As cearenses que abriram mão da profissão para cuidar da família e hoje vivem desafio de empreender
Neste Dia da Mulher, o Diário do Nordeste conta a história de duas mulheres que pausaram as carreiras e engavetaram aspirações profissionais para exercer uma tarefa de cuidado, mas que provam que nunca é tarde para voltar a sonhar
“Quando eu tinha 15 anos, eu dizia: ‘eu ainda vou deixar meu nome marcado’”, revela Maria Luciene Silva, hoje com 49 anos, sobre o que gostaria de fazer profissionalmente quando era mais jovem. Ao longo dos últimos 34 anos, Lúcia, como gosta de ser chamada, colocou esse pensamento em segundo plano para realizar outro desejo: cuidar dos quatro filhos e ver o marido aprender a ler e escrever.
“Eu sempre dei prioridade para eles, meus filhos e meu marido. Estive sempre dando suporte, cuidando da casa, comida, mantendo tudo em ordem para que eles pudessem estudar. Tenho uma filha que vai se formar enfermeira e meu marido terminou os estudos e cursou ensino superior”, conta Lúcia, com orgulho estampado no olhar e no sorriso.
O sorriso, porém, é de orgulho não apenas da família e dos filhos, mas de si própria. Afinal, enfrentou uma série de batalhas ao longo da vida, como a depressão que a acometeu há cerca de 10 anos, quando Lúcia perdeu a mãe, o pai e o irmão em um curto intervalo de tempo. “Foi um período em que me desliguei de tudo, não queria mais saber de nada”, lembra Lúcia.
Nessa época difícil, ela já tinha retomado o sonho de “deixar o nome marcado” empreendendo com o artesanato, mas a doença acabou pausando o processo. “Eu já tinha começado a retomar meu sonho, mas aí embarreirou. Aí o meu marido começou a me apoiar. Ele me dá suporte até hoje, tem gratidão por mim, nós sempre conversamos muito sobre nossos sonhos”.
Hoje, além do papel financeiro, a atividade que desempenha com artesanato em chinelos também serve como uma tarefa terapêutica. Perguntada se faria algo diferente, se gostaria de “ter começado antes”, Lúcia acredita “que as coisas aconteceram como Deus quis. Sou muito católica e tenho isso comigo. Tudo no seu tempo”. “Nunca olhei para trás e pensei que podia ter feito diferente”.
“Tive que passar pelo que eu passei para ser a pessoa que sou hoje”, diz, complementando a importância de encontrar outras mulheres empreendedoras ao longo da sua jornada na Associação das Mulheres Empreendedoras do Ceará (AME). “Aqui eu estou fazendo com a minha filha um curso de vendas”. E ela deixa a lição: sempre é tempo de recomeçar. “Há muitas oportunidades se você fizer um bom investimento de aprendizado. Se você tem um sonho, lute para realizar. Independente do tempo”, acrescenta Lúcia.
Veja também
Suporte à família
O trabalho de cuidado desempenhado por Lúcia ao longo de todos esses anos foi fundamental para o desenvolvimento dos filhos, do marido e manutenção da casa e da família. Apesar disso, muitas vezes não é valorizado pela sociedade, conforme explica Nana Lima, diretora da organização não-governamental Think Olga. “A gente precisa encontrar maneiras de recompensar esse trabalho, visibilizar, porque é uma atividade muito importante para a nossa sociedade funcionar como ela funciona”.
Citando o relatório “Esgotadas” da Think Olga, lançado em 2023, Nana pontua que a autoestima feminina e os sonhos profissionais estão intimamente ligados. “Existe um impacto enorme quando elas abrem mão da carreira, dos sonhos, do trabalho formal. No “Esgotadas”, a gente consegue mapear o quanto não ter uma renda ou uma autonomia financeira impacta a saúde mental”.
Existe um impacto estrutural; psicológico, de autoestima, ambição e do quanto ela é valorizada pela comunidade, então o impacto nessas mulheres que abriram mão da carreira é muito grande"
Secretária da Associação das Mulheres Empreendedoras do Ceará, da qual Lúcia também faz parte, Lília Sales vivenciou a experiência de deixar a carreira de lado - justamente quando havia a possibilidade de ela ser promovida - para cuidar da mãe, que teve diagnóstico de Alzheimer e um tumor no cérebro.
“Eu comecei trabalhando em uma equipe de vendas de um plano de saúde. Comecei coordenando 12 pessoas, passei para 60 pessoas. Eu era casada e já tinha minha segunda filha, que hoje tem 18 anos, e galgava uma diretoria. Eu tinha chance, mas minha mãe adoeceu e meu irmão é falecido, minha irmã mora em São Paulo e eu era a única para cuidar”, conta Lília.
Mudança de vida
Naquele momento, sua vida estava prestes a passar por uma grande mudança: em meio a intensa rotina de cuidados com a mãe e os filhos, ela acabou sendo desligada da empresa. “Eu chegava no trabalho morta de cansada. Aí você já não produz o que precisa, mesmo assim você tenta. Quando a minha mãe saiu do hospital para ir para casa, ficou ainda mais difícil”.
“Minha filha, na época com oito anos, ligava o dia inteiro com medo de a avó morrer. Mesmo eu contratando uma pessoa para ajudar em casa, o meu telefone tocava o dia todo. Foi quando meu chefe na época me chamou e disse que não tinha mais condições de eu ficar”, detalha Lília. “Eu perdi essa oportunidade e tive que mudar completamente minha vida”.
Para garantir o sustento, começou a trabalhar com a comprar roupas e acessórios para revenda. “Eu enchia meu carro de mercadoria, ia até Camocim, Parnaíba. Vendia tudo e voltava para pegar mais mercadoria. Depois, quando minha mãe ficou mais debilitada, eu comecei a trabalhar com venda de uniformes para a hotelaria. Em 2013, minha mãe morreu”.
A venda de uniformes ia bem, até que chegou a pandemia, afetando sobretudo o turismo e consequentemente, o funcionamento do setor hoteleiro. Mais uma virada na vida de Lília estava por vir. “Nem os hotéis funcionavam, nem eu vendia. Foi quando eu comecei a vender, em uma casa que meu ex-marido tinha de frente para o Aterro da Praia de Iracema, produtos como redes, mantas, cachaças da serra. Não tinha ninguém viajando, mas como a casa era do meu esposo, eu não pagava aluguel, não tinha funcionário, então dava para seguir”.
Empreendedorismo
Lília estava feliz com a venda de produtos e mais um passo na jornada empreendedora, até que veio o baque: um divórcio. “Em 2023, meu marido se apaixonou por outra pessoa e começaram as humilhações, os assédios.
Ele dizia: ‘não te quero mais’, ‘sai da minha casa!’, ‘quer me ver com outra mulher?’.
“Na época, eu estava me dedicando muito à meditação e eu aprendi que nada é excepcional ou inédito. Tudo acontece com todos nós em espaços e tempos diferentes. Acontece, é da vida. Eu parei de pensar ‘ah, por que isso acontece comigo?’. Na época, peguei todas as minhas coisas e saí de casa. Levei minha mercadoria para o Mercado Central, onde uma amiga tem seis lojas”, compartilha.
O stress da separação a levou a um quadro de paralisia progressiva. Lília se mudou de onde viveu décadas de casamento, passou a se dedicar a novos projetos. Seguiu cuidando dos filhos e de si. “Quando tive a paralisia, minha mão não fechava. Faz seis meses que eu me mudei, saí de perto de onde eu morava com meu ex-marido. Mas, hoje, minhas mãos fecham”, conta, triunfante.
Perguntada sobre o que faria diferente em sua trajetória, ela não titubeia: teria se divorciado 10 anos antes. “Eu teria me separado 10 anos antes, não teria esperado 22 anos. Com 10 anos ele já dava indícios de que as coisas não iam bem. Mas a gente tenta. A mulher entrega muito mais em uma relação, deixa tudo pela família”, destaca Lília.
Trabalho de cuidado e uma questão cultural
A empreendedora social Deborah de Mari, pesquisadora e criadora do negócio de impacto “Força Meninas”, lembra que a tarefa de cuidado é culturalmente designada às mulheres desde pequenas. No caso das meninas, isso pode sobrecarregá-las e afastá-las de ter uma dedicação maior aos estudos.
“A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2021 descobriu que 88% das meninas em escolas públicas fazem trabalhos domésticos, então elas são encarregadas do trabalho da família, dos irmãos, dos idosos, da casa. Isso compromete as possibilidades de estudo, de explorar atividades extracurriculares quando são oferecidas”, lamenta Deborah.
Esses trabalho de cuidado, que segue as mulheres até a vida adulta, poderia ser reduzido a partir de políticas públicas, observa Nana Lima, da Think Olga. “São várias as políticas que podem ajudar a redistribuir o cuidado”.
“Aqui estamos falando de educação pública de qualidade, alimentação ideal -porque uma criança com a alimentação de qualidade vai ficar menos doente, não sobrecarregando a mãe com idas ao hospital -, casas de acolhida para pessoas idosas, transporte público, praças públicas. Tudo isso é exemplo de políticas que podem facilitar a carga de cuidado e dividir esse cuidado com toda a sociedade”.