Por que é difícil provar crimes de assédio e importunação sexual e o que pode servir de indício

Rede de proteção busca priorizar o relato da vítima como principal atestado da violência

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Homem coloca mão na perna de mulher, que tenta evitar o contato
Legenda: Assédio sexual ocorre quando existe relação de hierarquia entre agressor e vítima, comum a ambientes de estudo e trabalho
Foto: Shutterstock

“Será que ele tava falando sério ou só brincando? Ele tava só me elogiando... Será que eu tô louca? Será que ele me abraçou assim porque me acha bonita? Eu não deveria ter usado essa blusa… Será que confundi? Não vale a pena denunciar. Será que se eu denunciar vou estar sendo injusta? Como é que eu vou provar?”

Toda mulher já sofreu algum tipo de assédio ou importunação sexual. É uma certeza que vai além de dados, está cravada na existência. Para as vítimas, porém, só restam dúvidas – e um processo duro de identificar, denunciar e provar essas violências, não importa a classe ou posição social. Vide Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial

O Diário do Nordeste conversou com especialistas para entender, então, uma questão central: afinal, por que ainda parece tão difícil provar esses crimes? Por que ainda é desafiador compreender-se como vítima?

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Antes de tudo, é importante explicar a diferença entre os dois crimes:

  • O que é assédio sexual: está ligado ao uso de uma hierarquia para obter favorecimento sexual – como um chefe ou um professor que impõe relacionamento com uma empregada ou aluna, por exemplo. A pena prevista pelo Código Penal é de 1 a 2 anos de prisão.
  • O que é importunação sexual: é praticar, sem consentimento, um ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a si ou a terceiro. Ela foi criminalizada no Brasil em setembro de 2018 pela Lei nº 13.718. A pena é de 1 a 5 anos de prisão.

A delegada Gisele Martins, titular da Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza (DDM), aponta que, dos dois, o crime mais comum entre os relatos das vítimas cearenses é a importunação sexual.

“O assédio sexual é um pouco mais raro de recebermos denúncia. Porque o autor tem que ser necessariamente um superior hierárquico ou que tem qualquer tipo de ascendência sobre a vítima, e usa isso para ser favorecido sexualmente”, diferencia.

A importunação, por outro lado, está no dia a dia, “em qualquer lugar ou situação”.

Mulheres dentro de ônibus de Fortaleza, um dos locais com mais casos de importunação sexual em Fortaleza
Legenda: Ônibus de Fortaleza estão entre locais com mais casos de importunação sexual em Fortaleza
Foto: Helene Santos/SVM

“Ela se realiza em locais públicos, com aglomerações de pessoas, como terminais de ônibus, dentro dos coletivos, estádios de futebol e na própria rua. Geralmente, consiste nos toques e na aproximação indesejada”, resume a delegada, reforçando a importância de as vítimas denunciarem as violações.

“Os agressores não se veem como autores de um crime; e as vítimas, muitas vezes, não se veem como agredidas. Então, a importância da denúncia é para que a gente tome as providências cabíveis”, frisa.

Sobre a resistência que muitas vítimas têm em denunciar por acharem que não serão acreditadas, a delegada é categórica: a palavra da mulher que sofreu alguma violência dessa natureza tem grande potência no processo.

“Muitas vezes o que impede a vítima de denunciar é que ela não tem prova, acha que ficará a palavra dela contra a dele. Mas nos crimes de violência sexual a palavra da vítima tem especial relevância e importância”, explica Gisele.

Quais as provas de assédio ou importunação

Para respaldar o próprio relato, a vítima de importunação sexual ou assédio sexual pode utilizar ainda outros recursos como indícios da violência, segundo lista a titular da Delegacia da Mulher:

  • Testemunhas, não necessariamente oculares, mas que conheçam a situação;
  • Imagens de câmeras de segurança; 
  • Mensagens de texto, de preferência originais, e não prints, embora estes também sejam aceitos;
  • Áudios e vídeos.

As maneiras de provar, explica Gisele, “dependem do caso concreto e da situação narrada pela vítima”. Por isso, a delegada reforça que a ida à estação policial para efetivar o Boletim de Ocorrência e receber todas as orientações, acolhimento e tirar dúvidas de como proceder é o ideal para a vítima.

“Mas, salientando, a palavra dela tem muita importância e vamos obrigatoriamente investigar. Se ocorrer a importunação e a vítima não consumar a denúncia, teremos muita subnotificação”, pontua Gisele, ressaltando que “um terceiro que tome conhecimento do crime também pode denunciar”.

“Se ele não quiser se identificar para ‘não se envolver’, pode acionar o 180, as denúncias são distribuídas e damos prosseguimento à investigação.”

Mas se eu só percebi que fui importunada ou assediada sexualmente ou até anos depois da violência, posso denunciar? Sim, pode e deve, como sublinha a delegada Gisele.

“Mesmo que tenha decorrido um tempo a mulher pode procurar a delegacia. Mas quanto mais cedo noticiar o crime, mais fácil será de a gente conseguir apurar com celeridade, coletando o maior número de provas. Mas nada impede que ela denuncie.”

Por que é tão difícil denunciar

Para Conceição Rodrigues, professora de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e coordenadora do Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual (Nugeds), ambos, assédio e importunação, têm base no “machismo recreativo”, que traveste as violências de “piadas e brincadeiras”.

“Há muito tempo já estão dadas na sociedade as piadas machistas, os comportamentos ditos brincadeiras, mas que só servem para encobrir um profundo machismo. Ele serve pra assegurar que aquelas pessoas que estão cometendo o ato possam sair ilesas sob a tutela de estarem apenas brincando”, analisa a pesquisadora.

“É aquela velha história: nunca o homem pode ser responsabilizado: ou é jovem demais, não entende o que está falando; ou já é velho demais, não tem o que fazer, cresceu nesse costume”, critica Conceição.

Outro fator que torna mais difícil para a vítima identificar que está sofrendo alguma violência é a culpa. “A mulher sempre se sente culpada por ter sido assediada. A pergunta que sempre vem é: ‘o que eu fiz pra isso? Estava com a roupa errada? Será que dei um sorriso, cabimento?’”, exemplifica a professora.

“E isso vem à cabeça da mulher porque é recorrente na sociedade, é usado em júris para minimizar a culpa dos agressores”, complementa Conceição, definindo a vergonha e a culpa como “questões de foro íntimo”, mas “culturalmente construídas”.

A pesquisadora frisa que a falta de informação é outro obstáculo para as vítimas efetivarem as denúncias. “É não saber as leis e os espaços que lhe asseguram, como a delegacia da mulher. Isso tudo atravessa a dimensão do sentimento que a mulher tem de querer ou não denunciar. A violência sexual no Brasil é um dos crimes mais subnotificados.”

“Os números são alarmantes, mas são a ponta do iceberg, não são representativos da realidade de quantas mulheres sofrem assédio e violências correlatas. Elas têm medo de sair de vítimas a culpadas pela violência que sofreram”, lamenta Conceição.

A professora opina que a mudança desse cenário violento sobretudo para mulheres está condicionada a uma “transformação de mentalidades”. “Cada vez mais a sociedade se mostra intolerante a esse tipo de comportamento, e justamente porque está em debate. A mídia, as artes e a educação estão se preocupando com esse assunto. Passa por aí: pelo processo informativo”, frisa. 

Leis mais firmes, ela acrescenta, também são indispensáveis para proteger as vítimas, mas é preciso, principalmente, “reconstruir as bases” da sociedade.

“A questão central pra gente compreender o assédio é que ele está perpassado por uma questão de poder. O que temos que transformar são as mentalidades. Isso, claro, é bem mais complicado, é de longo prazo. Mas isso só se faz quando reconstroi as bases: educação, legislação, comunicação. Em que você passe a não aceitar mais o assédio e a importunação sexual como naturais.”

Onde buscar ajuda

Caso seja vítima de violência sexual, física, psicológica, emocional ou de qualquer gênero, a mulher pode e deve buscar auxílio da rede de proteção no Ceará.

  • Casa da Mulher Brasileira – Rua Tabuleiro do Norte, s/n. Bairro Couto Fernandes, Fortaleza, Ceará. Telefone: (85) 3108-2999
  • Casa da Mulher Cearense de Juazeiro do Norte – Av. Padre Cícero, 4501. Bairro São José. Telefone: (85) 98976-7750
  • Casa da Mulher Cearense de Quixadá – R. Luiz Barbosa da Silva, s/n. Bairro Planalto Renascer.
  • Casa da Mulher Cearense de Sobral – Av. Monsenhor Aloísio Pinto, s/n. Bairro Cidade Gerardo Cristino.
  • 17 Casas da Mulher Municipais (lista aqui)
  • Disque 180 – Central de Atendimento à Mulher
  • 190 – Polícia Militar

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