A cada R$ 100, R$ 99 para a Saúde: como Camilo, Izolda e Elmano usaram as emendas de bancada do CE

Diante de algumas dezenas de autoridades, na inauguração do Hospital Universitário do Ceará (HUC), no último mês de março, o governador Elmano de Freitas (PT) começou seu discurso fazendo um “agradecimento especial”. Os homenageados foram os deputados e senadores da bancada federal cearense. O reconhecimento era justificado, os parlamentares foram responsáveis por enviar, desde a gestão do ex-governador Camilo Santana (PT), valores milionários para auxiliar o Estado a tirar do papel a ideia de criar o maior hospital público do Ceará.
Parte desses recursos saiu de emendas individuais desses parlamentares, mas a maior parcela teve como origem as emendas de bancada do Ceará. Desde 2019, essa modalidade de indicação do Orçamento da União passou a ser de execução impositiva, portanto, os deputados e senadores de cada estado e do Distrito Federal entram em um consenso, indicam como deve ser aplicado o investimento e o Executivo Federal envia o montante.
É sobre o destino desses recursos enviados ao Governo do Estado do Ceará que trata esta reportagem. Ela integra uma série produzida pelo Diário do Nordeste sobre os dez anos das emendas impositivas no Brasil e como o recurso é aplicado e distribuído no Ceará.
Nesta sequência de reportagens, o Diário do Nordeste conversa com deputados, cientistas políticos e consultores de finanças públicas para traçar um panorama das transformações provocadas desde o “marco zero” das emendas impositivas até hoje. As matérias também discutem o futuro do orçamento brasileiro e apontam caminhos para garantir mais transparência no uso dos recursos públicos.
Desde que as emendas de bancada tornaram-se impositivas, o Hospital Universitário do Ceará tornou-se um dos principais resultados desse alinhamento entre o Governo do Estado e os parlamentares federais. A pedido do Executivo cearense, houve mobilização para investimentos no combate à pandemia da Covid-19 e para a construção do Centro Integrado de Segurança Pública (Cisp), por exemplo.
Ao todo, atualmente, há três modalidades impositivas no Brasil: as emendas individuais de transferência com finalidade definida — quando os parlamentares indicam a destinação final do recurso —, as emendas de bancada estaduais — que são propostas coletivamente pelos deputados e senadores de cada estado — e as emendas individuais de transferência especial (emendas pix).
Assim como o governador Elmano de Freitas definiu na inauguração do Hospital Universitário, o secretário estadual da Articulação Política, Nelson Martins, classifica esses recursos como “fundamentais” para destravar projetos de grande porte no Estado.
“A relação entre o Governo e a bancada sempre foi considerada prioritária, eu acompanho isso desde o Governo Cid (Gomes, ex-governador). Teve uma época em que os recursos foram destinados para o Cinturão das Águas, depois, foram todos para a área da Saúde. Na época da pandemia Covid-19, em 2020 e 2021, esses recursos foram essenciais para o tratamento. Já com o governador Elmano, os investimentos se voltaram para a construção do Hospital Universitário”, destaca.

Considerando os três tipos de emendas impositivas, as de bancada são as que exigem mais habilidade política dos gestores, justamente porque precisam de um consenso entre os mandatários do Legislativo federal de cada estado sobre os recursos que serão aplicados.
No caso do Ceará, uma das marcas dessas negociações é justamente os extensos impasses até se chegar a um consenso. Integrantes da oposição — e em alguns anos até da base governista estadual — demonstraram resistência em enviar ao menos metade dos valores das emendas para o Governo do Ceará — como tradicionalmente defendem os governadores.
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Em 2021, por exemplo, a dificuldade de acordo terminou com a bancada perdendo o prazo para indicar as emendas, colocando em risco o envio de verba para o Estado. À época, após uma negociação com o Congresso, o grupo conseguiu fazer a indicação.
Nelson Martins reforça que desde o ex-governador Cid Gomes (quando as emendas ainda não eram impositivas), passando pelas gestões de Camilo Santana (PT) e Izolda Cela (PSB), os governadores sempre buscaram garantir ao menos metade do valor para obras estruturantes.
“Agora, o governador Elmano, assim como seus antecessores, procura manter a melhor relação possível com a bancada federal”, pontua. De fato, apesar dos impasses, o Executivo Estadual tem tido sucesso em garantir o recebimento de valores próximos a 50% dos recursos da bancada.
O montante destinado por meio das emendas de bancada corresponde a 1% da receita corrente líquida do exercício anterior. Atualmente, os recursos devem ser destinados a projetos estruturantes.
Da Covid-19 ao Hospital Universitário
Em 2020, ainda sob a gestão do ex-governador Camilo Santana (PT), os congressistas cearenses tiveram direito a indicar o destino de R$ 248 milhões. Desse total, R$ 120 milhões tiveram como finalidade as obras do Hospital Universitário do Ceará (HUC) e do Centro Integrado de Segurança Pública (Cisp).
Contudo, à época, diante da pandemia da Covid-19, os recursos foram remanejados para viabilizar medidas para conter o avanço do vírus e tratar as vítimas. No fim, de acordo com dados do Tesouro Nacional, do total indicado pela bancada, foram pagos R$ 116,1 milhões ao Governo do Ceará.
Em 2021, os deputados e senadores cearenses tinham direito a destinar R$ 240 milhões. Metade desse montante foi indicado para financiar as obras do HUC e para o combate à Covid-19. Conforme o Tesouro Nacional, desse montante, foram pagos R$ 108,1 milhões.
Em 2022 e 2023, o foco dos recursos, novamente, foi para o HUC. No primeiro ano, foram destinados R$ 112,8 milhões — do total de R$ 240 milhões — para o Hospital. Em 2023, a bancada injetou mais R$ 76 milhões nas obras do complexo de saúde. Do total indicado nos dois anos, foram pagos quase R$ 170 milhões, segundo o Tesouro.
Já no ano passado, em articulação do governador Elmano de Freitas, os deputados e senadores indicaram R$ 180 milhões para a Saúde do Ceará, sendo R$ 140 milhões para investimentos em atendimento de oncologia. No fim do ano, o valor pago até superou as previsões, chegando a R$ 144,3 milhões, segundo o levantamento feito pelo Tesouro Nacional.
Autonomia do Congresso
O secretário estadual da Articulação Política, Nelson Martins, exalta a autonomia que as emendas impositivas deram aos parlamentares, facilitando o acesso ao Orçamento da União. Ele relembra os anos de 2019 e 2022, durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), quando o Ceará, sob comando do então governador Camilo Santana, tinha dificuldades de estabelecer diálogo direto com o Executivo Federal.
Segundo Martins, a autonomia das emendas e o papel do Congresso Nacional foram determinantes naquele período mais crítico, principalmente em meio à pandemia da Covid-19.
“Durante os quatro anos do Bolsonaro, todas as políticas públicas que existiam com o Governo Federal praticamente deixaram de existir — a não ser aquelas previstas em lei. O governador Camilo, por exemplo, já nem ia mais a Brasília, porque não havia qualquer resposta. É diferente do atual governo Lula. A primeira coisa que o presidente fez foi reunir todos os governadores e ouvir as prioridades de cada um”
“Mesmo com o Governo Federal sendo contra a vacinação, contra medidas para evitar a contaminação e até caçoando das pessoas com dificuldade para respirar naquela época, o Congresso tomou a frente. A nossa bancada, assim como o Congresso Nacional como um todo, garantiu recursos essenciais para o enfrentamento da Covid-19. Foi mérito do Legislativo”, reconhece.
Para este ano, os apelos do Governo do Ceará deixaram de ser para a Saúde. Em negociação com os parlamentares, Elmano conseguiu receber a indicação de um montante estimado em R$ 233 milhões para a duplicação da BR-222 entre Fortaleza e Sobral.
A saúde pública no Orçamento
Os dados de recursos enviados ao Governo do Ceará pelos parlamentares por meio de emendas de bancada indicam uma prioridade para a Saúde. Para efeito de comparação, de cada R$ 100 investidos desde 2020, R$ 99 foram para essa área.
Ainda de acordo com o levantamento do Tesouro Nacional, o Executivo estadual recebeu R$ 538,5 milhões em emendas de bancada entre 2020 e 2024. Desse total, R$ 533,4 milhões tiveram como destino o Fundo Estadual da Saúde. A Segurança Pública recebeu R$ 3,2 milhões; já a Educação e a Assistência Social receberam R$ 983,3 mil e R$ 800 mil, respectivamente.

A escolha por essa prioridade, segundo Nelson Martins, tem sido definida em função das necessidades mais urgentes e também por exigências legais.
“Essa questão é sempre tratada a partir da realidade dos recursos disponíveis. Para 2025, por exemplo, o governador se reuniu com a bancada e, até o momento, já temos uma previsão de R$ 233 milhões. A ideia é que esse valor vá para a duplicação da BR-222, uma obra estruturante. Mas o governador também tem buscado apoio para implantar novos hospitais regionais oncológicos em Baturité, Iguatu e Crateús”, antecipa o secretário.
Mudanças nas regras
Em meio à ofensiva promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para garantir transparência pública na destinação de emendas — mostrada na primeira reportagem desta série —, as emendas de bancada também passaram por mudanças.
Em março deste ano, passou a vigorar uma nova lei estabelecendo que as indicações de emendas de bancada devem ter justificativas detalhadas que comprovem os benefícios sociais e econômicos dos investimentos.
Ao todo, os deputados e senadores podem apresentar até 11 emendas, sendo três destinadas exclusivamente à continuidade de obras já iniciadas. Esses recursos devem priorizar projetos de interesse nacional ou regional e evitar a destinação de recursos para entidades privadas, salvo em casos específicos.
As novas regras inviabilizaram uma prática até então comum, que era a pulverização dos recursos entre os parlamentares para atender a interesses individuais, quando, na prática, deveria atender a finalidades consensuais.
A recente mudança na legislação que obriga a apresentação de justificativas sociais e econômicas para as emendas de bancada também foi bem recebida pelo Governo do Ceará.
“A gente nunca defendeu a pulverização dos recursos. Sempre buscamos uma aplicação concentrada em ações específicas. Foi assim com o Cinturão das Águas, com a Saúde, com a construção do Hospital Universitário”, afirma Nelson Martins.
Emendas individuais
Além dos recursos de bancada, os parlamentares também podem indicar emendas individuais para o Governo do Ceará. Nesta modalidade, os recursos têm caráter impositivo desde 2015. Ao longo desse tempo, os parlamentares destinaram cerca de R$ 215 milhões ao Governo do Ceará. No primeiro ano do período, foram R$ 4,6 milhões, já no ano passado, o valor chegou a R$ 69,4 milhões, um salto de 1.408,6%.
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Nos envios de recursos individuais, a Saúde reaparece como área mais beneficiada, recebendo R$ 185,4 milhões ao longo dos últimos dez anos. Esse montante equivale a 86,5% do total. A Segurança Pública surge logo em seguida, com R$ 4,7 milhões.
“Sempre haverá necessidade de aplicação dos recursos na Saúde. Até porque, pelas regras atuais, ao menos 50% das emendas devem ser destinadas à área”, conclui Nelson Martins.