Ceará recebeu R$ 5,7 bilhões de emendas impositivas em 10 anos; cifras cresceram mais de 1.800%
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Da compra de esparadrapos para postos de saúde à construção do maior hospital público do Estado. Ao longo dos últimos dez anos, os recursos enviados ao Ceará a partir de emendas impositivas, vinculadas aos interesses de deputados e senadores, passaram a atender um leque cada vez mais amplo de demandas. Essas injeções de valores milionários nas contas públicas locais vem em uma crescente anual que, desde 2015, já aumentou mais de 1.800%.
A enxurrada de recursos redesenhou a relação entre os mandatários do executivo municipal e estadual e os parlamentares federais. Entre janeiro de 2015 e dezembro do ano passado, o Governo do Estado e os municípios cearenses receberam R$ 5,7 bilhões, de acordo com dados divulgados pelo Tesouro Nacional. Esse montante é oriundo das indicações de deputados federais e senadores por meio de emendas individuais e de bancada. Essa modalidade de distribuição orçamentária é de execução obrigatória pelo Governo Federal.
Esta reportagem integra série produzida pelo Diário do Nordeste sobre os dez anos da execução das emendas impositivas no Brasil e como o recurso é aplicado e distribuído entre os municípios cearenses.
Prefeitos, cientistas políticos e consultores de finanças públicas avaliam as transformações provocadas desde o “marco zero” que tornou o envio desses recursos obrigatório. As matérias também discutem o futuro do orçamento brasileiro e apontam caminhos para garantir mais transparência no uso dos recursos públicos.
A primeira reportagem da série mostrou que esse “marco zero” ocorreu em 17 de março de 2015, quando foi promulgada a emenda constitucional 358/2013, redefinindo o equilíbrio de forças entre Executivo e Legislativo no País. Dados compilados pelo Tesouro Nacional indicam que, entre 2015 e o ano passado, as emendas impositivas foram responsáveis pela destinação de R$ 117,5 bilhões em recursos públicos no Brasil. No primeiro ano de execução obrigatória, o montante foi de R$ 1,8 bilhão, já em 2024, esse valor cresceu para R$ 26,1 bilhões, um salto de 1.350% em dez anos.
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No Ceará, a curva de crescimento foi ainda mais acentuada, dando um salto de 1.800% entre 2015 e o ano passado. Nos primeiros 12 meses, os cearenses receberam R$ 63,2 milhões em recursos de emendas individuais — à época, única modalidade impositiva. Já em 2024, o montante injetado no Estado e em municípios foi de R$ 1,2 bilhão — considerando as três modalidades de emendas de execução obrigatória atualmente em vigor.
No ano passado, as emendas de bancada — que são propostas coletivamente pelos deputados e senadores de cada estado — totalizaram R$ 264,9 milhões para o Ceará, de acordo com o Tesouro Nacional. Já as individuais representaram uma fatia de R$ 951,2 milhões, dos quais R$ 362,1 milhões foram por meio das emendas individuais de transferência especial, as chamadas emendas Pix.
Ao todo, atualmente, há três modalidades impositivas no Brasil: as emendas individuais de transferência com finalidade definida — quando os parlamentares indicam a destinação final do recurso —, as emendas de bancada estaduais — que são propostas coletivamente pelos deputados e senadores de cada estado — e as emendas individuais de transferência especial (emendas Pix).
Essa última modalidade é a mais concorrida entre os gestores, já que nela os recursos repassados não dependem de celebração de convênio e passam a integrar a conta dos entes (municípios, por exemplo) no ato da transferência financeira. Por outro lado, também são as emendas mais polêmicas, justamente pelas limitações de rastreabilidade.
Para este ano, o orçamento aprovado no fim de março indicou R$ 50,4 bilhões em emendas, sendo R$ 39 bilhões para as impositivas, que incluem as três modalidades.
A salvação dos municípios
Se para os deputados as emendas impositivas são um pilar da autonomia do Legislativo, para os prefeitos de municípios beneficiados os recursos são “uma salvação”. Quem faz essa análise é o atual presidente da Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece) e ex-prefeito de Jaguaribara, Joacy Júnior (PSB), conhecido como Juju.
“Desde que elas viraram impositivas, passaram a representar uma ferramenta crucial para viabilizar as políticas públicas locais, principalmente na realidade dos municípios pequenos, que não possuem uma previsibilidade de arrecadação própria muito boa e dependem dos repasses constitucionais”, explica.
Segundo ele, a execução obrigatória das indicações dos parlamentares permite que os gestores planejem a médio e longo prazo, viabilizando obras de maior impacto para a população, por exemplo.
“Outro fator positivo é a descentralização dos recursos da União para os municípios. Existem programas que fazem isso, mas também tem as emendas, porque, às vezes, têm programas muito bonitos a nível nacional, só que não atendem as demandas locais. Com essas emendas, passou-se a ter também um fortalecimento do controle social e uma menor dependência desses programas federais”, afirma.
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Consultor especialista em finanças públicas municipais, dados e indicadores de gestão, Eduardo Stranz aponta como um dos marcos da administração municipalista a criação, em 2019, das emendas individuais de transferência especial (emendas Pix).
“Essa inovação foi determinante, pois trouxe uma oportunidade de os municípios receberem recursos para o custeio da máquina pública e não somente para investimentos (...) A gestão das cidades no Brasil é bastante complexa, desde a Constituição de 1988, aos poucos foram repassadas responsabilidades aos municípios sem a contrapartida financeira, portanto todos vivem sempre com o caixa oprimido”, aponta Stranz.
A influência das emendas Pix
Em 2020, primeiro ano em que foram executadas, as emendas Pix injetaram R$ 20,5 milhões no Ceará. Considerando os recursos enviados por meio de emendas individuais — tanto com finalidade específica quanto por transferência especial —, esse montante representou apenas 5,3%. Contudo, o crescimento ano a ano torna evidente o interesse de prefeitos e parlamentares na, até então, nova modalidade de destinação do orçamento.
Em 2021, chegaram ao Estado e aos municípios R$ 100,1 milhões por meio de emendas Pix, valor equivalente a 24,4% do total indicado por cada deputado e senador. Em 2022, foram cerca de R$ 79 milhões indicados ao Ceará, uma fatia de 18,2% do total de emendas individuais.
Em 2023, as emendas Pix atingiram seu pico, com R$ 393,7 milhões injetados no Ceará, o equivalente a 43,3%. No ano passado, o valor foi de R$ 362,4 milhões, montante que representou 38% das emendas individuais recebidas no Estado.
“Qualquer recurso que venha por meio de uma emenda parlamentar ajudará muito a gestão. Um asfaltamento de uma rua, uma reforma no posto de saúde, uma adequação da escola, enfim toda a gama de serviços que uma prefeitura presta à sua população precisa de recursos financeiros para ser executada”
A elevação das emendas parlamentares à condição de impositivas encurtou o caminho entre os gestores locais e os cofres da União. Portanto, prefeitos que dependiam de interlocutores do Executivo Federal passaram a conseguir recursos diretamente com deputados federais, por meio de articulações locais.
“É um aumento da proximidade e do vínculo com as ações que os deputados fazem através do mandato parlamentar com os munícipes. Como gestor, o prefeito pode levar uma demanda para o deputado atender e conseguir uma areninha para uma determinada comunidade. O deputado destina o recurso e depois ele tem a possibilidade de entregar aquele benefício à população, isso tudo através da destinação dos recursos de emenda impositiva dele”, argumenta o presidente da Aprece, Juju.
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De acordo com a socióloga e cientista política Paula Vieira, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem), da Universidade Federal do Ceará (UFC), há uma tendência generalizada no Brasil de olhar essas relações políticas “com uma carga muito negativa”. Contudo, ela defende que a cautela para compreender as necessidades da gestão pública.
“Um prefeito não vai exercer a prefeitura sozinho, ele está dentro de um estado e precisa do governo do estado, que também tem um legislativo estadual. Esse governo estadual vai precisar do governo federal e de seus representantes, vai precisar dialogar. Além disso, quando um candidato é eleito deputado estadual ou federal, é de se esperar que ele represente uma parte da população”, avalia.
“Representar, de alguma maneira, é trazer propostas ou efetivar propostas de políticas públicas para a população, para esse coletivo. Então, o diálogo entre esses poderes, ele é importante para esse desenvolvimento, um desenvolvimento que é social, econômico e político”, conclui.
“‘Ah, mas tem a dependência, a moeda de troca’. A vida coletiva, ela é conflituosa porque são muitos desejos, desejos plurais, que é o que a gente tanto fala, é o princípio da democracia. Para que esses desejos consigam conviver, eles precisam de debate para se construir algo, é a negociação política. Claro, temos notícias de como isso é prejudicial para o orçamento — e de fato é — porque, em termos de governo, a agenda fica travada e há ações de parlamentares que são mais individualizadas para poder permanecer na política, tem vantagens de base eleitoral, mas, de um modo geral, essas negociações precisam acontecer”
Ônus e bônus das negociações
Apesar de entender a importância da aproximação dos gestores locais com os parlamentares, o consultor de orçamento do Senado Federal e professor universitário, Fernando Moutinho, aponta prejuízos provocados pelo afastamento dos prefeitos com o Executivo Federal.
"Eles já se descolaram dessa conexão de base do Executivo, porque hoje o parlamentar do partido A, B, C ou D tem as emendas, não depende de o partido estar com o governo ou não, dele votar com o governo ou não. Hoje, os prefeitos não querem estar junto com o governo, querem estar junto com o deputado. Não interessa o partido do deputado, se apoia o governo ou não, porque o deputado e o senador têm o dinheiro para fazer a transferência que a rede local de política está interessada", afirma.
O analista aponta que o uso predominante de recursos para atender demandas locais revela uma fragilidade no modelo de orçamento público do Brasil.
"Um país com tantas carências e esse volume gigantesco de recursos sendo usado basicamente para programas e ações de caráter local... Eu vejo isso como uma quase falência do orçamento como mecanismo de alocação de recursos", critica.
"Temos carências enormes, que são muito maiores do que pavimentar uma rua ou comprar um trator. Cada vez mais, o dinheiro se concentra em ações locais, enquanto faltam investimentos estruturantes para o desenvolvimento do Brasil", completa Fernando Moutinho.
A crítica é reforçada pela professora de graduação e pós-graduação em Direito da Unifor e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Mariana Dionísio de Andrade. Segundo ela, a forma como está estruturada atualmente a distribuição das emendas acentua desigualdades.
“Antes, o polo de força era o Governo Federal, que decidia o que era ou não prioridade em termos de orçamento. Agora, o Legislativo usa a liberação de verbas como moeda de negociação política, impondo um comportamento mais condescendente por parte do Executivo e aumentando a influência do Congresso sobre o Orçamento federal”, afirma.
“Isso afeta o Ceará porque direciona o foco orçamentário para projetos locais, o que é positivo, em teoria. Por outro lado, evidencia o uso para fins político-partidários, na medida em que o dinheiro tende a ser destinado exatamente para onde os deputados federais e senadores têm mais bases eleitorais”, avalia.
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Mariana pondera que, embora haja gestores comprometidos com o “espírito republicano”, o uso político das emendas é predominante.
“Minha tendência é acreditar que o apoio tão firme às emendas impositivas por parte de alguns parlamentares se sustenta bem mais nos fins político-partidários e no foco para reeleição do que na busca pela redução das assimetrias regionais. Se o bem coletivo fosse a prioridade, haveria mais transparência na destinação de recursos e muito menos distorção do debate público”, critica.
“É um contrassenso que problemas estruturais conhecidos há décadas não façam parte do planejamento estratégico dos municípios, mas sejam a alavanca principal das emendas impositivas. Também não faz sentido a liberação de muitas emendas acontecer, justamente, pouco antes das eleições municipais e estaduais”, conclui a professora universitária.
Fiscalização avança no combate a desvios
Na esteira da ofensiva promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2022 para garantir transparência pública na destinação de emendas — mostrada na primeira reportagem desta série —, a Corte determinou ainda investigações contra suspeitas de desvio dos recursos públicos oriundos de emendas impositivas.
O cerco também envolve prefeitos e parlamentares cearenses. Conforme revelou o Diário do Nordeste em janeiro deste ano, 81 prefeituras do Ceará beneficiadas com emendas Pix são investigadas pelo Ministério Público Federal (MPF). Nacionalmente, as apurações se estendem a mais de 400 municípios.
>> VEJA A LISTA DE MUNICÍPIOS INVESTIGADOS
Além do MPF, a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público do Ceará (MPCE) têm investigações em andamento no Ceará contra um suposto esquema criminoso com uso ilegal de emendas parlamentares e compra de votos no Estado.
Em uma série de reportagens publicadas entre dezembro do ano passado e janeiro deste ano, o Diário do Nordeste revelou que o deputado federal cearense Júnior Mano é citado como tendo um “papel central” no esquema, segundo as investigações. Ele nega as acusações. Já o prefeito eleito, foragido e cassado de Choró, Bebeto Queiroz (PSB), é apontado como o principal articulador do grupo criminoso.
>> CONHEÇA DETALHES DA INVESTIGAÇÃO
De acordo com os investigadores, o mandatário usava empresas em nome de “laranjas” para desviar o dinheiro oriundo do orçamento federal, a partir de indicações do deputado. Uma das empresas atribuídas ao gestor celebrou contratos com quase 50 prefeituras do Ceará. Tais acordos são investigados pela PF.
À época, o deputado Júnior Mano disse que a investigação conduzida pela PF tramita sob segredo de justiça, por isso não pode se manifestar sobre o caso. Ele ressaltou que acredita na “legalidade”, declarou ser inocente e disse estar à disposição das autoridades policiais e judiciais.