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Com menos de 30 mil habitantes — segundo o Censo 2022 — os municípios Novo Oriente, no Sertão de Crateús, e Parambu, nos Inhamuns, são apenas o 67º e o 61º mais populoso do Ceará. As prefeituras dessas cidades, no entanto, estão entre as cinco mais “lembradas” por deputados e senadores na hora de indicar emendas impositivas. 

Considerando o rol de cidades mais beneficiadas no intervalo de janeiro de 2015 a dezembro do ano passado, elas ficam atrás apenas de áreas metropolitanas, como Maracanaú e Fortaleza. Nesta lista, figura ainda Tauá, no Sertão dos Inhamuns, que tem uma população de 61,2 mil habitantes, mas é a quarta cidade do Estado mais beneficiada com emendas impositivas. 

Municípios como Caucaia, Juazeiro do Nordeste, Sobral, Itapipoca e Maranguape, que chegam a concentrar até dez vezes mais cearenses, ficam atrás no volume de recursos indicados pelos congressistas. Os dados foram coletados pelo Diário do Nordeste a partir do Painel de Emendas, do Tesouro Nacional. 

Esses valores incluem as três modalidades de emendas impositivas adotadas atualmente no País: as emendas individuais de transferência com finalidade definida — quando os parlamentares indicam a destinação final do recurso —, as emendas de bancada estaduais — que são propostas coletivamente pelos deputados e senadores de cada estado — e as emendas individuais de transferência especial (emendas Pix) — as mais cobiçadas pelos gestores.

É sobre esses municípios mais “lembrados” pelos parlamentares que trata esta reportagem. Ela integra uma série produzida pelo Diário do Nordeste sobre os dez anos das emendas impositivas no Brasil e como o recurso é aplicado e distribuído no Ceará.

Nesta sequência de reportagens, o Diário do Nordeste conversa com deputados, prefeitos, cientistas políticos e consultores de finanças públicas para traçar um panorama das transformações provocadas desde o “marco zero” das emendas impositivas até hoje. As matérias também discutem o futuro do orçamento brasileiro e apontam caminhos para garantir mais transparência no uso dos recursos públicos.

Congresso Nacional

Apesar de serem emendas impositivas, em muitos municípios os recursos podem ficar “travados” por pendências entre a prefeitura e a União ou mesmo pela falta de cobrança dos deputados.

Presidente da Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece) e ex-prefeito de Jaguaribara, Joacy Júnior (PSB), conhecido como Juju, defende que, principalmente para as cidades de pequeno porte, as emendas impositivas viraram essenciais para ampliar os investimentos.

“É um fortalecimento para projetos específicos e para resolver demandas locais, diminuindo a dependência dos programas federais. Para locais com pouca capacidade de arrecadação, elas ajudam a suprir essas necessidades que não são atendidas pelos programas federais. Além disso, garante previsibilidade de recurso, a previsibilidade para investir”, aponta.

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“Mais lembrados”

Com maior volume populacional do Estado, Fortaleza é também a cidade  que recebeu, ao longo do período de dez anos, o maior volume de indicação de emendas impositivas, totalizando R$ 175,7 milhões, sendo 74% de emendas individuais com finalidade específica.

Em 2015 — primeiro ano de emendas impositivas no Brasil —, o volume destinado para Fortaleza foi de aproximadamente R$ 2 milhões. Ao longo dos anos, o montante sofreu oscilações, chegando ao pico de indicações em 2023, quando os deputados e senadores destinaram R$ 78,9 milhões à Capital. Considerando o montante de R$ 175,7 milhões indicados ao longo dos dez anos, a Saúde municipal foi a principal beneficiada, com R$ 131,3 milhões.

Com 234,3 mil habitantes — a quarta maior do Estado —, Maracanaú é a segunda cidade mais beneficiada com emendas impositivas. Em 10 anos, foram R$ 138,9 milhões destinados ao município, sendo 69,4% de emendas individuais com finalidade específica. Só no ano passado, as indicações atingiram a ordem de R$ 22 milhões. A saúde também foi o principal destino dessas emendas, recebendo uma injeção de R$ 117,5 milhões ao longo dos anos.

A cidade de Maracanaú tem uma longa tradição de representação no Congresso Nacional e influência na política cearense, principalmente com seu atual prefeito, Roberto Pessoa (União), que já foi deputado federal e apoiou a eleição da filha e deputada federal Fernanda Pessoa (União).

Entre as gestões de menor porte, a mais “lembrada” pelos pelos congressistas na hora de enviar as emendas é a de Parambu. Em dez anos, R$ 99,3 milhões tiveram como destino o município — dos quais 56,5% foram de emendas com finalidade específica. O maior repasse ocorreu no ano passado, totalizando um montante de R$ 22,1 milhões.

No caso da cidade, a influência política passa pela família Noronha, liderada pelo ex-deputado federal Genecias Noronha. O político, que chegou a ser cassado em pelo Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) em 2020, conseguiu eleger o filho, Matheus Noronha (PL), para o mesmo cargo em 2022. À época, o então candidato recebeu 72,2% dos votos dos parambuenses para seguir os passos do pai. Parambu, inclusive, é comandada por um sobrinho do ex-parlamentar, o prefeito Rômulo Noronha (Solidariedade).

Em 2022 e 2023, na série “Rota das Emendas”, o Diário do Nordeste mostrou a influência do deputado federal Genecias Noronha sobre Parambu. No primeiro ano, a cidade recebeu um incremento de R$ 13,2 milhões para financiar ações da saúde pública. Todo o recurso partiu de emendas do parlamentar. No ano seguinte, ele indicou mais R$ 17,2 milhões. 

Essa influência familiar na política aparece também em Tauá, que tem como principal representante em Brasília o deputado federal Domingos Neto (PSD), filho do ex-vice-governador Domingos Filho (PSD) e da prefeita de Tauá, Patrícia Aguiar (PSD). Ele também é irmão da vice-prefeita de Fortaleza, Gabriella Aguiar (PSD).

Entre 2015 e 2024, a cidade recebeu a indicação de R$ 89,6 milhões em emendas impositivas — sendo a maior fatia aplicada na saúde pública municipal. Do total, 53,2% foram recursos com finalidade definida. Os repasses seguem em uma crescente anual e, no ano passado, totalizaram R$ 38 milhões. Em 2023, uma reportagem do Diário do Nordeste mostrou a influência do deputado federal Domingos Neto sobre o repasse de recursos para o Município. À época, ele havia indicado mais de R$ 14 milhões em emendas.

Já em Novo Oriente, que completa a lista de principais beneficiados, o volume de repasses chegou a R$ 89,4 milhões nos dez anos. Diferente de outros municípios do topo dessa lista, a cidade é contemplada principalmente pelas chamadas “emendas Pix”, que representam 56% do volume destinado pelos deputados e senadores. 

Os recursos, em sua maioria, são enviados para a gestão municipal, não para fundos específicos, como o da Saúde. O maior repasse ocorreu em 2023, quando os congressistas indicaram R$ 29,4 milhões para o município. No ano passado, o valor injetado foi de R$ 25,7 milhões, de acordo com os dados do Tesouro Nacional.

As emendas Pix são as mais cobiçadas pelos gestores, já que os recursos são transferidos diretamente para os destinatários, cortando caminhos burocráticos. Ao mesmo tempo, essa modalidade é a mais polêmica, justamente pela falta de transparência. Nela, os recursos repassados não dependem de celebração de convênio e passam a integrar a conta dos entes (municípios, por exemplo) no ato da transferência financeira.

Inclusive, o maior aporte único recebido pela gestão de Novo Oriente ocorreu no ano passado, com uma emenda Pix de R$ 7 milhões enviada pelo deputado federal Matheus Noronha, que tem a sua base eleitoral na vizinha, Parambu. Em 2023, o deputado Dr. Jaziel (PL) também destinou um valor significativo para a cidade, de R$ 5,7 milhões.

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Articulação em Brasília

Os deputados Dr. Jaziel e Matheus Noronha também são citados por Maria Aparecida Mota da Silva, gerente de comunicação institucional da Prefeitura de Novo Oriente. Em nota enviada ao Diário do Nordeste, ela aponta que o município é tão “lembrado” pelos parlamentares por conta da “combinação de muito trabalho e capacidade de articulação” do ex-prefeito Neném Coelho, que lidera o grupo governista municipal. Atualmente, a cidade é comandada por Eduardo Coelho (PSB), sobrinho do ex-gestor.

Ela também citou os deputados José Airton Cirilo (PT), José Guimarães (PT) e Luizianne Lins (PT) e os ex-deputados Genecias Noronha e Pedro Augusto Bezerra como mais atuantes na região.

“O Município faz o dever de casa, organiza suas finanças para ter recursos de contrapartida e define ações estratégicas priorizando desenvolvimento e mais qualidade de vida aos munícipes. Além de ter votado, juntamente com seu grupo político, em boa parte dos parlamentares que destinaram as emendas ao Município, Neném sempre teve um bom trânsito político”, argumenta a gerente.

Segundo ela, os recursos recebidos já foram usados para diversas ações, incluindo a construção de moradias, a implantação do Distrito Industrial, a perfuração de poços, entre outros investimentos.

“Em Novo Oriente, os recursos das emendas parlamentares, ao invés de motivo de escândalos, são sinônimo de revolução administrativa e desenvolvimento econômico-social nas mais diversas áreas, não apenas de imediato e a curto prazo, mas com reflexos a longo prazo e por muitos anos”, conclui.

As gestões de Parambu e Tauá foram procuradas pela reportagem, mas não houve retorno até a publicação desta matéria.

Impacto das emendas impositivas

Seja tendo como destino municípios de grande, médio ou pequeno porte, cientistas políticos apontam uma situação de desequilíbrio na distribuição dos recursos dessas emendas.

A professora de graduação e pós-graduação em Direito da Unifor e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Mariana Dionísio de Andrade, argumenta que, como o envio dos valores depende da articulação política no Congresso, alguns municípios ficam em desvantagem por não terem representação na Câmara ou no Senado.

“Municípios com mais articulação política (ou com prefeitos aliados a parlamentares influentes) recebem mais recursos, enquanto outros ficam à margem. Isso reforça desequilíbrios dentro dos próprios estados. Além disso, muitas prefeituras pequenas não têm estrutura para executar os projetos indicados pelas emendas, o que leva à ineficiência ou mesmo ao desvio de recursos”, ressalta.

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Fernando Moutinho, consultor de orçamento do Senado Federal e professor universitário, reforça que há destinações “brutais” de recursos “que não se justificam em função de nenhum critério legítimo de política pública”. 

“A própria priorização dessas despesas, mesmo sendo de interesse local, já é uma distorção. E dentro desse universo, ainda há uma desigualdade brutal. Ou seja, os cidadãos não são mais iguais perante a lei, um cidadão que mora em um município que não é favorecido por um deputado acaba não sendo igual a um que mora em um com interesse de algum deputado”
Fernando Moutinho
Consultor de orçamento do Senado Federal e professor universitário

Municípios na mira do MPF

Na esteira da ofensiva promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2022 para garantir  transparência pública na destinação de emendas — mostrada na primeira reportagem desta série —, alguns municípios cearenses são investigados por suspeitas de desvio dos recursos públicos oriundos de emendas impositivas. 

Conforme revelou o Diário do Nordeste em janeiro deste ano, 81 prefeituras do Ceará beneficiadas com emendas Pix são investigadas pelo Ministério Público Federal (MPF). Nacionalmente, as apurações se estendem a mais de 400 municípios. 

>> VEJA A LISTA DE MUNICÍPIOS INVESTIGADOS

Além do MPF, a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público do Ceará (MPCE) têm investigações em andamento no Ceará contra um suposto esquema criminoso com uso ilegal de emendas parlamentares e compra de votos no Estado.

Em uma série de reportagens publicadas entre dezembro do ano passado e janeiro deste ano, o Diário do Nordeste revelou ainda detalhes da investigação contra o prefeito eleito, foragido e cassado de Choró, Bebeto Queiroz (PSB). Ele é apontado como o principal articulador do grupo criminoso.

>> CONHEÇA DETALHES DA INVESTIGAÇÃO

De acordo com os investigadores, o mandatário usava empresas em nome de “laranjas” para desviar o dinheiro oriundo do orçamento federal. Uma das empresas atribuídas ao gestor celebrou contratos com quase 50 prefeituras do Ceará. Tais acordos são investigados pela PF.