Roer a pitomba da saudade no Cariri de antigamente

Com a sua digníssima licença, deixa eu roer aqui o pequi da nostalgia, roer até o risco do espinho na língua. O pequi, assim como a nostalgia, é para quem sabe o perigo, você não pode ir fundo demais para não quarar no passado. E o passado, como bem disse um sábio seminarista sobralense no silêncio do Mosteiro de Guaramiranga, é uma roupa que não nos serve mais.
Dito isto, e na condição de exímio roedor dos pequis da Chapada do Araripe, vamos celebrar a Semana Santa. A de ontem e a de hoje. De primeiro, era feriado todo santo dia, de segunda a domingo. Não tinha escola. Na Quarta-feira de Trevas, porém, era proibido tomar banho. Sob pena de ficar todo troncho.
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Mesmo um tibungo no açude da Telha, nosso Orós da zona rural de Santana do Cariri, era um Deus-nos-acuda. Ninguém era doido de arriscar nem botar o pé na beiradinha. Importante seguir as palavras do padre Cristiano, que naquela época, anos 1970, já nos contava a saga da Menina Benigna.
Os santos na parede de casa ficavam todos cobertos com um pano ou um lençol. Na Sexta-feira da Paixão, ave Maria, os homens não podiam mexer com negócios (estariam vendendo o próprio filho de Deus!), tirar a peixeira da bainha era uma ofensa, comer carne seria um pecado imperdoável e o sexo (faça três vezes o sinal da cruz, excomungado!) nem na mais distante hipótese platônica — simplesmente era um castigo sem precedentes pensar naquilo.
Até os clássicos cabarés do interior ficavam às moscas. Nem Glorinha do Crato abria as portas nessa data. Hora de reflexão profunda sobre o sofrimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O que mais gostava era o movimento dos Caretas. O chicote assobiava no lombo de quem se atrevia a roubar os cachos de banana e o Judas no final da brincadeira.
No intervalo de uma coisa e outra, o melhor era roer (eis o verbo de novo) as pitombas do Barro Vermelho, nas terras de Chiquinho Inácio. Roer pitomba nos faz revisitar as miudezas da vida, como Marcel Proust, escritor francês, com sua “Madeleine”, o bolinho-combustível que despertava para uma viagem na memória.
Das pitombas, íamos direto para a casa de Tia Rundá, ali na vizinhança, onde a pedida era o sequilho de goma. Não um sequilho qualquer, simplesmente uma das melhorias iguarias de que se tem notícia, com fama em todas as festas de Renovação da redondeza.
Raimunda Maria (Rundá), irmã do meu avô João Patriolino, uma das mulheres mais generosas deste reino, capaz de repartir tudo que tinha com os mais necessitados. Assim criou duas filhas (Marilê e Fransquinha), adotou o primo Francisco Felix, Helena Januário, Irani, Geraldo e ainda dona Marciana e o seu tambor dos reis do Congo. Sem contar a legião daqueles que socorreu nas fomes das longas estiagens.
Tia Rundá faleceu recentemente em São Miguel Paulista, bairro nordestino da zona leste de São Paulo, aos 98 anos. Deixa a bela história de uma dessas bravas, honestas e anônimas brasileiras para quem o amor ao próximo é um gesto diário, não uma falsa promessa.
Boa Semana Santa, feliz Páscoa a todos.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.