Cinco curiosidades históricas sobre o litígio entre Ceará e Piauí, que aguarda relatório do Exército
A disputa remonta o período do Brasil Império e está sob análise do Supremo Tribunal Federal, que aguarda relatório do Exército, nesta sexta (28), com resultado de perícia
O resultado da perícia do Exército brasileiro na área — de quase 3 mil quilômetros — de litígio entre o Ceará e o Piauí deve ser anexado, nesta sexta-feira (28), na Ação Cível Originária (ACO) que trata do impasse no Supremo Tribunal Federal (STF). A Diretoria do Serviço Geográfico do Exército Brasileiro anexou ofício ao processo do STF na manhã desta sexta-feira, mas o laudo processual ainda está em processamento e ainda não foi disponibilizada no sistema da Corte.
Os estudos foram determinados pela relatora do processo no Supremo, ministra Cármen Lúcia, e devem ser um dos principais documentos para embasar o julgamento da ação. Contudo, não é o único.
Tanto o Ceará como o Piauí — autor da ação — anexaram documentos, mapas, estudos e análises ao processo. Em alguns casos, as evidências remontam o Brasil Império — momento histórico onde o impasse começou — e mesmo antes, como Carta Régia assinada por Dom João V, ainda durante o Brasil Colônia.
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Apenas o Governo do Ceará apresentou uma coletânea de mais de 30 mapas históricos, datados de 1640 a 2012, na defesa da ação judicial em andamento no Supremo. Além disso, no território impactado, existem localidades pioneiras no Ceará, como a primeira escola quilombola.
O Diário do Nordeste separou cinco curiosidades que contam um pouco da história do impasse entre o Ceará e o Piauí, que se aproxima agora de uma solução judicial com o avanço no processo que tramita no Supremo desde 2011.
Decreto Imperial de Dom Pedro II
Um dos principais — e primeiros — documentos fundamentais no processo de litígio entre o Ceará e Piauí é o Decreto Imperial 3.012, de 1880. Além da rubrica do imperador D. Pedro II, esse decreto também foi discutido na Câmara e no Senado na época.
Nele, é transferido o território da Freguezia da Amarração à Província do Piauhy com o objetivo, na época, de formalizar o acesso ao mar do Piauí. Esse é o primeiro ponto de discordância entre os estados: o Piauí alega que este litoral já pertencia a eles e o decreto estaria apenas devolvendo as terras após 'invasão cearense'.
O Ceará, no entanto, garante que " diversos mapas e documentos históricos relatam a posse do Ceará sobre o território da freguesia de Amarração até a publicação do referido Decreto Imperial no ano de 1880". Portanto, o decreto representaria, na verdade, uma "permuta". A freguesia da Amarração passaria a pertencer ao Piauí, enquanto a comarca de Príncipe Imperial passaria a ser território cearense.
O questionamento judicial feito pelo Piauí tem como base o este artigo do decreto imperial, no qual fica estabelecido que a comarca de Príncipe Imperial, então na Província do Piauhy, será anexada ao Ceará. Hoje, este território corresponde ao município cearense de Crateús.
No texto, além da cessão do território piauiense para o Ceará fica estabelecido o limite entre os dois estados da seguinte forma:
"Servindo de linha divisória das duas provincias a Serra Grande ou da Ibiapaba, sem outra interrupção além da do rio Puty, no ponto do Boqueirão, e pertencendo á Provincia do Piauhy todas as vertentes occidentaes da mesma serra, nesta parte, e á do Ceará as orientaes".
Sobre esse ponto novamente os dois estados divergem, desta vez sobre como seria estabelecido o limite entre Ceará e Piauí.
Na avaliação do Piauí, a Serra da Ibiapaba estabeleceria a linha divisória, de forma a ser considerado o ponto mais alto como divisor natural. Além disso, o estado vizinho também alega que deve ser usado como referência para a linha divisória o divisor de águas.
"Não obstante, esta interpretação, defendida pelo estado do Piauí, não está correta, haja vista que no artigo primeiro do Decreto Imperial nº 3.012 tem-se que a divisão das vertentes ocidentais e orientais deve ocorrer somente a partir do ponto do boqueirão do rio Puty, restringindo-se, dessa forma, a área da comarca de Príncipe Imperial. Ou seja, o artigo 10 do decreto alterou os limites entre os dois Estados somente na área anexada ao Ceará", defende a Procuradoria Geral do Estado do Ceará em nota técnica.
"Ou seja, o divisor de águas (vertentes orientais e ocidentais) jamais deve ser utilizado na região da Serra da Ibiapaba, território esse que sempre pertenceu ao estado do Ceará".
Dom João e os Tabajaras
Então, qual seria a referência para saber onde é a linha divisória entre Piauí e Ceará? Neste caso, seria o sopé ocidental da Serra da Ibiapaba (ou seja, aquele mais próximo ao Piauí). A primeira referência a essa linha divisória entre estados aparece em documentos do período do Brasil Colônia, quando a capitania do Piauí era vinculada ao Maranhão.
No "Annaes Historicos do Estado do Maranhão", o governador-geral deste estado na época, Bernardo Pereira de Berredo, cita que o Maranhão "tem seu princípio hoje abaixo da Serra da Hypiapaba". A obra é de 1718.
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Neste mesmo ano, a capitania do Piauí requisitou terras da Missão da Ibiapaba, habitadas na época pela nação Tabajara. A informação é de nota técnica divulgada pela Procuradoria Geral do Estado do Ceará (PGE-CE) em abril.
Em resposta, uma carta régia foi emitida pelo rei de Portugal, Dom João V, em 1721. Nela, o monarca cita que a anexação do território da Serra da Ibiapaba ao Piauí pode causar "grandes e irreparaveis damnos", assim como a "desconsolação" dos povos indígenas com a possibilidade da mudança de território.
Dom João V ordena, então, que a Serra da Ibiapaba continue pertencente à capitania do Ceará. "A carta régia não apenas estabeleceu a posse cearense sobre toda a Serra da Ibiapaba, mas também atestou a identidade territorial e cultural dos habitantes com o território", defende a PGE-CE. Os documentos foram anexados ao processo em tramitação no STF.
"Desse modo, conclui-se que a divisa entre os estados do Ceará e do Piauí corresponde às raízes da Serra da Ibiapaba pelo seu lado oeste, mantendo integralmente esta serra em território cearense desde o período de 1718, quando a capitania do Piauí foi anexada ao Estado do Maranhão, e a capitania do Ceará foi reincorporada ao Estado do Brasil".
O Mapa de Gallucio
Ainda falando sobre documentos do período colonial brasileiro, o Piauí anexou ao processo no Supremo o Mapa de Henrique Gallucio, de 1761. Nele, a Freguezia da Amarração — formalizado como território piauiense apenas em 1880 — aparece, um século antes, como parte do território do Piauí.
Com isso, o Piauí afirma que ficaria constatado com "clareza solar" que o estado já tinha posse de litoral e, portanto, o decreto de D. Pedro II não se tratava de uma permuta.
Em entrevista ao g1, o geógrafo piauiense Eric de Melo, que abordou o litígio entre Ceará e Piauí em dissertação na Universidade Federal do Piauí, afirmou que o Mapa do Gallucio seria a forma de "provar a primeira invasão" do Ceará. Melo atua como assistente técnico da Procuradoria Geral do Estado do Piauí. Ainda segundo ele, o decreto imperial trataria de uma "devolução desse litoral" do Piauí.
Contudo, a argumentação é refutada pela defesa do Governo do Ceará. Além de apresentar mapas históricos colocando a Freguezia da Amarração como parte do território da capitania do Ceará, também é apresentado o Censo Demográfico de 1872, o primeiro a ser realizado no Brasil.
Nele, a população da Freguezia da Amarração foi recenseada como residente no Ceará "segundo a posse e administração histórica daquele território".
É citada ainda uma correção ao Mapa de Gallucio pedida, em 1809, pelo Piauí. O engenheiro Jozé Pedro Cezar de Menezes foi contratado para “corrigir, debaixo das vistas do próprio governador”, que era Carlos César Burlamaqui. O motivo, segundo relatos do engenheiro, era de que Henrique Gallucio teria embasado o trabalho em "informações errôneas que lhe foram fornecidas".
Na versão corrigida, sob ordem do governador da Província do Piauhy, a Freguezia da Amarração é colocada, novamente, como território cearense. No mesmo mapa, o sopé ocidental da Serra da Ibiapaba é marcado como linha divisória entre Piauí e Ceará.
Mapa de Londres
Agora, de volta ao século XIX, data de 1840 mapa anexado pelo Piauí ao processo de litígio no STF. Ele foi encontrado em uma loja de antiguidades em Londres, na Inglaterra, pelo escritor e professor de Direito da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Nelson Nery Costa.
O responsável pelo achado é presidente do Conselho Estadual de Cultura do Piauí e autor do livro “História piauiense”. Na obra, ele aborda justamente a questão dos limites entre o Piauí e os estados vizinhos, Ceará e Maranhão.
Em entrevista ao UOL, Costa disse ter encontrado duas versões do mapa, apesar de apenas uma ter sido anexada ao processo de litígio no STF. "Eles mostram como eram (as províncias) Piauí e Ceará na época. E eles indicam claramente que a divisão é a partir dos picos culminantes que separam os estados, principalmente as Serra da Ibiapaba, Serra Grande e Chapada do Araripe", explicou.
O mapa, portanto, fortaleceria a tese da linha divisória usada pelo Piauí na reivindicação feita ao Supremo — de que o limite deveria ser demarcado a partir do ponto mais alto da serra.
Contudo, o governo cearense lembra que "Mapas não devem ser empregados de maneira categórica ou isolada para reivindicar propriedade territorial atualmente". "a cartografia por si só carrega ideais políticos, sociais e ideológicos no processo de representatividade de determinados territórios", disse, em nota técnica, a PGE-CE.
O texto ressalta ainda que o mapa anexado pelo Piauí no início de junho "já era conhecido" e estava "disponibilizado na internet e qualquer usuário pode fazer a consulta ao mesmo".
"Esse mapa teve por objetivo representar uma visão tabular das principais cadeias montanhosas do mundo (nesse caso a América do Sul), dentro de uma escala regional, ou seja, jamais deve ser considerado em uma avaliação de divisas entre os estados. Trata-se, portanto, de um desvio metodológico de cartografia querer usar tal mapa (sem precisão cartográfica) para definir divisas".
O texto sugere ainda que o novo mapa coloca "sem precisão cartográfica", um vasto território pertencente ao Brasil como parte da Guiana e do Peru — que também poderia reivindicar terras brasileiras. "Do mesmo modo, ter-se-ia problemas entre diversos estados do Brasil pois as divisas desse mapa não são definidas com precisão cartográfica", completa.
Primeira escola quilombola
O litígio entre Ceará e o Piauí pode afetar o tamanho de 13 municípios cearenses. O mais atingido é Poranga, que pode perder quase 70% do território. Em todas essas localidades, somam-se mais de 380 'bens' do Ceará — incluindo escolas, unidades de saúde, torres eólicas, assentamentos rurais e quilombolas, terras indígenas e sítios arqueológicos.
Uma delas é a Escola Quilombola Luzia Maria da Conceição, localizada no município de Croatá, na região de Ibiapaba. Inaugurada em 2013, esta é a primeira escola quilombola do Ceará. A Associação Comunitária da Comunidade Remanescente de Quilombo Três Irmãos, onde a escola fica localizada, pediu para participar da ACO no Supremo Tribunal Federal como parte interessada no processo de litígio.
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"Aqui na nossa comunidade, a gente tem raiz. A gente vive uma ancestralidade que vem dos meus avós, dos meus bisavós, dos antigos. Hoje nós estamos aqui na sexta geração e a gente nasceu e se criou nessa comunidade", disse a presidente da Associação, Antoniza Mateus dos Santos em reportagem publicada pela PGE-CE.
"As mudanças seriam grandes. Falo isso porque conheço. (...) A gente vive muito feliz em nosso território cearense e que vamos permanecer até o fim de nossas vidas. Que esse território sempre permaneça no nosso estado do Ceará", completa.