondo nova crise política no Governo
O Ministério da Educação enfrenta uma nova crise institucional, desta vez com desenrolar às vésperas da realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) - principal meio de acesso às universidades no Brasil. Pedido de exoneração coletivo de servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pela realização das provas, evidenciou cenário de fragilidade dentro do órgão.
Denúncias de assédio moral, desmonte da entidade e desvalorização de aspectos técnicos durante a tomada de decisões - inclusive com acusação de interferências políticas na elaboração do Enem - geraram desconfiança sobre a atuação do Instituto.
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Especialistas e parlamentares têm, como primeira preocupação, o modo como esta crise envolvendo o Inep e o Ministério da Educação pode impactar na taxa de comparecimento dos estudantes no Enem 2021 - que já teve o menor número de inscritos desde 2005. A primeira prova do exame ocorre neste domingo (21).
"Nós não podemos ser muito alarmistas. Quando os servidores pediram demissão, a prova já estava na gráfica e a logística já estava pronta. Temos que torcer para que não afete as taxas de comparecimento", ressalta o coordenador de políticas educacionais do Todos pela Educação, Ivan Gontijo.
Apesar disso, consideram que o atual conflito é resultado de um processo em andamento desde o início do Governo Bolsonaro. A descontinuidade na gestão do Ministério da Educação - que contou com quatro ministros e cinco presidentes do Inep em menos de três anos de mandato - e os discursos do próprio presidente quanto às políticas educacionais já indicavam a condução escolhida para a área no País.
Pedido coletivo de exoneração
Ainda na primeira semana de novembro, os dois primeiros servidores pediram exoneração de cargos no Inep, ambos ligados à realização do Enem. Foram eles o coordenador-geral de Logística da Aplicação, Hélio Júnio Rocha Moraes, e o coordenador-geral de Exames para Certificação, Eduardo Carvalho Sousa.
O Ministério da Educação chegou a pedir uma reunião com o atual presidente do órgão, Danilo Dupas, para entender a situação. Ex-presidentes do Inep, inclusive, intercederam junto ao ministro da Educação, Milton Ribeiro, para que conversasse com Dupas para impedir uma debandada - o que não foi atendido.
Assim, no último dia 8 de novembro, 37 servidores ligados ao Inep realizaram um pedido coletivo de exoneração de suas atribuições no órgão. Todos são funcionários experientes e participaram da organização de várias provas do Enem, estando à frente de cargos de coordenação dentro do Instituto.
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Quinto presidente do Inep no Governo Bolsonaro, Dupas foi acusado por funcionário de desmonte do órgão mais importante do MEC, assédio e desconsideração de aspectos técnicos na tomada de decisões. A carta de demissão alega ainda que a entrega dos cargos ocorreu por causa da "fragilidade técnica e administrativa da atual gestão máxima do Inep".
Garantia de realização do Enem
Com o agravamento da crise, Danilo Dupas foi convocado para prestar esclarecimentos em audiência na Câmara dos Deputados, realizada no último dia 10. Na ocasião, garantiu que a demissão em massa não iria interferir na realização do Enem, já que as "fases preparatórias foram concluídas" e o órgão estava "absolutamente preparado" para as aplicações.
Além disso, ele rebateu as acusações feitas pelos servidores e disse não compactuar com assédio moral. "Até o momento, não há nenhum ato administrativo meu retirando quaisquer responsabilidades do cargo que ocupo", afirmou.
Dupas negou ter exposto qualquer funcionário à humilhação e se colocou à disposição para investigar qualquer denúncia feita formalmente. Defendeu, além disso, que sua gestão é "aberta" e está em "constante diálogo" com quadro de funcionários.
Sobre as saídas dos servidores, o presidente Jair Bolsonaro disse ter conversado "muito rapidamente" com o ministro da Educação. "Seria bom vocês conversarem com eles, o que levou àquelas demissões. Não quero entrar em detalhes, mas é um absurdo o que se gastava com poucas pessoas lá. Um absurdo, tá?", disse. Ele classificou o titular da Pasta como uma "pessoa séria", e a situação como "inadmissível".
Ministro da Educação, Milton Ribeiro alegou que o pedido de exoneração por parte dos funcionários teve como causa um "fator econômico".
"A parte mais doída do ser humano é o bolso. Se estivessem só interessados na educação, após o Enem teriam me procurado e feito um movimento", alegou, afirmando também que os servidores "tentaram colocar em risco" a execução da prova.
"A cara do governo"
Ribeiro também negou, nesta quarta-feira (17), qualquer tentativa do governo federal de controlar ideologicamente as questões do exame nacional. A declaração ocorreu após surgirem, nesta semana, denúncias de alteração de questões da prova após "leitura crítica".
Segundo servidores do órgão, algumas foram consideradas "sensíveis". Teriam sido retiradas 24 questões, das quais 13 acabaram sendo reinseridas. Ribeiro afirmou, no entanto, que as mudanças foram feitas "de forma colegiada" e que não participa “diretamente da gestão das questões".
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O ministro alegou ainda que "não houve interferência" nem "veio ordem de cima" para determinar as mudanças e que apenas "algumas pessoas podem ter acesso" à prova do Enem "em uma sala secreta".
No entanto, apenas dois dias antes, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que o Enem "começa a ter a cara do governo". A afirmação foi concedida em entrevista na Expo Dubai, nos Emirados Árabes, na última segunda-feira (15).
"Começam agora a ter a cara do governo as questões da prova do Enem. Ninguém precisa agora estar preocupado com aquelas questões absurdas do passado, o tema da Redação não tinha nada a ver com nada. Realmente é algo voltado ao aprendizado".
Após o agravamento da crise por causa da fala, o presidente negou ter visto as questões da prova: "Não, não vi. Eu não vejo, não tenho conhecimento".
Investigação das denúncias
A crise enfrentada pelo Inep acabou gerando mobilizações também em outros órgãos e instituições, como é o caso do Congresso Nacional. Além da convocação do presidente do Instituto para prestar esclarecimentos, deputados federais entraram com representação para investigar as denúncias feitas pelos servidores.
Integrante da Comissão de Educação da Câmara, Idilvan Alencar (PDT) diz que a declaração do presidente da República acabou gerando "um clima de desconfiança", principalmente porque "não é de agora que eles ameaçam a interferência". O parlamentar cearense foi um dos que assinou representação enviada ao Tribunal de Contas da União.
O órgão de controle abriu, nesta sexta-feira (19), investigação para apurar as denúncias contra a gestão de Danilo Dupas. Além da investigação quanto aos fatos denunciados por servidores, os deputados também pediram o afastamento do presidente do Inep.
Outros processos semelhantes foram ajuizados, seja por entidades da sociedade civil seja por instituições ligadas à Justiça. A Defensoria Pública da União (DPU) cobrou provas do Inep de que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) será realizado em segurança.
Já a Justiça Federal no Distrito Federal rejeitou, nesta quinta-feira (18), um pedido de entidades educacionais para afastar o presidente do Inep, Danilo Dupas. Apesar disso, o juiz Marcelo Rebello Pinheiro, da 16ª Vara Federal de Brasília, reconheceu que a atual crise no órgão pode ‘representar indício de má gestão ou abuso de poder’.
Avaliação da gestão da Educação
Para Idilvan Alencar, o conflito interno vivenciado pelo MEC e pelo Inep às vésperas do Enem é "intencional", com objetivo de "fazer bagunça às vésperas do Enem"
"Infelizmente, este governo e a 'ruma' de ministros que passam por lá - cada um pior que o outro - são PhD em causar confusão e prejudicar a Educação. É uma sucessão de trapalhadas".
Também integrante da Comissão de Educação da Câmara Federal, o deputado Dr. Jaziel (PL) considera que os servidores que pediram exoneração é que querem "tumultuar". "É uma polêmica inventada. Aqueles funcionários resolveram tumultuar o trabalho do ministro e do presidente do Inep. Não tem fundamento o que estão fazendo. É para complicar, para o Enem não acontecer", discorda.
Aliado ao presidente Jair Bolsonaro, o parlamentar cearense afirma que a declaração de que o Enem teria "a cara do governo" foi só uma demonstração do jeito "espontâneo" do mandatário.
"A cara do governo porque está cobrando do aluno o que é para cobrar. O que o aluno vai precisar. Essas questões ideológicas não devem existir".
Perda de credibilidade do Inep
Especialistas entrevistados pelo Diário do Nordeste apontam que o principal impacto desta crise é na credibilidade do Inep, inclusive pela relevância que tem dentro da gestão e criação de políticas educacionais no País.
O órgão é considerado o mais importante na estrutura do Ministério da Educação, já que, além de ser responsável por avaliações e exames educacionais - como o próprio Enem -, também é responsável por calcular os indicadores educacionais - como o Censo Escolar - e também pelos dados que irão embasar a transferência de recursos para Educação nos Estados e municípios.
"O Inep é um órgão que precisa ter uma reputação ilibada. Essas denúncias que estão sendo feitas quanto ao Enem, de interferência política, (assim como) essa troca de comando, colocam em risco esse papel fundamental e a reputação do órgão".
Ele descreve a recente crise como "a ponta do iceberg de coisas mais profundas que vêm ocorrendo na Educação no Governo Bolsonaro". A primeira delas é a descontinuidade no Ministério da Educação e nos órgãos vinculados a ele, afirma.
Em menos de três anos de gestão, foram quatro ministros da Educação, enquanto o Inep teve cinco presidentes, por exemplo. "Toda hora, ocorrem mudanças muito grandes e o que todas essas pessoas têm em comum é: ninguém está preparado para comandar esse órgão", ressalta.
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Professor da Universidade Estadual do Ceará, Nilson Cardoso ressalta que esta "talvez seja a pior crise no campo educacional que tenhamos visto". Uma eventual perda de credibilidade do Inep pode, inclusive, reverberar no próprio Enem - principalmente, se as investigações comprovarem as denúncias de interferência ou de quebra de sigilo.
"A longo prazo, pode destruir uma política de acesso ao ensino superior que foi muito bem estabelecida", afirma. "O governo não deveria destruir estruturas que são de Estado, como é o caso do Enem e do Inep, que tinha sua autonomia, tinha suas regras e que vinham sendo respeitadas", pontua.