Desemprego provoca 'boom' de entregadores por apps na Capital

Pedalando com bolsas térmicas nas costas, ciclistas costuram diariamente as ruas de Fortaleza para garantir renda fixa ou dinheiro extra. Condições e vínculo de trabalho são objetos de discussão

Escrito por Cadu Freitas/Lígia Costa , negocios@verdesmares.com.br
Legenda: Bolsas térmicas levam produtos e histórias de quem pinta a cidade
Foto: Foto: Kid Junior

Basta observar o movimento de uma grande avenida de Fortaleza para, em poucos minutos, perceber o vaivém de bolsas térmicas (bags) colorindo as ruas da cidade. De um lugar a outro, elas vão levando mais que alimentos ou outros itens, mas alternativas para garantir um complemento de renda ou mesmo o sustento de uma família inteira.

Para além dos roncos das motos, o uso da bicicleta está crescendo como meio de transporte. Isso porque as entregas por aplicativos (apps) vêm despontando por aqui.

Não há pesquisa que aponte o aumento de ciclistas entregadores nas ruas da Capital, mas a concorrência por espaço nas vias é sentida por quem trabalha com as plataformas.

É o que garante Aidan Afonso Nogueira, 40. Auxiliar administrativo de uma empresa de resgate durante o dia, à noite pedala com destino à renda extra, com a qual possa oferecer melhores condições de vida aos dois filhos pequenos.

Para além do trabalho efetivo, chega a disponibilizar, por semana, aproximadamente 44 horas para obter cerca de R$ 75. Por hora, portanto, recebe o equivalente a R$ 1,70.

"É muito pouco. Comecei de abril para maio (deste ano), quando houve o boom desses serviços de entrega, mas passou a entrar muita moto, ciclista e a demanda começou a diminuir", afirma, lamentando que os R$ 300 a R$ 400 que garantia em 7 dias, agora chegam somente à casa dos R$ 80 a R$ 100. Uma queda "drástica", reforça Aidan.

Uma prática comum entre os entregadores - seja de moto ou bike - para incrementar o número de entregas é ativar dois ou mais aplicativos, ao mesmo tempo. E dedicar, pelo menos, cinco horas do dia à atividade. A fidelidade a um único app, diz Aidan, não compensa, pois são menos os chamados. Logo, não se obtém "nem metade do dinheiro", normalmente arrecadado.

Acessibilidade

Com ensino superior incompleto, e sem perspectiva de retomar os estudos, ele justifica a escolha pelo "bico" por ser o que "estava mais acessível" no período em que ficou desempregado. "Foi realmente para complementar a renda. E não exige entrevista; é só baixar o aplicativo e começar a trabalhar, fazendo o seu próprio horário".

A facilidade em começar a atuar sem burocracias e exigências também atraiu Luan Ramá, 28. Todos os dias, desde abril, ele sai do bairro onde mora - Quintino Cunha - para trabalhar, pedalando a própria bicicleta. O ponto de espera das entregas, geradas a partir de três aplicativos, fica no bairro Dionísio Torres. "O número de pessoas na rua aumentou, mas esse trabalho remunera até bem. Elas (empresas) também não olham pra aparência, não exigem fardamento, isso me atraiu", conta Luan, ressaltando ainda que "adora" andar de bicicleta. Por tabela, perde peso e ainda mantém a saúde em dia.

Única fonte de renda, a entrega por aplicativos demanda de Luan, semanalmente, 50 horas de dedicação, em troca de R$ 350. Por mês, recebe cerca de R$ 1.400, valor superior ao salário mínimo e do qual não planeja abrir mão.

Restrições

Se, por um lado, o sistema de entregas por aplicativos se configura como uma oportunidade de acesso rápido a uma renda extra ou fonte de renda única imediata, por outro, impõe uma série de restrições para quem o adota. Não há, por exemplo, proteção para os entregadores, expostos a riscos de assaltos, intempéries climáticas ou mesmo a graves acidentes nas ruas. Sem esquecer que, pela baixa remuneração e sem um emprego formal, poucos deles conseguem se resguardar para o futuro, pontua o coordenador de Estudo e Análise de Mercado de Trabalho do Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (IDT), Erle Mesquita. "É preocupante. Se for olhar no Ceará, 90% do total de autônomos, que é de 1,120 milhão, não contribuem para qualquer regime de previdência. Eles ficam à mercê da própria sorte", aponta Erle, baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), referentes ao 2º trimestre de 2019.

Inclusive, na virada do 1º para o 2º tri deste ano, houve uma redução na taxa de desempregados no Ceará, de 11,7% para 10,9%, de acordo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entretanto, boa parte dos postos de trabalho gerados ainda são em tempo parcial e intermitente.

Vínculo empregatício

Segundo alguns dos entregadores entrevistados, plataformas como Uber Eats aplicam uma pena àqueles que não realizam a entrega no tempo estipulado para o cliente, podendo passar horas ou mesmo dias sem receber chamados.

Obrigatoriedades do tipo, suscitam a polêmica quanto à existência ou não do vínculo empregatício entre entregadores e as empresas de delivery digital. Embora confirme que o tema renda diferentes entendimentos, mesmo nos tribunais, a presidente da Comissão de Direito do Trabalho da OAB-CE, Adhara Camilo, argumenta que são necessários, pelo menos, quatro requisitos mínimos para a comprovação do vínculo. São eles: a subordinação, a habitualidade, a onerosidade e a pessoalidade.

"Essas plataformas acreditam que não há subordinação, nem habitualidade porque esses entregadores podem ligar o aplicativo na hora que querem, e aceitam ou não os pedidos". Por outro lado, pondera, o pagamento é determinado pelo aplicativo e não pelo trabalhador autônomo. "No geral, o que vemos é uma precarização desses trabalhadores; não há uma parceria".

Para o juiz do trabalho e professor universitário, Konrad Saraiva, é difícil enquadrar os entregadores de aplicativos como autônomos ou não porque eles permanecem hoje em uma "zona cinzenta". Ou seja, "nem são totalmente autônomos, e nem totalmente subordinados às empresas; estariam em um meio termo". Logo, o vínculo dependeria de caso para caso.

Já o economista e professor do Instituto Superior de Administração e Economia (Isae), conveniado à Fundação Getulio Vargas, Pedro Salamek, considera a economia do compartilhamento um modelo que não exige vínculos. "Não acredito que esse modelo vá buscar um engessamento de vínculo empregatício, ele tende a ser aberto mesmo".

A entrega via aplicativos, afirma ele, é uma atividade que tem como função primordial a comercialização da logística, interligando quem quer comprar e quem quer vender. E não cabe enquadrá-la como uma atividade alvo de precarização. Pelo contrário. Seria uma forma eficiente de dinamizar a economia nacional e que veio para ficar, considerando a popularização do uso de apps de serviços. Em seu bojo, ainda promove a liberdade ao trabalhador, que pode se organizar para sair às ruas nos horários em que julgar mais convenientes.

Ainda assim, o professor alerta para uma "injustiça social" neste modelo econômico, resultante da baixa remuneração. "Me preocupa que quem ainda é mais remunerado é quem cria o aplicativo. Lógico, se fosse inviável, as pessoas não fariam, mas existe uma concentração de renda".

Subordinação

Procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Pernambuco, Vanessa Patriota defende que o conceito de subordinação mudou. Quando ocorre por intermédio dos aplicativos, transforma-se na chamada "subordinação cibernética", a qual não fica mais restrita às clássicas ordens diretas, comuns às empresas tradicionais.

"Por meio da programação algorítmica, é dito cada passo que o trabalhador pode tomar e são estabelecidas regras. A empresa diz que ele é autônomo, mas que autonomia é essa que ele não pode negociar preços?", questiona, defendendo ainda que o autônomo tem apenas a "falsa impressão" de que escolhe a hora em que vai trabalhar.

A procuradora atribui a ampla aceitação das regras por parte do entregadores à falta de vagas no mercado de trabalho. "A nossa esperança é que o Judiciário atente que essa relação de emprego é uma fraude, é um pseudoempreendedorismo, e possa reconhecer os vínculos empregatícios".

Legislação própria

Como os profissionais da área não têm acesso aos direitos previstos na CLT, Konrad Saraiva, assim como Vanessa Patriota, sugere a criação de uma legislação específica que contemple a categoria. "Era bem razoável que tivessem limitação de jornada. Mesmo que sejam trabalhadores autônomos, eles precisam ser olhados com outros olhos", arremata o juiz.

Empresas

Tendo "questões estratégicas" como justificativa, Uber Eats, Rappi, Ifood e James Delivery não informaram à reportagem a quantidade e nem o perfil dos entregadores hoje cadastrados em suas plataformas em Fortaleza.

A Rappi endossou que oferece aos entregadores a chance de "ganhar uma renda extra", bem como oferta a todos eles "centros de atendimento presenciais e um chat em tempo real, por meio do qual eles podem resolver qualquer tipo de problema". 

A Uber Eats, por sua vez, diz que "traz novas oportunidades econômicas às cidades, na medida em que permite que pessoas que não têm acesso a um carro, mas a uma moto ou a uma bicicleta, também passem a gerar renda ao toque de um botão".

O iFood diz que "gera oportunidade de renda para cerca de 72 mil entregadores cadastrados na plataforma", além de "outros 200 mil que atuam diretamente com restaurantes". Por meio do aplicativo, soma, é possível "atuar de forma independente".

Já o James Delivery declara que o perfil dos entregadores "varia bastante de acordo com a cidade e os hábitos locais. Temos cadastradas pessoas que trabalham em empresas e usam o app como renda extra, além de profissionais que operam em todas as plataformas", o que "lhes dá maior liberdade de atuar em diversas regiões".

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