Candidatas fictícias são cooptadas por líderes partidários, familiares e até patrões no Ceará
Primeira reportagem da série "Por mais mulheres" revela práticas por trás das fraudes à cota de gênero em investigação
Em menos de um mês, as investigações de candidaturas fictícias de mulheres resultaram na cassação de três chapas inteiras de candidatos a vereador no Ceará, todas em maio. Os indícios encontrados para identificar fraudes eleitorais à chamada cota de gênero são semelhantes e revelam práticas ainda corriqueiras em disputas municipais.
Candidatas sem nenhum voto, "campanha" sem custo ou mesmo a ausência de campanha são sinais de alerta para a investigação de casos suspeitos de candidaturas fictícias.
Por trás dos indícios, há um 'modus operandi' que envolve, com frequência, a cooptação de mulheres sem envolvimento direto com a política por lideranças partidárias ou postulantes homens, a partir de relações familiares ou até empregatícias.
Há também casos que indicam a homologação de candidatura sem conhecimento algum por parte da candidata cujo nome será colocado nas urnas, apenas para o cumprimento numérico do que determina a legislação.
Veja também
Em todo o Estado, foram ajuizadas, pelo menos, 16 ações pelo Ministério Público Eleitoral referentes às eleições de 2020. Além delas, outros processos foram apresentados à Justiça Eleitoral, por partidos adversários, denunciando supostos casos de candidatas fictícias.
O Diário do Nordeste teve acesso a algumas dessas ações, que detalham, na prática, como tendem a ocorrer fraudes à cota de gênero, que prevê a reserva de pelo menos 30% das vagas de uma chapa que busca concorrer ao Poder Legislativo para mulheres.
Nas ações ajuizadas, é necessário reunir provas "robustas" que comprovem a fraude, como explica a secretária judiciária do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE), Orleanes Cavalcanti. "Nestes casos, a instrução é profunda. Tem que haver o somatório de provas e elas precisam ser robustas", afirma.
A fiscalização dos casos, portanto, precisa identificar elementos que indiquem que não houve a efetiva participação da "candidata" na campanha eleitoral.
“Um candidato fictício não vai apresentar o comportamento esperado de um candidato, de quem se espera que tenha empenho para se eleger ou para conquistar votos para o partido”.
Sem votos ou com votação ínfima
Em um dos processos ajuizados pelo Ministério Público Eleitoral, das cinco candidatas que concorreram ao cargo de vereadora, três são investigadas. Nenhuma delas obteve nenhum voto no dia 15 de novembro.
Em outra ação, a candidata investigada alega que os familiares não teriam votado na sua candidatura por acreditarem que ela não seria eleita. Ela, por outro lado, confirmou o voto em si mesma, mas argumentou que não foi computado. O total nas urnas dela também foi zerado.
"Como alguém se lança na empreitada de se eleger e não consegue nenhum voto? Quem se candidata já vem fazendo trabalho, tem o círculo de apoiadores, de amigos", aponta Girão. "Então, como chega no final e não tem voto nem do marido, do filho ou dos pais?", questiona.
As três candidatas pelo PSD à Câmara Municipal de Croatá, confirmadas pelo Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) como candidatas fictícias, também não obtiveram nenhum voto. A chapa inteira de candidatos a vereador do partido foi cassada. Ainda cabe recurso da decisão.
Contudo, não é apenas a inexistência de votos que pode ser indício de uma candidatura fictícia. A votação ínfima de algumas candidatas, por vezes com dois ou cinco votos, também indica a possibilidade de fraude.
Ausência de campanha eleitoral
Chegar ao eleitor e conquistar o voto é o foco central da disputa eleitoral. Portanto, a ausência de atos de campanha e de divulgação da candidatura também são elementos para constatar fraude em uma candidatura - além de elementos comuns às candidatas investigadas por fraude à cota de gênero.
Veja também
Em 2020, a campanha, realizada em meio à pandemia, trouxe novos desafios para os candidatos e a necessidade de publicizar as candidaturas por outros meios - principalmente as redes sociais.
A verificação das redes sociais das candidatas, diante disso, passa a ser um dos passos da apuração, explica Emmanuel Girão.
Entre as investigadas por fraude à cota de gênero, um indício se repete: ausência de qualquer publicação pedindo voto ou fazendo referência à candidatura ou ao número da candidata na urna.
Algumas candidatas nem sequer apresentaram, à Justiça Eleitoral, site ou redes sociais no registro de candidatura. Outras cadastraram perfis que não correspondiam ao próprio nome.
"Se não tem nada nas redes sociais e não realizou gastos para outros tipos de campanha - não fez santinho, bandeiras ou adesivos - é o segundo indício", relata o promotor.
Muitas delas, por outro lado, fizeram postagens de apoio a candidatos a prefeito e vice dos respectivos partidos. Em casos mais flagrantes, chegaram a pedir apoio a candidatos adversários.
Em Nova Russas, uma das candidatas da chapa do PDT cassada por fraude à cota de gênero alegou que fez publicações em apoio ao marido, também candidato a vereador, por ele não ter redes sociais. No perfil da candidata, contudo, não foi feita nenhuma postagem em referência à própria candidatura.
Ainda quanto à divulgação da candidatura, promotores eleitorais buscam ainda identificar outros elementos, como se houve a gravação de propaganda para a rádio, se foi adquirido espaços para anúncios da candidatura em jornais e se a candidata participou de debates e programas em veículos de comunicação.
Campanhas de "custo zero"
A prestação de contas também faz parte dos elementos reunidos pela Promotoria Eleitoral durante a investigação de fraude à cota de gênero.
A inexistência de qualquer arrecadação da candidatura, assim como de qualquer gasto durante a campanha, pode indicar uma candidatura fictícia. "É um indício de que não fez campanha, porque sabemos que pouco se faz sem gastar nada", afirma Emmanuel Girão.
Há também casos em que é identificada uma tentativa de 'maquiar' as contas de campanha, aponta Orleanes Cavalcanti. "Todas as candidatas gastam o mesmo valor, para o mesmo prestador de serviço, na mesma data, com comprovantes que datam do pós-eleição", exemplifica.
É o caso de três candidatas investigadas em outra ação do Ministério Público Eleitoral. Todas gastaram R$ 1.000 - R$ 500 deles para o pagamento dos honorários de advogado e outros R$ 500 para o contador. Apenas uma delas recebeu um voto, enquanto as outras duas não tiveram nenhum.
"Em alguns casos, as candidatas sabem que são laranjas (ou fictícias), porque entraram por algum convite de um amigo que é do partido ou um familiar que é candidato. Então, elas tentam ocultar".
Segundo o promotor, é comum que as candidatas fictícias sejam chamadas por pessoas próximas para integrar a chapa de candidatos - como forma de cumprir a legislação formalmente.
Nas ações do Ministério Público Eleitoral, investigadas costumam ter algum vínculo com outros candidatos da legenda ou com dirigentes partidários.
Em um dos processos, uma das candidatas foi registrada na Justiça Eleitoral como agricultora. Contudo, a Promotoria Eleitoral identificou que ela trabalhava como empregada doméstica para o presidente do diretório municipal do partido que apresentou a candidatura.
Em depoimento, ela disse que o patrão, que é “envolvido com política”, foi quem levou um papel para que ela assinasse sua filiação - que ocorreu em 2020. Ela também afirmou que a campanha “teve começo, mas não teve meio, não teve fim”.
Na mesma chapa, outra candidata - também investigada por fraude à cota de gênero - é prima do mesmo presidente municipal do partido.
Mudança na fraude eleitoral
Secretária Judiciária do TRE, Orleanes Cavalcanti explica que, assim como a legislação e a jurisprudência foram mudando com o passar dos anos, as formas de fraude à cota de gênero também passaram por alterações.
Enquanto a previsão de reserva de vagas para 30% de candidaturas femininas existe desde 1997, a obrigatoriedade do preenchimento das cotas só ocorreu em 2009.
"Na época, os partidos diziam abertamente que diziam que não tinham mulheres interessadas em participar da vida política. Eles colocavam qualquer mulher, podia ser funcionária do partido, parentes de dirigentes. Isso sempre foi dito abertamente", explica.
Além de fraude à cota de gênero, alguns casos também representam falsidade ideológica eleitoral.
"Quando as candidatas não sabem, fica mais evidente a falsidade ideológica. Então, ele responde por crime previsto no Código Eleitoral", detalha Emmanuel Girão. Segundo ele, nestes casos a dificuldade é identificar a 'pessoa física' responsável pelo crime.
"(Mas) A candidata não saber é arriscado para quem vai fazer a fraude. Normalmente, a candidata é conhecida de alguém, é parente. Hoje, a maioria dessas candidatas sabe que são fictícias", ressalta.
A mudança neste aspecto, segundo Orleanes Cavalcanti, ocorre, principalmente, após resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em que ficou estabelecido que era necessária autorização da candidata como requisito para o deferimento do registro de candidatura.
"Há de se fazer uma distinção: a mulher normalmente usada pelo partido, sem anuência, não tinha a intenção de fraudar a lei. Mas se a candidata apresenta a autorização, a Justiça Eleitoral não tem como detectar a candidatura fictícia. A candidata contribuiu com a fraude", afirma.
Ela ressalta ainda a evolução da jurisprudência no que concerne a punição à fraude a cota de gênero: em julgamento do TSE em 2019, uma chapa de candidatos inteira foi cassada no Piauí por este motivo. Decisões posteriores tiveram como base esse julgamento. As três cassações de chapas no Ceará, em maio, foram inéditas no Estado.
"Não há ganho nenhum para o partido, porque todos os candidatos são cassados. Então, há um recálculo dos votos e essas vagas são destinadas a outros partidos que apresentaram candidaturas legítimas", afirma. "(A fraude) Não interessa a ninguém, é um desrespeito à sociedade e ao eleitor".
Veja também
Para além das exigências legais sobre a participação feminina e as medidas adotadas pela Justiça Eleitoral, Orleanes aponta a necessidade de uma mudança de postura nos partidos.
"É necessário que integrem as mulheres nos diretórios, nas lideranças das diretorias dos partidos. Não só no período eleitoral, mas nos anos anteriores. No período antes da eleição, capitanear candidatos que vão apresentar candidaturas viáveis, é muito difícil. (Mas) Essa desculpa de dizer que mulheres não estão interessadas em política é absurda na nossa sociedade", enfatiza.