A menos de um ano da eleição, fraude à cota de gênero é desafio para aumentar participação feminina
Na segunda reportagem da série “Em defesa dos direitos das mulheres na política”, o Diário do Nordeste mostra como Ministério Público e Justiça Eleitoral tem atuado na investigação e punição dos casos de fraude
Um domingo incomum de eleição. A mudança começou na própria data: no lugar do tradicional primeiro domingo de outubro, a ida às urnas foi adiada em mais de um mês, para o 15 de novembro. Mas as diferenças não estavam resumidas a isto. Nas filas, a distância mínima entre pessoas — todas de máscara — era de 1,5 metro. Todo o cenário era atípico: álcool em gel nas mesas, mesários com viseiras, nenhuma possibilidade de compartilhar a caneta.
A pandemia de Covid-19 modificou completamente a experiência de ir às urnas em 2020. No entanto, para uma cidade do interior do Ceará, mais especificamente na região do Baixo Jaguaribe, o ineditismo daquela eleição municipal não foi apenas a vivência de uma votação em meio a uma crise sanitária. Os desdobramentos chegaram a 2023 — ano mais próximo da disputa municipal de 2024 do que daquela em 2020.
No próximo dia 3 de dezembro, os eleitores de Alto Santo irão experimentar a primeira eleição suplementar para o cargo de vereador realizada no Ceará. Dos 10,4 mil eleitores deste município que foram às urnas no primeiro ano de pandemia, pouco mais de 5,5 mil tiveram o voto para a Câmara Municipal anulado. O motivo? Fraude à cota de gênero.
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Ao contrário daquelas inéditas regras aplicadas apenas em 2020 por conta da crise sanitária enfrentada em todo o planeta, a norma eleitoral que estabelece a ocupação, por mulheres, de, pelo menos, 30% das candidaturas a cargos proporcionais existe desde 2009. Antes disso, desde o final da década de 1990, já era obrigatória a reserva deste percentual para candidatas — embora, ampla maioria dos partidos não apresentassem mulheres nestas vagas.
Idealizada como forma de incentivar a participação feminina na política, a realidade dos quase 15 anos de existência da cota de gênero acabou por ser marcada por uma conduta recorrente: a apresentação de candidaturas falsas de mulheres pelos partidos. Em Alto Santo, a fraude levou a cassação de sete dos 11 vereadores eleitos — dentre eles, a única mulher escolhida para a vereança.
Longe de permitir o avanço da representatividade nos cargos de poder, as constantes fraudes à legislação eleitoral reforçam um cenário de exclusão e desigualdade enfrentada pelas mulheres ao tentar caminho na vida pública — e se reflete no 131º lugar ocupado pelo Brasil no ranking Inter-Parliamentary Union, que compara a representação feminina em 193 países. Na América Latina, o Brasil está à frente apenas de Belize e Haiti.
Apesar disso, a discussão sobre a cota de gênero no Congresso Nacional avança no sentido oposto ao de garantir maior efetividade a ela. Pelo contrário. Minirreforma eleitoral prevê o afrouxamento das punições rígidas aplicadas, desde 2019, contra as chapas condenadas por fraude à legislação — com a anulação dos votos dos candidatos, com cassação dos eleitos e suplentes —, enquanto a PEC da Anistia quer perdoar infrações contra o mecanismo.
O ‘modus operandi’
Os votos dados pelos magistrados do Tribunal cearense confirmando a sentença tomada na 1º instância da Justiça Eleitoral sobre a eleição para vereador em Alto Santo citam a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em julgamento de fraude à cota de gênero no município de Valença, no Piauí.
Nela, são citados alguns elementos indicadores de uma candidatura falsa: a votação inexpressiva ou mesmo zerada das candidatas; indícios de ‘maquiagem contábil’, com todas declarando os mesmos gastos e as mesmas receitas; a existência de familiares homens concorrendo ao mesmo cargo das candidatas e com elas atuando em prol das candidaturas deles; e ausência de qualquer ato de campanha eleitoral.
Estes indícios são o “norte” das investigações de promotores eleitorais durante e após a campanha eleitoral, destaca o coordenador do Centro de Apoio Operacional Eleitoral (Caopel) do Ministério Público do Ceará (MPCE), Emmanuel Girão. A primeira pergunta a ser feita é: houve campanha eleitoral ou não?
"E como é que se tem uma campanha eleitoral?", indaga Girão. "Primeiro, você precisa ter dinheiro. Você recebe dinheiro do partido, você recebe doações, você usa o seu dinheiro, você gasta esse dinheiro com propaganda eleitoral, com atos de campanha (...) e isso se reverte em votos. Ou pelo menos deve se reverter em votos. Quando não tem a comprovação dessa campanha verdadeira para candidata é que caracteriza a fraude", resume o promotor.
Com base nestes elementos, duas candidaturas fictícias foram identificadas na chapa para vereador de Alto Santo do PDT, enquanto uma candidatura falsa foi identificada na chapa do PSD — em percentuais, representam 15% e 7% do total de candidatos apresentados pelo partido para o cargo.
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Apesar do caso de Alto Santo ser um dos poucos em que houve a necessidade de uma nova eleição devido ao alcance da fraude — com mais de 50% dos votos válidos para vereador anulados —, a cassação de chapas ao legislativo municipal por esta fraude não é incomum e afetou a composição do parlamento de, pelo menos, 12 municípios cearenses. O que demonstra a abrangência da prática desta fraude à legislação.
"O objetivo da lei seria que os partidos criassem mecanismos para favorecer a participação da mulher, para se democratizar, para trazer mais mulheres para a política e investir na campanha delas", pondera Girão. "(Mas) alguns partidos preferiram seguir o caminho da fraude".
"Essa má fé do registro de candidaturas laranja só vem tomando força mesmo a partir do momento que isso vai entrando no Judiciário", completa a promotora de Justiça do Ministério Público de Pernambuco, Bianca Stella Azevedo Barroso.
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Sem sanção, sem efetividade
Coordenadora da da Ouvidoria das Mulheres do Conselho Nacional do Ministério Público, a promotora relembra como ocorria a identificação de fraude à cota de gênero antes do estabelecimento de uma punição mais dura, com a cassação completa das chapas de candidatos. "A punição, às vezes, ficava concentrada na mulher ou então ficava sem efetividade", relata.
Antes de 2019 — ou seja, durante dez anos da aplicação da cota de gênero —, o efeito da legislação era quase inexistente, na avaliação de Emmanuel Girão. "Era um dispositivo que não tinha muita efetividade porque não tinha uma sanção", resume. Antes da primeira cassação, a avaliação acabava restrita ao momento da apresentação das candidaturas.
Das cidades cearenses Não elegeram nenhuma mulher para a câmara municipal em 2020; o número é uma diminuição em relação a 2016, quando 29% das cidades não elegeram vereadoras
Funcionava assim: o partido apresentava o Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários, o DRAP. Então, "apenas se verificava, no processo de registro, se a cota tinha atingido os percentuais", descreve Girão. Se cumprisse os 30% de nomes de mulheres na lista de candidatura, pronto. Estava regular para participar da votação. Caso contrário, cabia ao partido regularizar.
"Alguns partidos perceberam que era muito fácil burlar colocar mulheres lá só para fazer número, sem campanhas reais", critica Girão. "A gente tentava, no caso do Ministério Público, fazer o levantamento, a análise dos registros de candidatura, as impugnações... Se via, por exemplo, mulheres que não apareciam ou que não tinham escolaridade adequada", detalha Bianca Stella Azevedo Barroso.
Contudo, a atuação para tentar coibir as candidaturas falsas "se limitava a isso", relembra Girão. Um cálculo matemático. A partir da percepção da escolha de muitos partidos pela burla da legislação — em uma conduta que abrangia, e abrange, todos os espectros políticos — é que "se desenvolveu o que fazer diante dessa fraude e se chegou à ideia da cassação da chapa toda pelo abuso do poder político", completa o promotor.
O endurecimento das sanções aplicadas aos partidos por parte do Judiciário — somadas às investigações de promotores eleitorais — tem sido essencial para o cumprimento dos percentuais estabelecidos para as candidaturas femininas, portanto. Ou, pelo menos, para a punição àqueles partidos que optam pela fraude.
“É uma cota que não é tão ousada. Então, se a lei estabelece que é preciso registrar nesse percentual, há um dever para essas instituições. Se elas não cumprem esse dever, além de atentar contra o ideal democrático, de uma vida boa, coletiva para todo mundo, além disso, esses partidos e federações descumprem uma lei e aplicar a lei também é parte do sistema democrático”, reforça a ministra do Tribunal Superior Eleitoral, Edilene Lobo.
‘Revanchismo legislativo’
A cassação da primeira chapa de vereadores por fraude à cota de gênero no país ocorreu em 2019, enquanto no Ceará a primeira punição do tipo veio dois anos depois, em 2021 — referente a uma chapa de candidatos a vereador no município de Croatá. É a partir daí que se cria um "mecanismo para coibir a fraude", cita a promotora Bianca Stella Azevedo Barroso.
A ação incisiva de Ministério Público e Justiça Eleitoral, no entanto, não fica sem reação. "O efeito é essa onda de revanchismo legislativo", enfatiza ela em referência a duas propostas em tramitação no Congresso Nacional: a PEC da Anistia e a minirreforma eleitoral.
No caso da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, que ficou conhecida como PEC da Anistia devido ao perdão que concede a partidos políticos por descumprirem regras de incentivo à participação feminina na política.
A princípio, a proposta anistiava as siglas que não tivessem cumprido, nas últimas eleições, a regra eleitoral que determina que , pelo menos, 30% dos recursos do Fundo Partidário deve ser usado para financiar as candidaturas femininas — norma estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal em 2018 e transformada em lei pelo Congresso Nacional em 2021.
Contudo, a PEC da Anistia acabou ampliando o escopo do perdão. Relator da proposta na comissão especial na Câmara Federal, o deputado Antonio Carlos Rodrigues (PL-SP) acrescentou trecho no qual ficam vetadas sanções que resultem na perda de mandato de candidatas eleitas.
Se aprovada, a proposta irá beneficiar quatro deputados estaduais cearenses filiados, assim como o relator da PEC, ao PL.
O Ceará teve a primeira chapa a deputado estadual cassada por fraude à cota de gênero, em maio deste ano. Com recursos interpostos tanto no TRE como no TSE, os quatro parlamentares eleitos pelo partido — Alcides Fernandes, Carmelo Neto, Marta Gonçalves e Dra. Silvana — continuam no exercício do cargo até que sejam finalizadas as definições, tanto judiciais como agora também legislativas.
“Nós somos contra esse dispositivo”, adianta Emmanuel Girão. “A gente tem que pensar no todo, não individualmente", continua o promotor. Ele explica que, mesmo com uma ou mais mulheres sendo eleitas, em casos comprovados de candidaturas femininas falsas, essas outras candidatas foram usadas para "viabilizar candidaturas masculinas fora dos percentuais" e é necessário que o partido sofra a punição adequada.
"Se a lei exige 30% de candidatas, são 30% de candidatas reais. Eu não posso ter 10% de candidatos reais e 20% de laranja (falsas)", ressalta. Além da PEC da Anistia, está em discussão pelos parlamentares federais a minirreforma eleitoral, ambas caracterizadas, por Barroso, como "amornamento" das ações afirmativas de incentivo à participação da mulher na política.
Microssistema para participação feminina
Bianca Stella Azevedo Barroso aponta a cota de gênero como "o maior mecanismo de ação afirmativa" para a participação feminina na política — reforçada agora com a tipificação da violência política de gênero. Junto a estas iniciativas somam-se outras medidas, como o percentual mínimo de financiamento para estas candidatas, cujo objetivo é construir um "microssistema de ações afirmativas".
"A partir desse momento que a mulher começou a participar da política e ela não conseguia espaço, houve uma forte ação para ter políticas afirmativas que colocam a mulher nesse lugar, para que a gente consiga, através de normas, de conscientização popular, tirar essa diferença e forçar com que ela ocupe esses espaços", diz.
A meta dessas iniciativas, no entanto, não é ter efeito perene, mas "corrigir uma distorção". “(Mas) a gente nunca vai conseguir ‘se livrar’ de uma política afirmativa, porque a gente não consegue eficácia e resultado”, completa a promotora. Isso vale tanto para o ‘perdão’ concedido ao descumprimento das regras como também para medida que “dificulta a apuração da fraude à cota de gênero”. conforme pondera Girão.
Das cidades cearenses não contou com mulheres na disputa pela prefeitura nas eleições de 2020; o percentual é o mesmo do pleito de 2016 nos municípios cearenses
Esta definição se aplicaria, portanto, ao texto da minirreforma eleitoral, no trecho em que trata da caracterização do que é a fraude à cota de gênero. Isto porque ficam estabelecidos os requisitos para a caracterização desta infração eleitoral. "Quando se coloca requisitos para reconhecimento da fraude, se faltar um desses requisitos, a ação vai ser julgada improcedente", diz.
Além disso, a minirreforma — que ainda aguarda análise dos senadores e, por isso, não poderá mais ser aplicada em 2024 — também estabelece que a cota deverá ser cumprida pela federação e não mais pelos partidos individualmente, nos casos em que as siglas estiverem federadas. A tendência é de que haja uma diminuição do número de candidatas.
“Essa hegemonia que visa permanecer perenemente e discriminatoriamente para sempre vem com as normas que ou estabelecem uma norma de anistia, de perdão para todos os descumprimentos de cota ou vem com a tendência a diminuir o pouco que já existe. E volta um retrocesso. A gente nunca vai conseguir ‘se livrar’ de uma política afirmativa, porque a gente não consegue eficácia e resultado. Quando ela começa a se mexer, a gente sofre um reboque dessa hegemonia político-partidária”, critica Barroso.
Solução é a troca de modelo?
Quase 15 anos depois da obrigatoriedade de que partidos cumpram a cota de gênero, o aumento na ocupação de cargos eletivos por mulheres ainda cresce num ritmo lento. Em 18% dos municípios brasileiros, nenhuma mulher foi eleita vereadora — no Ceará, não houve nenhuma mulher eleita para 16 câmaras municipais.
No Executivo municipal, onde não há exigência de cotas de candidatas, 64% das cidades brasileiras não contou sequer com uma mulher disputando a prefeitura. Ao fazer o recorte racial, o cenário é ainda pior: 86% dos municípios não contaram com candidatas negras para o comando da gestão municipal.
É o lugar ocupado pelo Brasil no ranking Inter-Parliamentary Union, que compara a representação feminina em 193 países.
Contudo, existem avanços. Na Câmara dos Deputados, o número de mulheres subiu de 15% para 17,7%, com a eleição das primeiras mulheres trans para o cargo de deputada federal em 2022 — Erika Hilton (Psol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG). Nas gestões estaduais, apesar de ainda baixo, o número de governadoras também aumentou: hoje, Raquel Lyra e Fátima Bezerra comandam as gestões de Pernambuco e Rio Grande do Norte, respectivamente. Em 2018, Bezerra havia sido a única mulher eleita governadora.
E se a garantia de um mínimo de candidaturas femininas — com as respectivas punições para o descumprimento — é importante para ampliar essa participação, um outro modelo é defendido para aumentar a representatividade feminina.
"Se a lei dissesse que, em vez de 30% de candidatas, no parlamento 30% das vagas serão para mulheres, haveria realmente um resultado real, porque não bastaria lançar as candidatas", projeta o Emmanuel Girão. O promotor considera, no entanto, que os parlamentares "não cogitam" essa modificação.
Existem propostas em tramitação no Congresso Nacional que tratam do tema, com percentuais que chegam a 50%. Em meio a discussão sobre a PEC da Anistia e a minirreforma eleitoral, ganhou força proposição que estabelece, no entanto, um percentual bem inferior.
Apesar de ainda sem consenso, a cota mínima para mulheres que está em discussão ocorreria de forma gradual, em percentual que varia entre 10% e 15%. Mesmo baixo, a "reserva de cadeiras gera resistência", salientou o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), no início de setembro.
"Se não começar, não chega no 30%. Ainda prefiro começar no 15%, até porque, muito embora na Câmara dos Deputados haja 18% de mulheres, que é a média nas assembleias estaduais também, a gente tem quase mil municípios sem nenhuma mulher nas vereanças", argumenta a ex-ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Maria Cláudia Bucchianeri.
Para ela, o caminho é a "troca de modelo" de incentivo à participação feminina. "Não funcionou reserva de candidatura e ainda trouxe o efeito bumerangue do problema terrível da apresentação de candidaturas fictícias. A gente precisa superar esse modelo e começar a trabalhar com reserva de cadeira. Não dá mais para ficar 20 anos para evoluir 3% ou 4%", ressalta.
A mudança, se ocorrer, não será em 2024. Qualquer modificação para a próxima eleição municipal deveria ter sido aprovada e sancionada até o dia 6 de outubro, o que não ocorreu. Portanto, o próximo ano será de mais uma preparação para garantir o cumprimento da cota de gênero nas disputas pelas câmaras municipais das mais de 5,5 mil cidades brasileiras.
"A Justiça Eleitoral, destacadamente com esse papel de organizar a eleição, de acompanhar e fazer o controle, por exemplo, daquilo que toca à proteção dos direitos das mulheres, fazer o controle da cota de gênero no registo de candidaturas, em especial nesse ponto. A Justiça Eleitoral, então, tem um papel crucial na proteção desse modelo que se tenta encaminhar no Brasil", reforça a ministra Edilene Lobo.