Por que é grave a violência política de gênero sofrida por deputadas do Ceará em fala de vereador

Não basta eleger mais mulheres, é preciso assegurar um ambiente seguro para a disputa eleitoral e para o exercício dos mandatos

Legenda: Deputadas estaduais do PT no Ceará: Juliana Lucena, Larissa Gaspar e Jô Farias
Foto: Divulgação/Assembleia Legislativa do Ceará

Imagine ter sua dedicação pessoal e trajetória profissional tratadas como uma farsa, uma mentira, uma ilusão? Imagine mais: os ataques partem de uma figura pública, com a voz transmitida ao vivo. Agora, não vamos mais imaginar, vamos falar do mundo real: três deputadas do Ceará foram vítimas de ataques por um vereador que entendeu que poderia extravasar sua raiva utilizando a Casa do Povo para humilhar, constranger e prejudicar mulheres que ocupam cargos de poder.

Acontece que essa conduta está tipificada na lei 14.192/2021, a qual “estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher”. Você a conhece? Sim ou não, me acompanha nessa leitura, porque precisamos muito falar sobre isso. 

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O episódio foi o seguinte: o vereador do PT de Russas, Maurício Martins, já expulso do partido, usou a tribuna da Câmara Municipal na última terça-feira (23) para dizer que as deputadas estaduais do mesmo partido, Juliana Lucena, Larissa Gaspar e Jô Farias "vendem ilusões" e agem como "lagarta encantada" que "aparecem só no Dia Internacional da Mulher"

"Aí, bota um palco no meio das praças e vão mentir", disse o vereador. 

Essa, aliás, não foi a primeira vez que o vereador fez comentários machistas. O estopim da fala contra as deputadas aconteceu no começo de março, quando Martins respondeu a críticas de uma moradora de Russas, nas redes sociais, com ofensas, fazendo referências à honra e às partes íntimas da mulher.  

O caso motivou uma nota de repúdio da Secretaria de Mulheres do PT contra o vereador, assinada pelas deputadas petistas. Foi justamente essa nota de repúdio que mobilizou o ódio do vereador na tribuna da Câmara. 

"Quero dizer pras senhoras, já que as senhoras souberam da notícia (do desrespeito à moradora de Russas), as senhoras 'vai' ouvir o meu discurso também: as senhoras deixem de ficar que nem borboleta, que se transformam em lagarta encantada, que aparecem só no Dia Internacional da Mulher, querendo vender ilusão, aí depois vocês se encantam e só vão aparecer no ‘Outubro Rosa’ pra vender ilusão de novo", disse Maurício.  

Ele se confunde ao fazer referência à transformação de lagartas em borboletas, mas volta a usar o exemplo corretamente ao longo do discurso. Em sua fala, cita também a ex-governadora Izolda Cela e a secretária da Saúde de Russas, Ana Kelly Leitão de Castro, como figuras que "merecem uma nota de repúdio" pela gestão da saúde. Uma sequência de ataques que incluiu mulheres que nenhuma relação tem com a tal nota de repúdio.  

O vereador ainda citou que tem duas filhas mulheres e uma esposa durante a fala – como se isso o eximisse de ser machista e misógino. 

Expulso do partido 

Depois da repercussão dos ataques às deputadas, com nova nota de repúdio da Secretaria das Mulheres do PT e discursos de reprovação na Assembleia Legislativa do Estado, o PT de Russas decidiu desfiliar o vereador. O partido não respondeu se vai pedir a vaga do parlamentar - já que pertence ao partido pela legislação. Ainda cabe investigação por quebra de decoro parlamentar no Conselho de Ética do Legislativo. 

As deputadas reagiram e condenaram a violência política de gênero da qual foram alvo.  

"Entendemos que isso é um caso de violência política de gênero, porque é a tentativa de desqualificar a nossa atuação, de menosprezar a nossa condição de mulher mandatária de um cargo político", disse Larissa Gaspar.  

Juliana Lucena, que foi atacada pessoalmente com referências ao pai, o prefeito de Limoeiro do Norte, José Maria Lucena, reforçou que os ataques "não ferem nossa atuação pública". "Mas expõe o machismo e sexismo que ainda é muito alicerçado na sociedade, inclusive nas casas políticas", criticou.  

"A gente só quer respeito e igualdade de gênero", disse Jô Farias. 

Por que é tão grave? 

A violência política contra a mulher passou a ser tipificada em agosto de 2021, com a sanção da lei 14.192. De lá até o final de 2022, o Ministério Público Federal (MPF) contabilizou sete casos, a cada 30 dias, envolvendo comportamentos para assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato, em razão de sua condição feminina. 

A lei aprovada no Brasil não estabelece políticas de prevenção à violência política de gênero e não tipifca os tipos para além da difamação e do uso de notícias falsas. É também muito mais focada na disputa eleitoral, tanto que altera o Código Eleitoral e a Lei das Eleições. 

Para se ter um comparativo, no mesmo ano, o Peru aprovou a lei 31.155 "que previne e pune assédio contra mulheres na vida política". Além das medidas de responsabilização, prevenção e erradicação da violência política, ela demarca a responsabilidade de cada órgão público nessa luta. 

Agora, no Brasil, a violência política de gênero pode ser punida com pena de reclusão, de 1 a 4 anos e multa. A pena é aumentada em 1/3 (um terço) se o crime for cometido contra mulher gestante; maior de 60 anos; e com deficiência. 

Estamos falando de uma legislação voltada para o ambiente que ainda é muito intolerante às mulheres: o político. E ele reflete uma sociedade na qual mulheres são comumente ofendidas, ameaçadas, desrespeitadas, humilhadas e apagadas do debate público em razão do gênero. 

A violência política contra as mulheres é dos principais motivos apontados por estudiosos para a baixa presença feminina em cargos eletivos. A situação piora quando envolve mulheres negras, indígenas e LGBTs. 

A violência política atinge não só a honra pessoal da mulher ofendida, mas traz prejuízos para a normalidade democrática, para a integridade do exercício do mandato político. Criminalizar a violência de gênero foi um primeiro passo para uma transição de uma cultura de normalização de ataques como esse do vereador de Russas para uma cultura de criminalização.  

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Não basta eleger mais mulheres - e estamos muito aquém da equidade de gêneros na política - é preciso assegurar um ambiente seguro para a disputa eleitoral e para o exercício dos mandatos das que foram eleitas.  

E é preciso, sobretudo, que mais vozes se unam em condenar posturas como essa do vereador que atacou as deputadas cearenses, especialmente a dos muitos homens que ocupam cargos políticos.  

Parafraseando a clássica fala da filósofa norte-americana Angela Davis sobre o racismo: não basta não ser violento com as mulheres, é preciso ser anti-homens violentos. Enquanto houver pessoas que se julgam no direito de violentar mulheres, não há democracia de fato. Não à toa, o ministro da Justiça, Flávio Dino, disse nesta semana que a Polícia Federal passará a tratar casos de violência política de gênero como crimes federais.

Em um País que bate recorde de violência contra mulher a cada ano, não se pode minimizar nenhum tipo de violência, nenhuma fala agressiva, nenhuma tentativa de diminuir a força de uma mulher, independentemente de qual espaço ela ocupe. 

*Esse texto foi veiculado, em primeira mão, para os assinantes do Diário do Nordeste, na newsletter semanal, a Antessala.