Artesã indígena de Caucaia supera depressão com negócio de bonecas de pano: 'Já me salvou'
Com microcrédito orientado, idosa amplia sua confecção de bonecas de pano e projeta aumentar gama de produtos feitos de tecido
Maria de Fátima Alves da Silva, 67 anos, tem ascendência indígena e quilombola, e muito amor pelo que faz. Assim como uma colcha de retalhos, a líder comunitária da comunidade de Capuan, em Caucaia, região metropolitana de Fortaleza, costura seus sonhos, unindo ‘quadrado por quadrado’ das suas memórias afetivas e o amor por bonecas de pano que sempre fizeram parte da sua família.
O seu sustento vem de uma pensão, por viuvez, e do seu artesanato de bonecas de pano. Mãe de 4, a artesã vive, atualmente, com duas netas de 16 e 13 anos, de um total de seis e tem no artesanato um complemento de renda e possibilidade de melhoria de qualidade de vida.
“Comecei a fazer boneca já há muito tempo e com retalhos. Trabalho só com retalho. Compro o retalho no quilo e o pessoal também faz doações para mim. É muito retalho e muito amor por fazer essas bonecas”, diz, Fátima.
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A pensionista se dedica a confeccionar seus produtos e vendê-los nos finais de semana. Ela participa de feiras e qualquer uma das suas bonecas, que podem ser peso de porta, porta talheres e as tradicionais, para as crianças brincarem, custam R$ 20.
Em um dia bom de vendas, Fátima já chegou a vender 10 bonecas, mas ela lembra que a média é três. "Somos muitas artesãs em feiras e acabamos por dividir o público, o que não acho ruim, mas claro que gostaria de vender mais", comenta, ela, reforçando que em muitas oportunidades acaba vendendo um produto ou, até mesmo, nenhum.
Como tudo começou
Fátima recorda que a sua relação com os retalhos e bonecas de pano vem desde a infância.
“Minha vó era neta de escravos e só me dava boneca de pano. Eu nunca tive uma Barbie, boneca nenhuma dessas, a minha família não tinha dinheiro. Até minhas roupas eram feitas dos retalhos que minha avó, costureira, guardava. Foi assim que peguei amor pelas bonecas, pelos retalhos e por seguir os passos da minha vó".
Agora, passando essa tradição, ela também presenteia parentes a amigos com suas bonecas. “As pessoas gostam e recebem com o maior carinho, adultos e crianças”.
Passando de geração para geração
A artesã revela que mesmo morando com ela, as netas adolescentes não se interessam muito por dar continuidade a essa tradição das mulheres da família em trabalhar com costura, artesanato e retalho. Porém, ela vê esperança do seu legado no neto Lorenzo, de apenas cinco anos.
"Ele se interessa nas bonecas, em saber como faz. Quero que veja. Ele diz 'vó, daqui a uns dias eu vou fazer bonecas'. A mãe diz que não, mas ele retruca, 'vou fazer, sim, as bonecas da minha vó'. Ele gosta tanto que retrata as bonecas nos seus desenhos".
Com as mãos ela foi afastando a depressão
A idosa retrata que tem o artesanato como uma terapia.
“Já me salvou muito de depressão”.
“Tive covid, na pandemia, e achei que nem sairia viva. Fiquei duas semanas trancada em um quarto e foram as minhas bonecas a minha companhia. Eu costurei de tudo. Fiz fuxico, fiz boneca na máquina (de costura), fiz a mão, fiz grande e fiz chaveirinho, me ocupei e não pirei”.
Para dar mais fôlego a sua produção, há 3 anos participa do programa de microcrédito orientado Ceará Credi. Com o valor dos empréstimos sempre comprou material para aumentar a sua produção, como mais retalhos de tecido em quilo, botões, laços, cabeças e tintas usadas para pintar os rostinhos.
O seu primeiro crédito foi de R$ 500, o segundo foi de R$ 1 mil e o terceiro de R$ 2 mil. Em todos Dona Fátima teve o bônus da adimplência, chamado de cashback, por pagar em dia.
"Eu nem lembrava que tinha isso, mas um dia a menina (neta) disse que tinha R$ 100 na minha conta e fui olhar e era esse cashback. Fiquei muito alegre porque naquele dia, eu não tinha nenhum centavo. Porque tem dia que tem dinheiro, tem dia que não tem, essa a realidade de quem vive de artesanato. Então, foi muito bom", conta sorridente.
Agora, a sua meta é, com uma quarta renovação do empréstimo, comprar duas máquinas de costura profissionais (uma reta e uma overloque), para melhoras o acabamento das bonecas e começar a produção de peças maiores, como toalhas de mesa, colchas de cama e almofadas, por exemplo.
“Ter crédito na praça me ajudou a ter mais autoestima, porque é um programa de juros baixos, então posso aumentar a minha produção e só com o meu artesanato consigo pagar as prestações direitinho, em dia".
Transformar realidades com a economia solidária
Silvana Parente, economista, diretora de Economia Popular e Solidária da Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará (Adece) e coordenadora do Ceará Credi, afirma que o primeiro passo que a sociedade deve dar com relação a sua formação é o reconhecimento da economia popular e solidária, composta de micro e pequenos empreendimentos, sejam eles individuais ou em grupo.
"Essa economia absorve quase metade do trabalho, da mão de obra existente. Então, ela não pode ser desprezada, ao contrário, precisa ser apoiada e reconhecida".
Ela pondera que muitos destes negócios são de empreendedores de sobrevivência. Porém, já há casos em que se observa uma acumulação de capital simples, ou até mesmo ampliada, mostrando a importância e o crescimento deste setor na pirâmide empresarial do Brasil e do Ceará, principalmente, na medida que gera oportunidade de trabalho e renda para milhares de pessoas.
Mesmo assim, Silvana diz que todo esse movimento é pouco visto. Existem poucas políticas públicas, ainda, para este segmento. Uma delas é a do microcrédito. Como exemplo dessa política de forma robusta, ela aponta o Crediamigo do Banco do Nordeste (BNB) e, desde a pandemia, o Ceará Credi, que é a política pública do Governo do Estado para o microcrédito.
Pandemia deixou tudo ainda mais evidente
"Na pandemia ficou evidente que muitos desses empreendedores são informais e que com o lockdown todo esse sistema ficou colapsado. Eles vivem na rua, vendem para a população que está transitando. São ambulantes, feirantes, têm seus negócios no fundo do quintal, pequenos negócios artesanais, pequenos mercadinhos, então todo esse setor de comércio e serviço sentiu muito."
A coordenadora do Ceará Credi lembra que essas pessoas viveram um tempo com as parcelas do auxílio emergencial do governo federal, mas que quando isso acabou, o Governo do Ceará precisou buscar alternativas.
"Naquele momento o nosso foco era a inclusão social, permitir que as pessoas voltassem a trabalhar ou arrumassem uma ocupação, já que a economia formal não estava contratando, ao contrário, estava demitindo. Então, o Estado teve que entrar. Não dava para esperar. Os bancos estavam se retraindo cada vez mais por conta dos movimentos políticos".
Quando é "coisa de pobre", os bancos não entram
Como economista, Silvana explica os motivos de ainda se ter muito poucas linhas de crédito voltadas para esse público. Ela comenta que o sistema financeiro convencional não chega a esse segmento.
"Não chega a esse segmento porque é coisa de pobre, tem alto risco, dá trabalho e tem um custo operacional alto. Então, o sistema financeiro bancário tradicional não se interessa por isso".
Porém, ela revela que alguns bancos já estão modificando esse comportamento e cita o Santander e o Banco do Nordeste. "Esse (BNB) já começou há anos, mas é um banco público de desenvolvimento e por isso enxergou que tem essa camada desassistida pelo sistema bancário e começou a atuar aí".
Olhar diferenciado para quem quer começar
Diferente de outras iniciativas, no Ceará Credi o Governo do Estado aponta o seu olhar também para a geração de oportunidade, com o financiamento para abertura de negócio.
"A pessoa que não tem nada ou que está desempregada, analisamos a abertura desse negócio porque sabemos que ela não teria outra chance, ela é invisível. Pode já estar no mercado, mas de forma precária. Então, vai precisar do capital de giro para melhorar suas mercadorias, diversificar suas vendas, ou ainda de um pequeno equipamento para produzir mais e melhor", diz a coordenadora do programa.
O negativado tem uma chance
Outro fator que exclui muitas pessoas do sistema financeiro é a negativação. Para isso, o Ceará Credi tem uma política diferente que não exclui a pessoa, mas analisa caso a caso para auxiliá-la da melhor forma.
"Isso é muito sério. Aceitamos o negativado, desde que seja uma intercorrência leve. Por exemplo, às vezes é uma conta de luz, uma conta de água, um valor pequeno que é só essa pessoa começar a trabalhar que ela resolve a pendência".
Ele ainda explica que são consultadas as redes de crédito, como SPC e Serasa. "Separamos o joio do trigo, que são aquelas pessoas que tiveram dificuldades pontuais daquelas que tem várias intercorrências. Vemos o histórico todo, analisamos e se é possível, damos a oportunidade".
Para aquelas que não querem começar sozinhas
Outra diferença do programa é o financiamento para grupos. Essa modalidade está dentro da linha voltada para mulheres, o Ceará Credi Mulher. A partir de 2023, com o lançamento desta linha de crédito, em parceria com a Secretaria das Mulheres (que tem como titular da pasta a vice-governadora Jade Romero), 70% dos créditos aprovados pela iniciativa são para mulheres.
Dentro desse escopo ainda pode ser feito o crédito em grupo. Assim, de 4 a 7 mulheres podem se unir para abrir um negócio ou ainda unificar ações que existiam antes de forma individual, em um empreendimento maior e do coletivo.
"Nesse caso, o negócio é conjunto. Pode ser uma padaria, um mercado, um salão de beleza, ou qualquer outro tipo de negócio. Pode ser com a vizinha, a comadre, uma amiga ou parente. Nessa linha temos um limite maior, que vai até os R$ 21 mil (valor limite do microcrédito no país) para auxiliar essa ideia a prosperar", comenta Silvana, lembrando que no microcrédito individual, o valor limite é de até R$ 5 mil.
Taxas de juros
Sobre as taxas de juros, o programa tem as menores taxas do mercado, aplicando 1% para valores voltados para investimento e 1,2% para valores que entram no negócio como capital de giro. Além disso, há uma taxa de abertura de crédito que, atualmente, está em 2%.
"É uma taxa de juros um pouco acima da Selic, só para corrigir mesmo o valor do dinheiro. É importante ter o juro também pelo fato da educação financeira", explica a coordenadora do Ceará Credi.
Bônus de adimplência, o famoso Cashback
O programa Ceará Credi conta também com um bônus de adimplência de 10% sobre as parcelas do empréstimo pagas em dia. Esse bônus irá para uma conta do tomador de crédito, gerando uma espécie de poupança para o beneficiário.
Assim, ao final do pagamento ele recebe um valor que pode ser usado de capital de giro para ampliar ainda mais o negócio.
Vale lembrar também que os empreendedores podem, ao final do pagamento do crédito, pedir a renovação. Para isso, basta conversar com o seu agente de crédito que é quem faz o elo entre o programa e os beneficiários.
"É sempre importante lembrar que não é porque o valor é do governo, que não é necessário pagar. Com 90 dias de atraso o tomador de crédito inadimplente é negativado. Então, ele precisa entender que pagando as suas parcelas em dia ele tem o bônus, que serve como uma poupança, e ele também faz o dinheiro girar e isso abre possibilidades de empréstimos para outras pessoas", ressalta Silvana.