Cancelamentos e ar-condicionado desligado: por que o serviço de transporte por aplicativo mudou?

Consumidores apontam insatisfações com a queda da qualidade das plataformas

Escrito por Bruna Damasceno , bruna.damasceno@svm.com.br
Legenda: Em abril de 2016, a Uber começou a operar em Fortaleza. Pouco mais de um ano depois, em setembro de 2017, chegou a principal concorrente, a 99
Foto: Shutterstock

Cancelamentos de corrida, percepção de insegurança, ar-condicionado desligado, oscilações bruscas de preços, carros deteriorados e tratamento descortês por parte de alguns condutores. Após sete anos da chegada do transporte por aplicativo no Ceará, os relatos de quem usa o serviço desde o início são de que essa lista de insatisfação só aumenta.

Em abril de 2016, a Uber começou a operar em Fortaleza. Foi aquele alvoroço. Enquanto os taxistas protestavam contra a concorrência que consideravam desleal, parte da população comemorava a chegada de uma opção de transporte individual mais "acessível". Em setembro de 2017, chegou a 99 para disputar pelos passageiros.

Nos últimos anos, contudo, essa relação entre clientes e empresas ganhou novos contornos e tem dado sinais de desgaste. É o caso da estudante Janainna Pontes Moreira, de 23 anos. Ela começou a utilizar app de mobilidade em 2016, quando a Uber chegou a Fortaleza. “No início, realmente o atendimento era diferenciado, tinham balinhas, água, os motoristas eram mais educados”, lembra.

Legenda: Manifestação dos taxistas pela regulamentação da Uber em 2018, em frente à Câmara dos Vereadores de Fortaleza
Foto: Saulo Roberto/Diário do Nordeste

“Hoje, é uma raridade encontrar um motorista que ofereça alguma coisa, mas é até muito difícil eu aceitar, devido às denúncias de balinhas ‘batizadas’, sequestros, essas coisas”, enumera. “A gente tenta andar no que é mais seguro, mas acaba ficando com medo de qualquer coisa”, lamenta. 

O temor a esse tipo de serviço é recorrente, sobretudo para as mulheres. No entanto, as inseguranças também passam pelo risco de acidentes graves. Moreira conta já ter percebido um profissional alcoolizado ao volante e a ausência do cinto de segurança após embarcar em um carro de aplicativo.

Pela legislação brasileira, dirigir embriagado é crime e pode causar a prisão do condutor. A não utilização do equipamento de segurança é considerada uma infração grave de trânsito, podendo gerar multa.

 

Carros sujos e ar desligado

A psicóloga Adhele Santiago, de 25 anos, não tem experiências preocupantes como as da passageira citada acima, mas relata incômodos com a qualidade do serviço atualmente, o qual recorre diariamente para trabalhar. 

“Uso desde a época em que tinha balinha, água e o atendimento mais cortês. Na minha avaliação, foi isso que mais mudou. Quando a gasolina começou a ficar mais cara, essas coisas foram deixadas de lado mesmo”, observa. Para ela, as guloseimas e bebidas antes ofertadas não fazem falta, mas outras melhorias são necessárias para voltar a ter uma experiência positiva. 

“O fato de ter água e balinha não traz segurança, mas eu me sinto mais segura quando percebo a abertura do motorista, quando ele cumprimenta. Não no sentido de puxar conversa, mas de cordialidade”, avalia.

“Hoje, o que pesa para mim como ponto negativo é essa questão de os motoristas não quererem ligar o ar-condicionado, pois Fortaleza é uma cidade muito quente, às vezes, não tem como. Também quando o carro não está limpo ou não está em condições adequadas para utilização”, lista. 

Carro todo destruído por dentro
Legenda: Durante corrida, o Diário do Nordeste se deparou com um veículo da 99 com diversas danificações, incluindo a ausência no cinto de segurança. Na primeira imagem, é possível observar uma fivela de cinto ao chão
Foto: Diário do Nordeste

Outro ponto, acrescenta, é a dificuldade para conseguir viagens próximas. Ela calcula esperar até 40 minutos para conseguir um transporte da casa para o trabalho. 

Para se ter ideia desse tipo de problema Brasil afora, no fim do ano passado, casos como esses foram alvo do Departamento Municipal de Proteção e Defesa dos Direitos do Consumidor (Procon) do Rio de Janeiro. A instituição multou a Uber e a 99 em R$ 3 milhões após inúmeras reclamações de cancelamentos de corridas em 2021.

Em Fortaleza, o número de consumidores que denunciaram, nos últimos anos, é baixo. Segundo o Procon Fortaleza, de janeiro de 2018 a junho deste ano, foram registradas 58 reclamações por cobrança indevida ou abusiva contra a Uber e dois atendimentos por descumprimento das regras de desistência do serviço. 

O SAC registrou quatro atendimentos para a resolução das demandas, por ausência de resposta, excesso de prazo, não suspensão imediata da cobrança. 

Já contra a 99, no mesmo período, foram feitas quatro denúncias por cobrança indevida e dois atendimentos por descumprimentos de contrato. O SAC contabiliza uma queixa. 

Para denunciar ao Procon, ligue para 151, das 8h às 17h, de segunda a sexta-feira; acesse portal da Prefeitura de Fortaleza ou baixe o aplicativo Procon Fortaleza.

O que está por trás dessa situação

Para especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste, a precarização e a plataformização do trabalho delineiam esse panorama. A avaliação é de que a situação atual demonstra a insustentabilidade social e econômica do modelo de negócio. 

O professor de Sociologia Econômica da LUT University, na Finlândia, e da Universidade Federal do Ceará (UFC), Edemilson Paraná, lembra que a Uber, pioneira no setor, surgiu disputando de maneira agressiva com os táxis, se consolidando com prática semelhante ao dumping (ato consiste na redução do custo do produto para eliminar a concorrência e abocanhar maior fatia do mercado).

“Desde o início, essa foi a estratégia da Uber, se valendo de um contexto, sobretudo em países mais pobres e desiguais, de desemprego e várias dificuldades estruturais no mercado de trabalho, nos últimos anos”, descreve. Nessa ambiência, aponta, a companhia jogou os preços para baixo, pressionou o segmento e causou tensões sociais e regulatórias onde chegou.

Paraná observa que a Uber passou anos sem ser lucrativa e tem como principal fonte de ganho o preço das ações e os fundos de investimentos. Em 2023, pela primeira vez, a multinacional registrou lucro, após perdas de US$ 31,5 bilhões desde 2014. 

Conforme o professor, apesar de a empresa ter a alavancagem financeira e tecnológica como suas duas principais frentes de sustento, ela também precisa aumentar os ganhos com a própria atividade fim. Para isso, analisa, precisa praticar taxas maiores para os motoristas e preço mais elevados para os clientes. Portanto, a atividade fica mais cara e menos lucrativa para ambos os usuários. 

Em meio a esse cenário, os profissionais ainda enfrentam dificuldades para manter os custos com combustível, impostos e manutenção do veículo. “Isso torna os motoristas menos suscetíveis a entregar um bom serviço. Eles estão insatisfeitos, com uma margem de ganho muito baixa, e isso é muito visível nas distintas fases”, afirma, relembrando do atendimento no início da atuação. 

“Agora, não ligam mais o ar, é vidro aberto, o cara mal fala com você, porque, claro, a atividade está pressionada, e o ganho dele também. Ele ganha pouco, está exposto a vários perigos”, lista. Para o professor, toda a conjuntura demonstra a insustentabilidade econômica estrutural desse modelo de gestão do trabalho e da produção controlada pelas grandes plataformas de tecnologia. 

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Ele pondera que a Uber, por exemplo, tem ativo em informação de milhões de trabalhadores pelo mundo, uma inteligência informacional de software, de dados e de programadores nos Estados Unidos, mas não tem carros e não contrata motoristas.

“Esse é o paradoxo: ela é uma mediadora, mas fica com a maior parte do ganho, concentra a estrutura de mercado por conta de uma coisa chamada efeito de rede”, explica, citando outras beneficiadas com o mecanismo, como a Amazon e o Google. 

O efeito de rede é o conceito de mercado cujo volume de usuários de determinado serviço gera uma atração natural para mais pessoas continuarem utilizando. 

Paraná aponta, ainda, ter sido possível manter esse sistema até aqui, mas acredita ocorrer uma crise em razão das barreiras econômicas. “É o limite do ganho do motorista, da renda do consumidor, do próprio funcionamento regulatório, político e social da sociedade onde esse transporte é oferecido, é a competição com aplicativos e outras formas de serviço, inclusive o público, táxi e outros concorrentes que entraram no mercado”, completa. 

O coordenador do programa de Mobilidade Urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Rafael Calabria, acrescenta que, diante da pressão para o motorista buscar mais rentabilidade, ficou "difícil manter a qualidade, porque acabou o desgastando”. 

“Ele vai precisar reduzir as ofertas de benefícios, como a balinha e qualquer outra coisa do bom atendimento. Na nossa visão, ter esse preço artificialmente baixo também pode gerar riscos. Por exemplo, se o motorista não estiver dormindo direito para fazer a viagem ou economizando em equipamentos de segurança, então, não é interessante para o consumidor”, avalia. 

Para o especialista, deve haver maior controle de órgãos como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), vinculado ao Ministério da Justiça, para investigar a precarização da modalidade, além de maior pressão social para padrões mais claros. Por fim, Calabria enfatiza a necessidade de se debater o estímulo ao uso e melhorias do transporte coletivo.  

Os transportes de app se nivelaram aos táxis?

Para o professor Edemilson Paraná, toda a conjuntura de tensionar os preços e de piora do atendimento dos apps “foi mudando a estrutura da própria atividade do táxi, que foi se configurando pressionado pela competição”. 

Em 2016, em meio às manifestações com a chegada da Uber, o Sindicato dos Taxistas do Ceará (Sinditaxi) também desenvolveu aplicativo próprio e começou a praticar preços mais competitivos. “Tivemos essa ideia de criar o app justamente para fortalecer a categoria, para os taxistas poderem disputar de igual para igual com os carros particulares de aplicativo e dar um ar de tecnologia e de inovação”, explica Messi Freitas, diretor da entidade. 

Atualmente, são mais de 3 mil condutores cadastrados na plataforma e 220 mil clientes, segundo o sindicato. O presidente do Sinditaxi-CE, Moura Taxista, afirma que muitos consumidores preferem a modalidade em razão de diferenciais como “profissionais gabaritados”, veículos regulamentados pelo município de Fortaleza, a possibilidade de andar na faixa exclusiva de ônibus e descontos de até 20% nas corridas. 

Todavia, consumidores ouvidos pela reportagem seguem com a percepção de que o táxi ainda não é uma opção econômica para substituir os apps.  A estudante Janainna Pontes Moreira, citada no início da reportagem, recorda de ter tido experiências nas quais os valores praticados pelos taxistas eram o dobro.

Comparação
Legenda: O Diário do Nordeste fez uma simulação para observar se há grande discrepância de preços entre a Uber e o Sinditaxi-CE
Foto: Diário do Nordeste

O supervisor de gestão, Leandro Perruci Ribeiro, de 28 anos, conta que começou a recorrer aos apps porque os táxis eram inacessíveis para o seu orçamento. Apesar de constatar queda na qualidade, ele não deve deixar de utilizá-los.

“Os transportes por aplicativos não são tão bons quanto já foram, mas eu acho que continua sendo uma opção melhor do que o táxi”, relata. Já a psicóloga Adhele Santiago, também mencionada no início deste texto, cogita ter outras experiências de mobilidade. 

O Diário do Nordeste fez uma simulação para verificar se há grande discrepância de preços entre a Uber e o Sinditaxi-CE. Uma viagem do Sistema Verdes Mares, no bairro Dionísio Torres, para o Shopping Iguatemi, no bairro Edson Queiroz, teve uma diferença de apenas R$ 0,06. 

Para economizar, o ideal é comparar os preços antes de decidir pela empresa a ser solicitada, considerando critérios como conforto e segurança.  

O que os motoristas dizem sobre o tratamento descortês?

O diretor da Associação dos Motoristas de Aplicativos do Estado do Ceará (Amap-CE), Rafael Keylon, argumenta que a situação é "subjetiva, e a violência se retroalimenta". "Quando um passageiro bate forte a porta e nem se desculpa, gera uma reação negativa; quando o motorista segue o GPS, e o passageiro queria outro caminho e reclama de forma hostil, gera a possibilidade de conflito”, exemplifica. 

“Grande parte dos problemas entre motoristas e passageiros podem ser resolvidos com diálogo, salvos os casos de sujar o carro, que requerem ressarcimento, mas as pessoas estão cada vez mais cheias de razão e menos de empatia, de ambas as partes”, declara, ponderando também haver muitas reclamações de clientes.

Sobre casos de assédio, Keylon diz que “faz parte da relação entre pessoas conviver e se deparar com todo tipo de gente, mas isso não é a regra”. “São exceções em um universo de 180 mil corridas por dia em Fortaleza e Região, porém, o conflito gera repercussão, o problema em si não é do serviço, são das pessoas de ambos os lados”, completa. 

Questionado se as pressões do ofício contribuem para o estresse dos motoristas, ele afirmou que as adversidades relacionadas à “insegurança financeira, atenção ao trânsito e problemas emocionais são questões que afetam a sociedade em geral, sendo os motoristas parte disso”.

O que diz a 99? 

Em nota, a 99 informou que “mais de 99,99% das corridas realizadas na plataforma se encerram em segurança graças às mais de 50 funcionalidades de proteção”. Sobre a conduta dos motoristas, afirmou ter lançado o “Selo de Verificação 99” para usuários com mais informações no aplicativo receberem classificações de acordo com a quantidade de validações realizadas.

Assegurou, ainda, ter projetos desde 2019 voltados para as mulheres e para incentivar  o empreendedorismo e empoderamento feminino, além de segurança na mobilidade urbana e combate à violência de gênero.

Sobre o veículo danificado na imagem acima, a companhia disse haver o Guia da Comunidade "para incentivar comportamentos que proporcionem a melhor experiência para quem dirige e viaja, frisando que os "motoristas parceiros devem estar com a documentação em dia e manter a boa conservação do veículo, com todos os seus acessórios de segurança funcionando perfeitamente".

A empresa afirmou que os motoristas e passageiros são responsáveis por garantir a limpeza do veículo para receber a próxima pessoa. “Caso se observe que o veículo não está em condições adequadas de higiene e conservação, é possível reportar na avaliação ao fim da corrida, podendo registrar possíveis ocorrências”, orientou. 

O que diz a Uber? 

Sobre o modelo de trabalho, a empresa destacou que, nos últimos anos, as diversas instâncias da Justiça brasileira formaram jurisprudência consistente sobre a relação entre a Uber e os parceiros, apontando a ausência dos quatro requisitos legais para existência de vínculo empregatício (onerosidade, habitualidade, pessoalidade e subordinação).

A empresa afirmou defender publicamente, desde 2021, a inclusão dos trabalhadores por aplicativo na Previdência Social, em modelo no qual as plataformas paguem parte das contribuições, proporcionais aos ganhos, de forma a reduzir o valor a ser desembolsado pelos parceiros.

Em relação à segurança do serviço, informou que o aplicativo inclui ferramentas de segurança antes, durante e depois de cada viagem, tanto para os usuários quanto para os motoristas parceiros.

Acrescentou também possuir projetos em parceria com ONGs e especialistas no assunto. “Entre eles, um compromisso público de enfrentamento à violência contra a mulher, que se materializa em uma série de projetos e iniciativas para combater o problema social complexo e sistêmico que é a violência de gênero", garantiu.

Sobre veículos sujos e danificados, lembrou ser possível avaliar de forma anônima e reportar algum incidente. 

“A empresa sempre reforça a todos os usuários, entregadores e motoristas parceiros do aplicativo que o Código de Trânsito Brasileiro deve ser respeitado para segurança de todos. A Uber também possui parceria com uma consultoria de segurança viária para produzir materiais educativos e de prevenção de acidentes”, enfatizou.

 

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