Raquel Branquinho: ‘Os partidos são os grandes dificultadores para o acesso feminino à política’
Na última reportagem da série “Em defesa dos direitos das mulheres na política”, o Diário do Nordeste entrevista a procuradora da República e coordenadora do GT de Prevenção e Combate à Violência Política de Gênero
Ampliar o conhecimento. Este é o principal desafio da legislação que tipifica a violência política de gênero no Brasil, avalia a procuradora da República, Raquel Branquinho. Ela coordena, desde 2021, o Grupo de Trabalho de Prevenção e Combate à Violência Política de Gênero, da Procuradoria Geral Eleitoral.
A meta é transformar todos os operadores do sistema de Justiça em "facilitadores" para as denúncias destas violações de direitos, diminuindo assim os casos de revitimização destas mulheres — uma realidade que não é exclusiva das que sofrem violência política, mas cenário compartilhado nos diferentes tipos de violência ainda praticadas no País.
A necessidade de ampliar o debate, no entanto, não significa que ele já não esteja presente na sociedade. Legislação ainda com 'pouca idade', a tipificação da violência política de gênero é tema em diferentes segmentos da sociedade e do Poder Público. Ela aponta o caso de punição no Ceará — do vereador de Russas que atacou as três deputadas estaduais do PT — como um caso "exemplar", mas diz ainda ser uma exceção. "Quando há vontade política, ela ultrapassa os entraves", assinala.
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E é ao falar sobre a importância da vontade política que a procuradora chama à responsabilidade os partidos políticos — caracterizados por ela como os grandes "dificultadores para o acesso feminino à política".
"O partido é o mecanismo mais importante da sociedade brasileira para veicular a democracia representativa. Dependendo da forma como o partido atua, a gente vai ter só homens brancos ou a gente vai poder ter mulheres, mulheres negras e homens, quer dizer, a pluralidade da nossa sociedade representada no parlamento. É muito importante essa conscientização", ressalta Raquel Branquinho.
Na terceira e última publicação da série "Em defesa dos direitos das mulheres na política" conversamos com a procuradora Raquel Branquinho sobre os avanços e entraves na aplicação da lei que combate a violência política de gênero no Brasil, além da importância da atuação dos partidos políticos neste tema.
Confira a entrevista completa:
São dois anos desde a tipificação da violência política de gênero no Brasil. Quais os principais entraves identificados pela Procuradoria-Geral Eleitoral para a aplicação das regras?
O principal é a falta de conhecimento. Das vítimas, da sociedade e do próprio sistema de Justiça sobre essa nova legislação, sobre a forma de aplicar, de entender, de compreender situações que caracterizam a violência política de gênero.
Porque uma coisa é falar “assediar, perseguir, humilhar, ameaçar, constranger”, mas quais situações da vida real enquadram-se nessa perspectiva do crime eleitoral, na situação de assédio, de constrangimento, de perseguição com o fim — que a lei fala — de dificultar a candidatura ou o desenvolvimento do mandato eletivo.
Essa é uma grande dificuldade, porque há uma capilaridade, no Brasil, da responsabilidade e da atribuição pela persecução criminal, que fica ali na ponta, nas promotorias eleitorais, quando não há autoridade com foro. As promotorias eleitorais são distribuídas nos estados por circunscrição territorial. Então, nós temos que ter um mecanismo de comunicar com todo esse sistema para que eles compreendam e apliquem ali (a legislação).
O que é que nós dizemos como aplicar? Compreender, ter sistemas rápidos de recepção das comunicações de crime, compreender — inclusive isso para as próprias vítimas — que não é mais um crime de ação penal privada, é ação penal pública incondicionada. Então, a competência agora é federal. É da Justiça Eleitoral, que é uma Justiça federal, e é da Polícia Federal a atribuição de investigar e do Ministério Público Federal e Ministério Público Eleitoral (a responsabilidade pela) a persecução criminal.
O que isso muda na vida da vítima? Muda que ela não tem mais que fazer a representação. E a representação, em ações penais privadas, demanda requisitos formais, a contratação de advogado, custos financeiros e custos pessoais, além da própria exposição a situações de revitimização.
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Nós precisamos fazer o sistema compreender e ser um facilitador disso. Uma capacitação do próprio sistema... Quando eu digo sistema, estou falando de operadores da área: advogados, policiais, membros do Ministério Público e Judiciário. Para que haja uma resposta rápida e eficaz. Rápida e eficaz no sentido de condenar de qualquer jeito? Não, (mas) de acolher a representação, estabelecer a dinâmica correta de investigação e dar uma resposta adequada. Nesse caso ficou provado, (neste outro) não ficou provado e fundamentar a decisão.
Se tiver indícios de justa causa na situação, que seja oferecida a denúncia e vai se ultrapassar essa fase preliminar da investigação e já passar para o processo criminal. Se o promotor entender que não, que arquive de uma forma fundamentada e (o arquivamento) ainda está submetido a uma revisão na Câmara de Coordenação do Ministério Público Federal.
Casos de suspeita de violência política de gênero são acompanhados pelo Ministério Público Federal.
Qual a importância dessa revisão?
Nós temos visto situações de, primeiro, (o promotor) fazer avaliações sobre a conduta da própria vítima e isso não está em pauta. Isso é um assunto que já foi, muitas vezes, debatido na própria lei Maria da Penha, e até superado, porque se olhar nessa perspectiva, você não está aplicando a lei na finalidade que foi determinada. Nós ainda temos alguns arquivamentos ou indeferimento de representações partindo da premissa de que a vítima contribuiu, quando a gente tem que ter o olhar de que os parlamentos são espaços de fala tanto para o homem quanto para a mulher, em igualdade de condições.
Então, tudo isso depende de capacitação, de treinamento. Estamos vendo, tentando pedir reconsideração quando é cabível, mas, principalmente, a grande dificuldade é a falta de uma capacitação do sistema como um todo para olhar essa legislação na perspectiva que ela tem que ser vista. É uma legislação inovadora, embora o crime seja recorrente. Antes não tinha uma tipificação criminal, mas sempre houve violação e violência política de gênero no país. Tanto é que isso reflete na nossa baixa representatividade. E é importante entender que é um marco e que a eficácia e a prevenção depende da forma como é tratado isto pelas próprias vítimas e pelo sistema de Justiça.
Eu ainda vejo as vítimas sofrendo crimes, seja o do próprio Código Eleitoral ou até do Código Penal e indo fazer representações para a Polícia Civil. E ali não tem uma tipificação criminal adequada, (porque ali) vai se analisar o quê? Ameaça? Crime contra a honra? Hoje, a gente tem um marco e é importante que se entenda: se eu sou candidata ou detentora de mandato eletivo, o crime praticado contra mim, na condição de parlamentar mulher, (...) é um crime de violência política de gênero, de ação penal pública e compete ao Estado promover a investigação e a punição dos responsáveis.
Temos muito no que avançar, mas quais foram as melhorias causadas por essa legislação neste dois anos?
Teve um esforço muito grande, de vários segmentos da sociedade, da própria Procuradoria Geral Eleitoral, do vice-procurador (Paulo Gonet) que criou esse GT e deu ampla liberdade de atuação... Eu vejo também o parlamento e várias organizações da sociedade civil se unindo em torno do reforço da aplicação dessa legislação.
Algo que poderia ser desconhecido, quase ainda não aplicado, não debatido, que poderia ter uma mudança legislativa e ficar lá, no âmbito da lei, ninguém conhece, ninguém sabe. Mas não, nós estamos num debate intenso. Já temos, infelizmente, ocorrências, mas se há ocorrências na sociedade, elas têm que ser reportadas às autoridades.
Nós já temos quase 140 situações de representações conhecidas e podem ter algumas que ainda não estão nesse rede que nós estamos acompanhando. Então, eu vejo que o debate está muito mais fortalecido, tanto na sociedade quanto no próprio parlamento. Inclusive, nós mesmos estivemos lá no Congresso a oportunidade de debater para a minirreforma (eleitoral). Sugeri aperfeiçoamento desse tipo penal para poder tutelar também os direitos de todas as mulheres — não apenas candidatas e detentoras de mandato eletivo — nas situações de uma atuação política, partidária e eleitoral.
Porque muitas vezes nós temos jornalistas, ativistas, assessoras e todo um contexto de mulheres que atuam e poderiam ser vítimas também, pela sua atuação política, partidária ou eleitoral, e não estariam abrangidas (pela legislação). A própria sociedade entendeu que, embora seja um marco, uma evolução, ainda estava restrito o escopo. A realidade da vida e as eleições de 2022 mostraram isso. Muitas ativistas sofrendo violência na rua, pela sua condição de gênero e raça muitas vezes, e não estavam abrigadas pela tutela.
Então, nós conseguimos primeiramente ter um amplo debate social, porque foram vários eventos em que isso foi colocado com um ponto. A parte que eu entendo ainda um pouco deficiente é que, não obstante tudo isso, ainda há um desconhecimento, mas é porque, realmente, se a gente for considerar, o nosso Código Penal é do século 20. Então, os tipos penais que estão lá já passaram de 100 anos — na verdade quase 100 anos, porque de 1940 até hoje, não dá 100 anos — de uma evolução, de um debate. Então, hoje todo sabem o que é roubo, pelo menos intuitivamente, o que é um estelionato, o que é um latrocínio, o que é um estupro, o que é um homicídio.
E esses crimes novos, eles demandam realmente um tempo de maturação, debate, conhecimento. A gente conseguiu avançar muito, avançar muito esse processo, a partir desse amplo debate que foi feito. E o GT ali no meio, interagindo com outras instituições, conversando para fora e conversando para dentro do sistema (de Justiça).
Então, conseguimos um avanço. A gente tem a expectativa de, muitas vezes, ver uma decisão ruim ou ver uma situação que não teve tratamento que a gente entendia que era o ideal, mas se for entender como essa lei é recente ainda, como nós estamos conseguindo acionar vários atores do sistema de Justiça, a própria Câmara de Coordenação e Revisão do MPF (Ministério Público Federal) já tem precedentes, verticalizando esse debate, orientando como se deve agir, devolvendo o caso de arquivamento prematuros.
A própria questão da imunidade parlamentar está sendo muito enfrentada e, pelo menos até agora, já foi superada nas decisões desses tribunais regionais, digo, decisões coletivas que são mais fortalecidas, porque os tribunais regionais eleitorais são compostos por 7 membros, então, quando tem uma representação já é uma decisão mais consolidada, no sentido de que a imunidade não se presta a proteger situações de violações de direitos.
Ela garante o livre exercício do mandato, da atividade político partidária, mas é muito acionada pelas defesas como uma situação de não ocorrência do crime, porque a grande parte das vítimas e das representações que nós acompanhamos, os fatos ocorreram no próprio ambiente de trabalho das parlamentares — nas câmaras, nas assembleias ou nas prefeituras, quer dizer (a violência veio de) seus próprios pares.
E, se considerar a imunidade, principalmente na questão parlamentar, haveria a inefetividade da aplicação dessa lei e a inefetividade de uma lei desse contexto é um reforço para violações de direitos.
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No Ceará, nós tivemos a primeira punição por violência política de gênero — em que um vereador fez ataques a três deputadas. Nesse caso, houve uma reação rápida do partido, porque o agressor era do mesmo partido das deputadas e foi expulso, como a decisão judicial também foi rápida...
Para você ver: quando há uma vontade política, ela ultrapassa os entraves. Aí, houve uma sensibilidade do partido, o que não é regra, porque, infelizmente, em todas as situações que a gente vivencia ainda, em que há casos até de reiteração de pessoas respondendo a processos criminais, e que os partidos não fizeram ainda nenhum movimento.
Mais punições, uma reação mais rápida pode diminuir os casos?
Pode! Isso é quase que uma regra matemática, porque justamente o Direito Penal funciona assim. Ele tem a finalidade de retribuir, de vingar mesmo, de dar uma pena para aquele que praticou, retributivo, mas o primordial do direito penal, é prevenir outras situações. E como é que previne? Demonstrando que, se praticar aquilo ali, vai ter punição. A ineficiência, protelar, narrativas que não têm adesão à legalidade e ao sistema (de Justiça), isso tudo contribui para a impunidade. E é um reforço para condutas violadoras. Uma situação como essa do Ceará, é muito exemplar. Eu tenho certeza que pessoas que acompanharam, que tiveram informações mais precisas sobre isso, pensarão algumas vezes antes de praticar algum ato nesse sentido. (...)
Nós também temos que observar que, além daquela questão que é da própria estrutura da nossa sociedade — do machismo, do patriarcado, do racismo, problemas estruturais que as pessoas muitas vezes não reconhecem, porque elas existem e funcionam de uma forma tão 'natural', vamos dizer assim, que ninguém se percebe nessa situação…
Além disso, (...) nós temos também é um mecanismo de difusão de discurso de ódio, para grupos específicos como uma forma de fazer política, que vem se estabelecendo desde as últimas eleições (de 2018), que deu certo para eleger alguns candidatos, com nichos específicos, e isso é algo que tem que ser muito combatido por todo o sistema, porque a potencialidade lesiva desse tipo de conduta vão além daquele problema individual e estrutural que estão na nossa sociedade, porque ela já têm uma finalidade específica, além de violar o direito dessas vítimas — mulheres, mulheres trans, mulheres negras, tudo mais —, ainda tem a finalidade de manter ali um grupo ativo, de autopromoção daqueles que praticam esse tipo de conduta.
Tivemos denúncias públicas de mulheres — nas assembleias legislativas, câmaras municipais e até Câmara Federal — que tem o microfone cortado e são alvos de ataques. O espaço do legislativo, e mesmo o Executivo, está pronto para proteger as mulheres que exercem mandato, onde muitas vezes os colegas delas que praticam esses atos de violência?
Em regra, não estão prontos. Nós temos situações que superam, como essa do município de Russas, que são ponto fora da curva positivo, de maior sensibilidade à situação que são reais hoje. Mas (os poderes Legislativo e Executivo) não estão prontos.
Mas não é porque nós não estamos prontos, que nós não temos que lutar para alterar a realidade. Porque o que muito vige nesses tipos de situação é o círculo vicioso de manter essa estrutura de situações e nunca estar um passo à frente. Eu acho que, estando ou não pronto, tem que ser responsabilizados, tem que ser chamada responsabilidade pela própria sociedade.
Nós temos que ter mais representatividade plural e lutar por isso, porque só com essa visualização e com esse intercâmbio de visões dentro dos próprios parlamentos, vai tornar mais natural isso. Por enquanto, ainda temos aquelas estruturas de pessoas que fazem parte de um mesmo grupo social, que pensa igual... Tanto é que, em muitas situações, nós estamos tendo mulheres cassadas em câmaras de vereadores por suas opiniões, por seus debates políticos, pelas suas lutas.
Isso acaba sendo uma própria violência institucional, além da violência de gênero. É muito complicado isso porque está na seara política, há uma independência entre as instâncias, há uma independência política, mas não deixa de ser um marco, em algumas situações, de uma perseguição, uma punição e, inclusive, um desestímulo para que outras mulheres possam tentar trilhar esse caminho.
Temos a cota de gênero, que é uma tentativa de aumentar essa representatividade, mas onde têm sido denunciados cada vez mais casos de fraude. A fraude à cota de gênero e a burla à regra de financiamento para candidatas mulheres poderia ser caracterizada como uma violência política de gênero?
Sem dúvida. Talvez seja até difícil de tipificar ou de enquadrar, porque a questão vai ser muito fluida dentro do sistema (de Justiça), porque envolve vários atores, em várias instâncias, em vários momentos. Então, é muito difícil para o Direito Penal pontuar as responsabilidades como tem que ser feito dentro do processo penal. Então, nem digo que em todas as situações pode haver um processo (por violência política de gênero), uma punição na esfera penal, mas pode haver sempre questionamentos de natureza eleitoral nas ações específicas, que são ações difíceis, porque tem um prazo muito rápido para serem ajuizadas ou até em ações civis públicas.
O que a gente viu é que é nós vivemos uma situação, desde a década de 1990, final da década de 1990, em que o parlamento e depois o próprio Judiciário vem impulsionando medidas de ações afirmativas para que a gente tenha mais representatividade feminina na política, porque é uma vergonha para o Brasil, no cenário internacional, ocupar os locais que ele ocupa nos marcadores internacionais de representatividade política. Estar sempre na lanterna, (...) em uma situação social de igualdade com tanta defasagem interna. É muito grave e isso causa realmente um problema de imagem, além de tudo, para o país.
Por que a gente está vendo mais casos (de fraude a cota de gênero)? Porque, apesar da legislação ser desde a década de 2000, apenas nesses últimos anos é que houve decisões e medidas judiciais ou legislações que realmente estabelecem como tem que ser feito o entendimento e aplicação dessa cota de gênero.
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Os partidos, que são os grandes dificultadores para o acesso feminino à política, iam fazer interpretações restritivas. Quando falavam que tinha que ter 30%, mas aí não entendia que era 30% das candidaturas, interpretavam que era 30% do total de possibilidades de candidaturas. Se poderiam se candidatar 100 pessoas (por partido), mas eu só apresentei 60 candidaturas masculinas, os partidos defendiam que não precisavam cumprir a cota, porque estavam aquém dos 30%. Foram vindo uma série de interpretações, sempre restritivas. E quando você quer aplicar um negócio de forma assertiva, é muito fácil. Então, a gente vê que não tem uma vontade política dos próprios partidos políticos.
Quando o tribunal foi determinando, (...) descendo no detalhe mesmo, para o negócio poder ser aplicado, a partir de 2016 e 2018 principalmente, começaram a surgir o quê? 'Vamos ter que apresentar as listas, não tem jeito, essas listas têm que ter 30% de candidaturas femininas, mas nós não investimos em candidaturas femininas ao longo do prazo, ao longo do período. Nós não capacitamos, não tornamos a nossa agremiação um espaço facilitado ou adequado, não conseguimos vislumbrar na sociedade, incentivar, financiar pessoas que possam ter uma representatividade e candidaturas mais viáveis'.
Aí, se parte para preencher essas listas com nomes de mulheres que não foram, de fato, desempenhar campanhas políticas e, mesmo que desempenhassem, não teriam condições por não ter tido financiamento, capacitação, treinamento e tudo mais que faz parte desse contexto político, que demanda uma inserção prévia. Não adianta chegar de uma hora para outra. (...) Ninguém é eleito do nada, só com boas propostas.
Então, o que acontece? Surgiram as listas fictícias. Quando a Justiça começou a se tornar mais efetiva com isso, porque tem o tempo de depuração... Começa na primeira instância, vai para os Tribunais Regionais Eleitorais, chega no Tribunal Superior Eleitoral e o Tribunal Superior Eleitoral começou a falar 'olha, eu vou realmente analisar essas situações e candidatas que não fizeram campanha, não tiveram votos, não tiveram financiamento, elas não são candidatas de fato' e começaram a cassar as chapas.
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E o que aconteceu? Nós estamos vivenciando hoje a sombra de uma PEC de Anistia e de uma minirreforma que vai fazer mudanças estruturais e que essas mudanças pontuais não vão melhorar, estão simplesmente flexibilizando algumas amarras que o entendimento judicial e a própria prática já foi impulsionando para fechar as arestas, para que realmente se cumpra a finalidade que é financiar candidaturas femininas.
A mesma coisa acontece com financiamento, que veio de forma muito mais recente. Não precisava vir um financiamento a partir de uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) de 2018 e de uma emenda constitucional, em 2022. É intuitivo que, se você quer uma candidatura viável, você tem que investir nessa candidatura porque os próprios partidos sempre falaram que custa muito caro uma candidatura política, que isso demanda recursos, demanda financiamento. Então, a demanda é só para o homem?
E para a mulher, não? Era só para o homem, porque só começamos a discutir o financiamento (de mulheres) quando um Tribunal determinou e uma emenda constitucional trouxe a alteração, aí vem e fala para a sociedade: 'ah, não estava preparado para isso, vou anistiar tudo, porque, nas duas últimas eleições, nós não fizemos certo, nós não cumprimos. Então, vamos anistiar e começar do zero'. Isso é muito grave.
A minirreforma, nos pontos em que toca a questão da fraude à cota de gênero, pode ser um retrocesso? Porque teve um avanço, citado pela senhora, na violência política de gênero, de aumentar o rol das que podem ser consideradas vítimas.
Nesse ponto, é um avanço, mas a gente ainda precisa ver a redação final porque ainda está em discussão. Mas a gente vê uma boa vontade, realmente, de tutelar direitos de outras mulheres. (...) Mas, assim, as outras alterações podem facilitar, primeiro, a flexibilização do cumprimento da cota quando você diz que poderá ser cumprido pela federação e não individualmente pelos partidos políticos que a compõem. Isso é grave porque a finalidade não é só cumprir formalmente o requisito legal, é que todos os partidos tenham, dentro da sua estrutura, candidaturas de mulheres minimamente em condições de igualdade.
(Na proposta) Está minimizando, pode jogar para partidos que já são mais progressistas, que já vem cumprindo e eles vão compensar aqueles outros que não vão cumprir, o que é um retrocesso, porque o Tribunal Superior Eleitoral já tinha estabelecido, em consulta, de que era importante (cada partido cumprir a cota) e a federação não poderia ser um cômputo global, e sim teria que ter análise individual dos partidos.
Outras questões é que foram feitos ajustes pontuais sempre flexibilizando a questão da prestação de contas, do não financiamento. Também fizeram um rol querendo pontuar como cumulativo, de várias situações, para caracterizar candidaturas fictícias. Quando não precisa ter todas aquelas situações (para identificar a fraude), sempre depende de um processo de análise. Quer dizer, (querem) fazer um sistema de prova tarifária. Não tem isso no nosso processo civil, processo criminal, sempre o juiz tem o seu arbítrio, o seu livre convencimento para analisar diante da situação fática. Então, eles tentaram já colocar uma série de situações e cumulativamente é que poderia caracterizar a fraude na cota de gênero.
Também tem alguns outros dispositivos que permitem a concentração de recursos para candidaturas majoritárias. Isso é muito ruim, principalmente quando essas candidaturas são para vices, porque você faz um canal do financiamento feminino que acaba reverberando em candidaturas masculinas e não é essa a finalidade.
A finalidade é ter mais assentos e, se você quer ter mais assentos nos parlamentos, você tem que investir mais em candidaturas proporcionais. Então, tem vários aspectos ali, que ao fim e ao cabo, vão consolidando uma restrição e uma dificuldade maior ainda de a gente ter esse avanço. Há uma perspectiva que se demore mais de 100 anos para que haja igualdade de gênero no nosso país, nos parlamentos e, principalmente, nos municípios, que é muito grave.
A senhora mencionou a dificuldade dos partidos e existem várias burlas feitas por eles. Por exemplo, nenhum partido cumpre a regra de 5% do Fundo Partidário para a promoção da participação feminina. O que os partidos precisam mudar para favorecer a participação de mulheres?
A lei 14.192 (que tipificou a violência política de gênero) fez uma determinação específica para os partidos políticos para eles colocarem, nos seus estatutos, regras de prevenção e repressão à violência política de gênero. Nós trabalhamos com isso durante o ano de 2022, porque nenhum partido fez isso espontaneamente, tivemos que mandar recomendações e depois outros ofícios, analisar os estatutos sociais de todos os 32 partidos, mais as três federações, e mostrar a situação de cada um, em comparativo, a partir de um standard (padrão) — que fizemos baseados em uma análise de documentos da ONU (Organização das Nações Unidas) para os partidos políticos, da Constituição, da nossa legislação — de quais seriam, minimamente, estruturas que poderiam atender essa lei na situação de prevenção e repressão.
Na prevenção, nós entendemos, e informamos aos partidos políticos de forma muito clara, que eles tem que fazer uma política perene, uma política constante, sistemática de capacitação, de adequação, de formação mesmo de um ambiente favorável para candidaturas femininas. E há como se fazer hoje, com várias vertentes, com vários mecanismos. (...)
Primeiro, eles poderem enxergar aquelas pessoas que possam ter identidade ideológica e fazer esse trabalho, mas que não vai ser um trabalho apenas de um mês antes das eleições, porque aí ninguém vai conseguir cumprir lista nenhuma com candidaturas viáveis. Tem que ser algo que supere esse período. E e a outra regra de prevenção que a gente acha básica, além de uma política institucional dos partidos, é eles colocarem as mulheres em situação de igualdade com os homens, porque não adianta só fazer, dentro dos partidos, núcleos específicos para as mulheres. Isso acaba segmentando mais do que sendo um tratamento igualitário.
Então, se tem uma diretiva nacional, se cada partido vai ter suas estruturas de direção e comando, tem que ter representatividade feminina minimamente nas condições da cota. A gente trabalhou isso muito, não é uma realidade, é uma situação difícil de implementar. Os 5% vieram como uma norma constitucional na Emenda Constitucional 117/2022, embora antes já tivesse Fundo Partidário para manutenção do partido, seus gastos e da sua política partidária. Mas agora esse dinheiro, pelo menos, já é para isso.
O partido é o mecanismo mais importante da sociedade brasileira para veicular a democracia representativa. Dependendo da forma como o partido atua, a gente vai ter só homens brancos ou a gente vai poder ter mulheres, mulheres negras e homens, quer dizer, a pluralidade da nossa sociedade representada no parlamento. É muito importante essa conscientização.
(Mas) Ela não é fácil por dois motivos: pelo problema estrutural da nossa sociedade, que é mais arraigado dentro dos partidos — porque eles são comandados por homens ao longo de todo o período, dos séculos e, agora, estamos em pleno século 21 com essa realidade também — eles vêm de uma estrutura patriarcal, elitista, de tudo aquilo que domina a cultura política eleitoral aqui no Brasil, mas também por (não querer) ceder o espaço de poder. E isso já é natural da política. Quem está no comando não vai querer sempre ceder mais espaços que podem até tirá-lo desse comando.
Então, temos todo esse caldo de cultura para trabalhar numa realidade que, por um lado, a sociedade avança, eles cedem em determinados momentos, como a lei 14.192, por uma pressão muito grande, mas depois vem processos que possam acarretar retrocesso. Em razão de decisões judiciais que se recusam a cumprir, a entender, a internalizar, a compreender, a aceitar e para dizer 'eu tenho a última palavra, porque eu tenho a caneta, já que eu sou do parlamento, eu posso legislar'.
Isso é o momento que a gente vive. Eu espero que a gente supere isso para poder avançar. A política afirmativa é como investimento numa empresa: ele é feito para dar resultado. Se ele não está dando resultado, é porque algo está acontecendo de errado. Não está sendo aplicado direito ou está tendo desvio ou algum outro problema. É necessário estudar isso para ver onde é que estão ocorrendo situações que evitaram que, ao longo dos últimos 25 anos, no mínimo, a gente conseguiu, com muito esforço, ter apenas 18% de representatividade na Câmara Federal.