A sub-representação feminina na política não é um assunto novo. A cota de gênero em candidaturas ao Legislativo, por exemplo, foi instituída pela primeira vez ainda na década de 1990 — embora com redação que favorecia a falta de efetividade da medida. Apesar das mais de três décadas de legislação, o Brasil ainda amarga a 131ª posição do ranking mundial de representatividade feminina em cargos eletivos, elaborado pela Inter-Parliamentary Union.
O problema, no entanto, começa bem antes da disputa eleitoral. Dentre os 29 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 26 possuem órgãos partidários ativos no Ceará — sejam diretórios estaduais ou comissões provisória. Deles, apenas dois são presididos por mulheres.
Entre os 10 maiores partidos do Ceará em número de filiações, nenhum tem uma mulher na presidência. O mesmo se repete quando o recorte aumenta para os 15 maiores partidos ou mesmo para os 20 maiores. "E este cenário do Ceará é um cenário nacional", aponta a coordenadora do Laboratório de Estudos em Política, Eleições e Mídia (Lepem/UFC), Monalisa Soares.
E qual o motivo disso? "Se você perguntar para os partidos, eles vão dizer que é porque não tem interesse de mulheres em fazer parte dessa direção", opina a socióloga e integrante do Lepem, Paula Vieira. Para a pesquisadora, no entanto, é preciso analisar qual é o processo de escolha dos dirigentes partidários determinado pelo estatuto de cada agremiação.
"A escolha da direção é feita pelos militantes? É feita por lideranças das direções locais?", questiona. "Se é um núcleo específico (que escolhe), se é a direção que escolhe quem vai ser, o mais comum é que se pegue àquelas pessoas que tenham experiência nesses cargos internos de direção partidária. Como as mulheres não ocupam muito essas direções, então elas deixam de ser uma opção", argumenta.
Um ciclo vicioso que perpetua a desigualdade de gênero desde as legendas partidárias — base do sistema eleitoral brasileiro e de onde vão sair decisões como quais candidaturas lançar a cada cargo eletivo e qual será a distribuição de recursos entre candidatos. Ambas decisões cruciais para a disputa eleitoral e com impacto direto sobre a participação feminina nesses espaços.
O que dizem as mulheres que presidem partidos no Ceará?
Dois partidos são presididos por mulheres no Ceará: Eneylandia Rabelo Lemos preside o Partido da Mulher Brasileira (PMB), enquanto Cindy Carvalho está no comando do Rede Sustentabilidade. Para Carvalho, "tamanha discrepância" entre o número de mulheres e de homens na presidência de partidos acaba por desencorajar para que elas queiram estar nos partidos e na própria política.
"Acaba sendo um reflexo para que as mulheres se sintam também desencorajadas a estarem na política. Sabendo que somos a minoria nos partidos, isso pode vir a limitar que mais mulheres se sintam representadas, ou seja, limita a entrada de mais mulheres e a eficácia inclusive de políticas voltadas para as mulheres", reforça.
Algo que se soma a outros obstáculos já enfrentados por essas mulheres, ressalta Eneylandia. Mesmo em um partido, como é o caso do PMB, que traz "a participação da mulher na política como uma das bandeiras fortes". "Quando a gente faz o convite, elas até se animam, porque é o partido da mulher brasileira. Mas, mesmo assim, sentindo a causa abraçada, a gente ainda percebe essa dificuldade", conta.
Presidente do PMB Ceará há quase 7 anos, ela cita a "tripla jornada de trabalho" das mulheres — com "casa, trabalho, filhos" — como uma das principais dificuldades para essa participação. "Existe também a questão do preconceito, que a gente acaba sentindo na prática", completa, falando sobre a própria experiência como mulher no comando de uma agremiação partidária.
Cindy Carvalho, que está há um ano na presidência do Rede, narra vivência semelhante na política. "É um espaço muito complexo principalmente porque sou jovem e o estereótipo é criado em cima do que as pessoas imaginam: 'Mulher e jovem? Então deve ser filha de alguém, esposa de alguém'. Sempre preciso estar reafirmando a minha posição, porque muitas vezes querem resolver algumas questões políticas com outros homens, mas, no final, o que eles não percebem é que toda e qualquer decisão final será passada por mim", completa.
Parte de uma minoria no Ceará, nem Eneylandia nem Cindy Carvalho foram as primeiras presidentes dos partidos que hoje comandam. Criado em 2017, o PMB teve apenas mulheres como presidentes — Eneylandia é a terceira. Já o Rede Sustentabilidade tem, como regra estatutária, que sempre haja uma mulher e um homem nomeados à presidência e vice-presidência.
"É muito difícil ainda a participação da mulher na política, não apenas como candidata, mas também como presidente. Mas é algo que a gente precisa avançar, porque só aí a gente vai conseguir conquistar cada vez mais, lutar cada vez mais pelos direitos das mulheres", destaca Eneylandia.
Segundo as informações disponíveis no TSE, um terceiro partido também é presidido por mulher no Ceará: o Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB). Juliana Oliveira assumiu a presidência estadual do partido em agosto de 2023, mas não deve continuar à frente do diretório.
Em vídeo com o assessor especial do Governo do Ceará, Leonardo Araújo, o novo presidente nacional do PRTB, Leonardo Avalanche, anunciou a mudança no comando estadual do partido na quinta-feira (7). O médico Francimar de Souza, pai de Araújo e um dos fundadores do MDB no Ceará, deve assumir a presidência do partido no Estado.
Ausências na Executivas estaduais
"(São) raras mulheres ocupando as posições de liderança na presidência desses partidos, mas o mais agravante não é nem apenas que elas não estão na presidência. Elas não estão de um modo tão significativo nas próprias direções partidárias", pontua Monalisa Soares.
No Ceará, as mulheres representam 49% das filiações dos partidos, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral. Apesar disso, apenas 35,8% dos cargos nas direções partidárias são ocupados por elas. A média foi obtida a partir de levantamento feito pelo Diário do Nordeste com informações disponibilizadas pela Justiça Eleitoral.
Foram levados em conta para o cálculo a lista de cargos executivos de cada partido (informadas à Justiça Eleitoral pela própria agremiação), nos casos em que a sigla possui diretório estadual. No caso dos partidos em que estão constituídas comissões provisórias, foi considerado que todos os integrantes são da direção partidária.
A direção partidária é a responsável por "organizar a vida interna do partido", resume Soares. São estas pessoas que estabelecem os cronogramas partidários, a destinação de recursos do Fundo Partidário, os critérios para a formação de chapas que irão concorrer aos cargos legislativos, quem serão as candidaturas escolhidas ao Executivo e onde será investido o dinheiro do Fundo Eleitoral.
"Então, a ausência das mulheres nas direções e especialmente em cargos muito estratégicos para organização política do poder nas direções é algo que a gente precisa ter muito demarcado quando a gente fala do peso que isso tem para a representação das mulheres"
Esta ausência gera "uma falta de interesse ou a um interesse menor" de implementar ações afirmativas de gênero, incluindo aquelas estabelecidas na legislação, como as cotas de gênero para disputas proporcionais ou a obrigação de investir, pelo menos, 5% do Fundo Partidário em programas de promoção e incentivo a participação das mulheres na política.
A pontuação é da professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará Raquel Machado Malenchini. "Essas cotas passam a ser implementadas mais por uma obrigação legal do que por um sentimento de que realmente aquele espaço é um espaço das mulheres", completa. "Então, nós temos um cenário em que o erro começa na estrutura partidária".
Caminhos possíveis
Ao contrário de ações afirmativas como a cota de gênero para as candidaturas proporcionais, não existem regras a respeito da participação feminina ou mesmo de paridade de gênero nas direções partidárias. Em resposta a uma consulta elaborada pela ex-senadora Lídice da Mata (PSB-BA), o TSE entendeu que seria um "verdadeiro paradoxo democrático" se os partidos não aplicassem na estrutura interna regra semelhante à utilizada nas disputas eleitorais — ou seja, pelo menos 30% de mulheres.
"Não sendo crível que a democracia interna dos partidos políticos não reflita a democracia que se busca vivenciar, em última instância, nas próprias bases estatais", dizia o voto da relatora e então ministra do Tribunal, Rosa Weber. A Corte eleitoral enviou ainda um pedido ao Congresso Nacional para que esta previsão fosse incluída na legislação.
"Mas essa consulta não é vinculante, então é uma orientação do Poder Judiciário que determinou que o Poder Legislativo ajuste a legislação, mas por enquanto nós não temos nenhuma norma que obrigue e que leve a aplicação de sanção aos partidos políticos que não observarem", explica Raquel Machado Malenchini. "De todo modo, esse entendimento do Poder Judiciário é uma sinalização de que há algo errado na situação atual, na estrutura atual dos partidos políticos", completa a professora.
Doutora em Ciência Política e professora de Ciência Política e de Gestão de Partidos Políticos na Uninter, Karolina Roeder destaca que a discussão sobre a participação das mulheres na política teve um grande avanço no debate público e, agora, isso precisa ser espelhado pelos partidos.
"É um acordo que a gente já tem, na opinião pública, de que ninguém em sã consciência é contra aumentar a quantidade de mulheres na política. Mas os partidos precisam avançar nisso também"
"Falta interesse político, porque é disputa, disputa de poder. A gente vai ter que diminuir o poder de quem já está, de quem faz parte do status quo para colocar mulheres. Então, há uma resistência", pondera. "Os partidos têm autonomia, eles têm que ter autonomia. Mas tem que ter cobrança, sobretudo porque o recurso deles hoje é público".