Sem internet, cearenses vivem à margem do auxílio emergencial e da vacina na pandemia
Aprofundamento da crise econômica e ampliação da desigualdade social tornaram acesso à tecnologia mais restrito, já que a prioridade é alimentação e moradia
Os bicos de trabalho como mecânico garantiam o sustento de Gleison Freitas de Souza, mas encontrar serviço ficou bem mais complicado com a chegada da pandemia ao Estado e em meio às medidas de isolamento social.
No ano passado, o auxílio emergencial foi indispensável para que ele arcasse com as próprias despesas mais básicas. Na época, ele conseguiu movimentar os pagamentos na conta digital da Caixa com a internet móvel do celular pré-pago que possui.
Porém, Gleison ficou de fora da lista de beneficiários nesta segunda rodada de pagamentos, iniciada em abril. E ele conta que não conseguiu contestar a decisão a tempo porque não tinha dinheiro para recarregar o celular e acessar à internet.
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Gleison, que vive sozinho no bairro Bom Jardim, relata que vem enfrentando dificuldades até para completar o valor da passagem de ônibus e que o auxílio seria fundamental para garantir a alimentação e produtos de higiene. Sem condições para manter o gás de cozinha, ele passou a usar um fogareiro.
“Apesar de eu morar só e não ter uma família para sustentar, fica difícil porque alimentação está em um preço absurdo. Este dinheiro seria uma ajuda boa para conseguir comprar uma alimentação, produto de higiene, pagar uma água”.
Do outro lado da cidade de Fortaleza, moradores do Caça e Pesca também sofrem com o pouco acesso à tecnologia. A realidade é semelhante: muitos perderam o emprego e estão vivendo de doações, de acordo com uma das lideranças comunitárias da região. O foco é priorizar a alimentação e a moradia.
Estudantes prejudicados
Além da dificuldade de obter benefícios que exigem algum tipo de cadastro virtual, a falta de meios de acesso à internet também é um obstáculo para que crianças e jovens assistam às aulas online.
No fim do ano passado, o Governo do Ceará anunciou a distribuição de chips de celular com pacotes de internet de 20 GB a cerca de 347 mil estudantes para ampliar o acesso ao ensino à distância. Para isso, foram investidos R$ 29,4 milhões do Tesouro Estadual.
O professor e coordenador do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Vitor Hugo Miro, pontua que a pandemia escancarou uma realidade de desigualdade digital, que se dá pela ausência de acesso ou por acesso precário aos serviços de informação e comunicação.
“Podemos até pensar que o acesso aos smartphones e serviços de internet móvel são bem difundidos, mas esse acesso ainda é extremamente desigual. Entre as classes mais pobres, o acesso ao mundo digital ocorre basicamente pelo celular, com franquias de dados bastante limitadas”.
Ele afirma que alguns grupos foram extremamente prejudicados pelo aprofundamento da desigualdade digital. “O principal foi o grupo das crianças e adolescentes que deixaram de frequentar a escola”.
Internet nos domicílios
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2019, o Ceará era o sexto estado brasileiro com maior percentual de domicílios sem acesso à internet (24,5%).
A mesma pesquisa revela que o rendimento médio das famílias em domicílios sem internet no Estado (R$ 541) equivalia à metade (50,2%) da renda nos domicílios que tinham acesso (R$ 1.078).
“O acesso a serviços de internet e serviços de melhor qualidade são muito dependentes da renda. Assim como os demais estados nordestinos, o Ceará está entre os estados com nível médio de renda mais baixos, e a desigualdade de acesso e de qualidade de serviços tende a ser menor”, avalia o professor.
Miro cita que dados da Central de Custódia e Liquidação Financeira de Títulos (Cetip) anteriores à pandemia mostravam mais de 46 milhões de brasileiros sem acesso à internet, sendo as principais razões para isso o preço dos serviços e a ausência de aparelhos adequados para o acesso.
“Infelizmente, com a queda na renda entre 2020 e 2021, esse número tende a aumentar”, lamenta o professor.
Quanto aos benefícios, o resultado do baixo nível de inclusão digital, aprofundado pela crise gerada pela pandemia, são as longas filas nas agências da Caixa. “Resultante da desigualdade digital e da desinformação”, pontua Vitor Hugo Miro.
Acesso à saúde
O economista e professor do Programa de Pós-Graduação em Economia Rural da UFC, Francisco José Tabosa, lembra que a profunda desigualdade social dificulta não só o acesso ao auxílio emergencial e à educação, mas também à vacina, já que é necessário fazer um cadastro para entrar no programa de imunização.
“Com esse desaquecimento da economia, muitos postos de trabalho foram perdidos e isso faz com que fique mais difícil para o trabalhador manter suas contas de internet em dia ou recarregar celulares pré-pagos”, detalha Tabosa.
Ele também pontua que a desigualdade digital já era uma realidade no Ceará e no Brasil antes da pandemia do coronavírus.
“Principalmente após 2015. Se você pegar qualquer indicador social de pobreza, com a pandemia, essa situação tem se tornado muito pior. Talvez depois da vacinação, com uma retomada da economia, pode até ser que essa disparidade reduza um pouco”, prospecta.
A situação é ainda mais grave em zonas rurais, onde ainda há áreas sem cobertura de telefonia.
“Em muitas localidades a densidade demográfica é baixa, e isso representaria um custo muito elevado para as operadoras. No meio rural se tem famílias que andam 50 km, 60 km para chegar na sede. Em municípios como Canindé ou Santa Quitéria, essa distância chega facilmente a 90 km, 100 km”.
Além da falta de conectividade, o professor lembra que a cobertura de agências bancárias também deixa a desejar. “Nem todos os municípios possuem Caixa Econômica, então o deslocamento que essas famílias precisam fazer é muito grande”, arremata Tabosa.
Pagamentos no Ceará
De acordo com dados do Portal da Transparência, foram pagos em 2021, de janeiro a abril, R$ 10,2 milhões no Ceará em auxílio emergencial a 8,5 mil beneficiários. Em Fortaleza foram R$ 4,1 milhões pagos a 3,4 mil beneficiários.
Em 2020, foram R$ 15,1 bilhões pagos em auxílio emergencial no Estado a 3,4 milhões de beneficiários. Em Fortaleza, foram R$ 4,1 bilhões pagos a 919,7 mil beneficiários.