Em busca de união, oposição no Ceará vive nova crise e incertezas para 2026
Oposição no Ceará enfrenta crise após intervenção de Michelle Bolsonaro; PL suspende diálogo com Ciro Gomes em meio a racha interno.
A oposição no Ceará, que buscava pavimentar um caminho de união entre a centro-direita pragmática e as alas bolsonaristas e ciristas para as eleições de 2026, viu sua articulação estremecer diante de uma crise interna deflagrada publicamente.
O racha, que envolveu diretamente a cúpula do Partido Liberal (PL) e a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, resultou na suspensão das conversas de aliança com Ciro Gomes, impondo uma incerteza no futuro do bloco que se opõe ao governo de Elmano de Freitas (PT).
A construção do grupo de oposição contava também com a adesão do União Brasil. O partido, liderado pelo ex-deputado federal Capitão Wagner, tem se mantido à margem do imbróglio. Wagner, inclusive, manifestou que o desejo de união no Ceará deve prevalecer, questionando se lideranças nacionais poderiam interferir no processo local.
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O estopim da crise
A crise foi deflagrada publicamente durante um evento promovido pelo senador Eduardo Girão (Novo) em um hotel na Praia do Futuro, em Fortaleza, para o pré-lançamento da sua candidatura ao Governo do Estado, no último domingo (30).
Na ocasião, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro criticou o deputado federal André Fernandes (PL) e seus aliados por terem se “precipitado” em articular uma aliança com Ciro Gomes para a disputa eleitoral de 2026. Michelle afirmou que ir contra o ex-presidente era o maior erro da direita.
Em resposta, André Fernandes se defendeu, refutando que estivesse desobedecendo a Jair Bolsonaro. Ele reiterou que a conversa com Ciro teria sido autorizada pelo ex-presidente, incluindo uma reunião onde a entrada de Ciro teria sido “aprovada ou exaltada”.
Antes do recuo oficial do PL, a ala da oposição que apoiava Ciro adotou uma postura de isolamento em relação à Michelle. Ao PontoPoder, o deputado estadual Sargento Reginauro (União) disse que, caso a decisão fosse dividir o grupo, eles a respeitariam, mas ele não se via dividido e que o caminho seria apoiar Ciro.
O deputado estadual Cláudio Pinho (PDT), por sua vez, alegou que a movimentação de Michelle Bolsonaro causou um “curto-circuito” na busca pelo palanque único e não estava alinhada com as autoridades que trabalhavam para Ciro Gomes.
Já o deputado estadual Felipe Mota (União) também criticou a postura de Michelle, considerando que a maior parte do eleitorado de Lula e do PT no estado era de centro-direita e que ela deveria ter conversado mais com o “presidente do partido”.
'Primeiro teste'
A cisão em curso representa o primeiro teste de envolvimento nacional na disputa local, segundo a análise de especialistas.
“Acho que o enquadramento governista esperado é o do fato como um embaralhamento das cartas na oposição,” afirmou o cientista político e professor Emanuel Freitas, observando que a aliança entre oposição antipetista — cirista e bolsonarista — estremeceu no “primeiro teste” de uma liderança nacional vinda ao Ceará.
De acordo com Freitas, o abalo não separou os dois grupos, mas sim produziu uma rachadura no interior do bolsonarismo.
O racha interno, conforme Freitas, divide o bolsonarismo entre a ala “mais pragmática”, que reconhece não conseguir vencer o PT sem Ciro, e o grupo que acredita ter “espólio eleitoral suficiente para encapar uma candidatura solo, mais pura, vamos dizer assim, do ponto de vista ideológico”.
A consequência imediata foi o PL receber uma “ordem” de Michelle Bolsonaro para suspender as conversas com Ciro Gomes, alegando desconhecimento do acordo e afirmando a postura de “não aceitar qualquer um de fora que é precipitado ou exaltado”.
A socióloga e cientista política Paula Vieira também aponta que o conflito fortalece o grupo governista, mas principalmente no sentido retórico, dando-lhes elementos para utilizar o próprio bolsonarismo como foco de enfrentamento.
No entanto, conforme a estudiosa, para Ciro Gomes, essa “suspensão” das conversas pode ser vantajosa, pois o posiciona como não sendo “tão bolsonarista assim”.
Protagonismo da direita
A disputa pelo futuro político do bolsonarismo no Ceará reflete uma indefinição nacional sobre quem assumirá a liderança na ausência do ex-presidente Jair Bolsonaro — preso na Superintendência da Polícia Federal em Brasília —, o que intensifica a briga pelo protagonismo na família.
O ex-presidente foi sentenciado a 27 anos de três meses de prisão pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro foi condenado por conta da sua participação em cinco crimes, incluindo a tentativa de golpe de Estado que produziu os atos do 8 de janeiro de 2023.
Essa disputa familiar tornou-se pública quando os filhos do ex-presidente criticaram a ex-primeira-dama. O senador Flávio Bolsonaro reprovou a atitude de Michelle como “autoritária” e chamou o ataque a André Fernandes de “injusto e desrespeitoso”.
O vereador do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro, por sua vez, admitiu preferir a candidatura de Eduardo Girão ao Palácio da Abolição, reforçando a necessidade de respeitar a “liderança do meu pai”.
Michelle, em nota posterior, tentou esclarecer a situação, afirmando que o objetivo era apenas que todos “entendessem e pensassem” e tinham o direito de manifestar suas opiniões.
Crise como reflexo do contexto nacional
A crise no Ceará é vista por especialistas como um reflexo de dinâmicas maiores, ligadas à sucessão da direita nacional.
Paula Vieira considera que o Ceará é como um “laboratório da disputa nacional”, pois permite visualizar claramente o recorte da direita e da esquerda e suas respectivas hegemonias.
De acordo com Vieira, essa disputa local reflete o conflito nacional e a indefinição sobre quem são as lideranças na “ausência do ex-presidente Jair Bolsonaro,” que está fora do jogo.
Segundo ela, isso é crucial porque a tendência é que a população cearense vote em nomes que representem valores de centro-direita, e não da extrema-direita, que é o nicho representado por figuras como Eduardo Girão e Michelle Bolsonaro.
Ao que discorreu a estudiosa, a postura pode levar aliados de Ciro Gomes, que tinham o PL como destino certo (como os deputados estaduais Antônio Henrique e Lucinildo Frota, ambos no PDT), a buscarem outras legendas, como o PSDB, para se desvincular da marca bolsonarista.
Para a socióloga, o PL está em um processo de transformação de sua estrutura, no qual “o que a gente está assistindo é uma estratégia do PL”. De acordo com Vieira, o partido não tinha um projeto partidário nem estratégias claras para ampliar sua base eleitoral, seus candidatos ao legislativo ou suas lideranças.
A crise deflagrada, conforme o cientista político Emanuel Freitas, permite que o União Brasil tenha uma “folga”, visto que o grupo não precisará, a preço de hoje, “marchar junto com o grupo do PL, do André Fernandes”.
De acordo com Freitas, isso abriria a possibilidade de Ciro Gomes marchar com a centro-direita “menos radicalizada, representada pelo Wagner, pelo Reginauro”, que provavelmente “não deve não ter candidato a presidente”, facilitando o jogo para esses atores políticos.
No entanto, Freitas observa que o caminho natural para o PL é tentar, de fato, a “radicalização levada a cabo pela Michelle”. Caso o pragmatismo vença em torno de Ciro, talvez seja o momento de “alguém desse grupo do Girão constar como vice” para forçar a candidatura a ser uma chapa que peça votos ao bolsonarismo nacionalmente.