Legislativo Judiciário Executivo

Com aumento da fome, onda de ações políticas para mitigar problema no Ceará perde força em 2022

No ano passado, vereadores da Capital chegaram a cortar 50% do salário para reverter em doações; já deputados chegaram a arrecadar mais de 30 mil cestas básicas

Escrito por Alessandra Castro , alessandra.castro@svm.com.br
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Legenda: A dona Luciene Barros, 57, é uma das cearenses vivendo em extrema pobreza na Capital. Ela mora em um bairro periférico de Fortaleza com os filhos e dois netos (de 4 e 6 anos de idade)
Foto: Thiago Gadelha

Prato vazio, mente cheia de angústias e coração apertado: esse é um retrato comum de quem passa fome no Brasil, problema que atinge mais de 33 milhões de pessoas - quase o dobro do registrado em 2020. No Nordeste, aproximadamente 12 milhões de brasileiros estão em situação de insegurança alimentar grave. No Ceará, conforme informações do CadÚnico, mais de 1,4 milhão de famílias estão em situação de pobreza e extrema pobreza, o valor é quase o triplo (190% a mais) do contabilizado em 2020.

Os dados sobre fome são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), divulgados na última quarta (8).

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Em 2020 e em 2021, algumas ações voltadas para famílias com crianças em situação de vulnerabilidade foram aprovadas no Legislativo estadual e da Capital, como a distribuição do Cartão Mais Infância pelo Estado, que fornece auxílio financeiro de R$ 100 para cerca de 150 mil lares, e do cartão Missão Infância pela Prefeitura de Fortaleza, que distribui R$ 50 a 13 mil beneficiários.

O Governo do Ceará também tornou permanente a distribuição do vale-gás. Além disso, a nível Federal, há a distribuição do Auxílio Brasil, que beneficia cerca de 1,3 milhão de famílias cearenses.

Em 2021, inclusive, membros do Legislativo se organizaram para doar os próprios salários para a compra de cesta básica para a população carente. Na Câmara Municipal de Fortaleza, os vereadores chegaram a doar 50% de suas remunerações em ações. Todavia, as iniciativas foram pontuais e se restringiram àquele momento.

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Ações insuficientes

Para a professora pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará (LEP), Alesandra Benevides, as ações e políticas públicas implementadas na pandemia não são suficientes para acompanhar a velocidade da fome e miséria do País e do Ceará.

"Todas essas políticas da Prefeitura, do Estado e do Governo Federal, como Auxílio Brasil, precisam existir. As pessoas estariam muito pior se não houvesse esse colchão social. Mas o que eu vejo é que a velocidade que as pessoas estão caindo para a linha da extrema pobreza é maior do que essas políticas públicas conseguem sustentar. É burocrático conseguir chegar nessas pessoas. A gente tem um problema nutricional que vai virar problema de saúde"
Alesandra Bevenides
Professora e Pesquisadora do LEP

Neste mês, inclusive, a Prefeitura está convocando as famílias que têm direito ao Cartão Missão Infância a irem buscar o benefício.

Questionada sobre a volta do Restaurante Popular, fechado desde o início da pandemia, a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social de Fortaleza (SDHDS) disse, apenas, que o equipamento passa por restruturação e que distribui refeições, quentinhas e sopas para a população em situação de rua e vulnerabilidade nos Centros Pops, Espaços de Higiene Cidadã e Restaurante Social.

Na Assembleia, deputados realizaram duas ações em 2021 para doação de alimentos - a primeira, arrecadou 32,5 toneladas em cestas básicas, e a segunda distribuiu cerca de 30 mil cestas a famílias carentes de municípios com baixo IDH. Neste ano, no entanto, mobilizações semelhantes não têm tido o mesmo fôlego.

Apesar dos esforços, as políticas públicas para mitigar, de fato, a fome ainda são insuficientes no Estado. Enquanto em 2020 e em 2021 projetos para combater a insegurança alimentar estavam no centro dos debates do Legislativo, neste ano quase não há matérias que tratam sobre o assunto, de acordo com levantamento na lista de proposições das casas legislativas.

Poucas propostas

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Legenda: Na Câmara, nenhum dos projetos apresentados sobre o assunto avançou até o momento
Foto: Fabiane de Paula

Na Câmara Municipal, por exemplo, três projetos foram protocolados de janeiro até o momento. Um deles, de autoria da vereadora Enfermeira Ana Paula (PDT), quer autorizar o Poder Público a fazer uso dos espaços das escolas para montar cozinhas comunitárias a fim de combater a insegurança alimentar. Por se tratar de um projeto de indicação, funciona apenas como uma solicitação à Prefeitura.

O segundo projeto, de autoria da vereadora licenciada Kátia Rodrigues (Cidadania), propõe a criação de um programa de alimentação de qualidade de baixo custo para a população de baixa renda da Capital. A medida busca garantir a segurança alimentar por meio de restaurantes populares; oferecimento de refeições gratuitas para pessoas em situação de rua; e cestas básica para pessoas desempregadas e de baixa renda.

Semelhante ao projeto de Kátia Rodrigues, a terceira matéria, de autoria da vereadora Tia Francisca (PL), pede para Prefeitura fixar diretrizes para criar um programa de combate à fome.

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Legenda: Na Assembleia, a reportagem não encontrou nenhum projeto apresentado em 2022 de autoria dos parlamentares
Foto: Fabiane de Paula

Na Assembleia, a reportagem não encontrou nenhum projeto, de autoria dos parlamentares, que trate sobre insegurança alimentar ou combate a fome em 2022. No entanto, a Casa informou que lança neste domingo (12) uma ação para arrecadar roupas e alimentos para pessoas em situação de vulnerabilidade social.

A 'Campanha Doe Esperança' contará com exposição de carros, praça de gastronomia, música e feirinha solidária no prédio do Legislativo Estadual. Na ocasião, serão arrecadados donativos. Presidente da Casa, o deputado Evandro Leitão (PDT) destacou que a medida é mais uma ação da Casa no enfrentamento da pandemia.

"A Assembleia Legislativa segue fortalecendo sua atuação em busca de minimizar a situação de extrema necessidade enfrentada por muitas famílias em nosso Estado. No ano passado, garantimos medidas importantes, como doação de cestas básicas, isenção de pagamento de contas de água e luz, assim como o vale-gás social. Neste momento em que ainda enfrentamos consequências da crise sanitária e uma forte alta de preços de itens básicos, é importante nos mantermos unidos nesta missão de solidariedade, cidadania e compromisso social", afirmou Evandro.

Reações aos dados da fome

Apesar dos números alarmantes, poucos parlamentares se pocionaram, até o momento, sobre o crescimento da fome. Nas redes sociais, o deputado Renato Roseno (Psol) defendeu o apoio a iniciativas como cozinhas solidárias, que ajudam a enfrentar o problema.

"Em Fortaleza, destinamos emendas para iniciativas como as cozinhas solidárias, a exemplo da que o MTST mantém no Grande Jangurussu, que funcionam sem receber nenhum incentivo governamental. Elas são fundamentais para combater a fome, que hoje assombra 33 milhões de brasileiros", destacou.

Nesta semana, o vereador Guilherme Sampaio (PT) também foi às redes comentar o assunto. Ele criticou a atuação do Governo Federal no combate à fome. "Com o desmonte das políticas sociais do 'desgoverno federal', a fome voltou à realidade de mais de 30 milhões de brasileiros, retrocedemos 30 anos em três! Não podemos nos calar, não podemos ficar de braços cruzados! É hora de lutarmos para trazer de volta a esperança à vida e à mesa do povo brasileiro!", ressaltou.

Em contraponto a Sampaio, o vereador Sargento Reginauro (União) criticou as políticas adotadas no Estado. "O Ceará está avançando: em pobreza e criminalidade! É esse Ceará que você quer?", questionou.

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Perda de interesse

Para Emanuel Freitas, professor de Teoria Política da Universidade Estadual do Ceará (Uece), a classe política foi perdendo o interesse pelo tema 'fome', uma das consequências agravadas pela pandemia, à medida que a vacinação foi avançando no País.

"Aqui [no Ceará], a gente viu o assunto sendo tratado [com mais intensidade] na Câmara Municipal do que na Assembleia, por conta da oposição ao prefeito. Mas a vacinação foi avançando, a pandemia foi ficando controlada, e as preocupações foram perdendo força enquanto outros assuntos sugiam", pontua.

Dessa forma, os trabalhos e discursos sobre o assunto no Legislativo Estadual e da Capital foram ficando em segundo plano frente a outros temas que ganharam destaque, como o aumento no preço dos combustíveis e o reajuste tarifário da Enel de quase 25%- predominantes em 2022.

A questão da fome sempre existiu. Na pandemia, ela ganhou repercussão. A medida que deixa de ser uma preocupação da sociedade, de tá no foco, os parlamentares vão deixando o tema de lado. Eles vão procurar outras agendas, como por exemplo a da Enel agora. Quem não quer aparecer como sendo o deputado que conseguiu prejudicar o reajuste da Enel? A preocupação com a Enel agora é a mesma com a fome no ano passado
Emanuel Freitas
Professor de Teoria Política da Universidade Estadual do Ceará (Uece)

Política anticíclica

Como uma alternativa ao problema e levando em consideração a boa saúde fiscal do Ceará em relação a outros do Brasil, a pesquisadora do LEP propõe a adoção de uma política anticíclica para investir mais recursos em medidas que busquem amenizar a situação de fome do Estado. Para ela, enquanto houver pandemia, prato vazio, pobreza e extrema pobreza, é necessário ampliar as ações.

A última coisa que a gente faz é deixar de comer, é uma necessidade básica do ser humano. Se você não está comendo, é porque você não tem a condição mínima para ser humano. É muito cruel de se constatar que tem gente sem o mínimo para ser humano. O Ceará tem uma situação fiscal mais confortável, se você compara com outros entes federados. É nessas horas que você pode afrouxar a política fiscal e ampliar uma política anticíclica
Alesandra Benevides
Professora e Pesquisadora do LEP

Ela ressalta, no entanto, que as políticas não podem ser restritas à concessão de benefícios, mas também devem abarcar oportunidades para romper o ciclo de pobreza.

"É preciso pensar também em políticas que busquem retirar as famílias da dependência desses benefícios, para que não seja só uma via", complementa. 

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