Nômade digital: a rotina do cearense que deixou moradia fixa e já viajou por 9 estados do Brasil
Gabriel Viema faz amigos durante viagens e acumula memórias dos lugares pelos quais passa
O contrato de aluguel em Fortaleza estava perto de acabar no mesmo momento em que a vontade de sair mundo afora crescia, após o agoniante isolamento social durante a pandemia. Como só precisa de um computador conectado à internet para trabalhar, o designer Gabriel Viema, de 23 anos, embarcou numa viagem sem passagem de volta.
Já são 9 estados visitados desde novembro do último ano, e o trajeto, iniciado pelo Nordeste, avança para o Sudeste do País. No futuro, Gabriel pode continuar atendendo os clientes brasileiros direto da Argentina ou da Venezuela. Não há um plano fixo.
Essa flexibilidade faz parte do estilo de vida que ganhou popularidade na última década com termo originado no livro "Digital Nomad", escrito por Tsugio Makimoto e David Manners, em 1997. Na prática, os nômades digitais são pessoas sem endereço fixo, com profissões exercidas pela internet, e que têm como rotina conhecer outras cidades.
Modo avião
Na primeira fase dessa jornada, o jovem entrou num ônibus para o Rio Grande do Norte acompanhado de duas amigas. “Começamos por Natal para fazer um mochilão pelo Nordeste, porque não faria sentido ir primeiro para fora do País”, detalha.
A aventura, no entanto, começou com alguns entraves. “Levamos um banho (nas expectativas) porque tudo que a gente achava que seria não foi. Então ficamos um mês convivendo, tivemos que replanejar a rota e fomos para Recife”, completa Gabriel.
De lá, cada um decidiu seguir por rumos diferentes. Gabriel foi para a Bahia, Minas Gerais, Paraíba, Piauí e, enquanto conversava com a reportagem, chegou ao Espírito Santo. Alguns registros são compartilhados nas redes sociais, mas só depois de vivenciados.
Não gosto de ficar no Instagram, às vezes fico até com o celular no modo avião. Faço vários conteúdos, mas não perco a experiência de conhecer o lugar
Gabriel escolhe os lugares com base, principalmente, em dois critérios: a existência de praia e a proximidade. Para isso, ele percorre estradas de ônibus ou por meio aplicativos de caronas em que vai “a viagem toda conversando” com a pessoa do volante.
Nas últimas viagens, tem dado preferência ao avião e já possui conhecimento suficiente para aproveitar bem as milhas acumuladas no cartão de crédito. Ao chegar em um novo estado, Gabriel fica hospedado em pousadas, hostels ou em outras modalidades de locação.
Caso tenha identificação com o lugar, são até 2 meses experienciando as ruas, paisagens, convivendo com as pessoas. Se não, organiza as roupas e o computador na mala, partindo em 2 semanas.
“No início eu comprava bastante marmita, mas sempre me hospedei em locais com cozinha e isso até me ajudou a ganhar gosto pela cozinha. Hoje eu cozinho minhas próprias refeições, faço marmitas para a semana... É muito prático, barato e me ajuda a relaxar”, descreve sobre a rotina.
Gabriel conheceu outros nômades digitais durante as viagens e explica que cada um tem a própria forma de se organizar. Em comum, têm a vantagem de “trabalhar de qualquer lugar”. “As pessoas pensam que somos herdeiros, filhos de ricos, mas essa é a maior diferença: temos que trabalhar”, detalha.
Na Praia de Pipa, no Rio Grande do Norte, fez amizade com um grupo que se autodenominou “pipeiros”. Com tanta conexão, os nômades se reencontraram em Belo Horizonte, em Minas Gerais.
O que me marca é ir para os lugares sozinho e voltar acompanhado, com bagagens de vivências
Conciliar trabalho e viagem
A rotina de Gabriel varia conforme as demandas de design, sendo as semanas mais intensas com 12h de expediente por dia. Já nos momentos tranquilos, “bate o ponto” após 4h trabalhadas.
“Em Fortaleza, eu trabalhava 24 horas, 7 dias por semana, isso tava me sugando muito. Comecei a colocar limites nos clientes e no fim de semana aproveito ao máximo para sumir”, compara.
Entre pesquisas e indicações trocadas com os moradores das cidades por onde passa, ele define os pontos para conhecer. Na Bahia e em Pernambuco, gostou tanto do que viu que já voltou às capitais.
No Espírito Santo deve ficar por mais tempo por ter encontrado uma estrutura confortável e para ter um melhor bem estar. “Começaram alguns problemas na rotina, tenho que refazer meus horários de trabalho, os treinos (de academia), e minha saúde, que é uma coisa que vai embora muito rápido”, completa Gabriel.
Nascido em Viçosa, na Serra da Ibiapaba, o designer sente falta da família e dos amigos – além dos passeios de bicicleta por Fortaleza –, mas segue fazendo amizades por onde passa.
“Minha família fala que eu sou frio, mas tento estar presente e sou mais prático: quero saber como posso ajudar. Outro dia liguei para minha irmã e ela se assustou”, lembra entre risadas.
Liberdade aprisiona?
Estar sozinho não é um problema para Gabriel e os passeios Brasil afora ensinam que nem sempre os comentários negativos sobre a estrutura de uma cidade condizem com a realidade.
Em outros momentos, quando achava que a experiência ia ser furada, teve boas surpresas, como foi no Morro de São Paulo, um lugar de ilha da Bahia.
“Peguei o barquinho, não tinha ninguém conhecido, fiquei num hostel pela primeira vez e achei super desconfortável. No grupo de Whatsapp do local, comecei a interagir, fiz amizades e já marquei passeios”, destaca.
Em meio a tanto movimento e planos para o futuro, Gabriel reflete sobre a prisão que pode ser o estilo de vida considerado livre. Daqui para frente, pretende respeitar o tempo do corpo e da mente para seguir, seja em qual momento for, para o próximo destino.
“Estava conversando sobre o tempo de viagens, e a gente se força a viajar, sinto que estou chegando num ponto em que se eu não viajar estaria perdendo meu tempo. Isso não é legal”, conclui.
Nomadismo digital
Edemilson Paraná, professor de Sociologia Econômica da LUT University, na Finlândia, e da Universidade Federal do Ceará (UFC), analisa que o nomadismo digital é uma tendência foi intensificada no "pós-pandemia".
"Os arranjos para o trabalho remoto se tornaram mais flexíveis e a partir da tolerância as pessoas passaran a considerar a possibilidade de fazer o trabalho numa localidade distinta da sede da empresa", frisa.
Nesse período, o entusiamos inicial deu lugar para a realidade prática do cotidiano de trabalho. "As dificuldades, os limites e os problemas desse modelo estão se revelando de maneira mais clara e está acontecendo um passo para trás, muitas empresas começam a reavaliar", analisa.
A liberdade, escolha do lugar mais favorável, e viver experiências marcantes estão entre as vantagens para os trabalhadores. Conseguir talentos de outros lugares e aumentar a produtividade estão entre os benefícios para as empresas.