Das casas de palha aos arranha-céus: como a orla de Fortaleza mudou nos últimos 100 anos
Modificações na área privilegiada evidenciam as transformações sociais e o planejamento urbano da capital cearense
Aqui está o convite para um passeio pela orla de Fortaleza. A partida, no entanto, acontece há 100 anos, quando casas de palha de pescadores e construções baixas começaram a desenhar a região. Depois, fazemos uma parada para acompanhar a construção de alguns prédios históricos, como o Edifício São Pedro, o Estoril e o antigo Boteco.
O desembarque será feito na vista dos dias atuais, mas sob uma outra perspectiva. Topa? Esse resgate histórico, da Praia de Iracema, do Meireles e do Mucuripe, compôs uma dissertação de mestrado do curso de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Antes de passear por essa linha do tempo, no entanto, um alerta – ou spoiler, como se diz. A concentração de investimentos públicos na área e a verticalização acima do limite mostram a desigualdade social vivenciada em Fortaleza. Isso pode se ampliar.
“Cada vez mais o metro quadrado, principalmente no Meireles, se torna mais caro e intensifica a questão da desigualdade socioespacial. Hoje em dia, é praticamente impossível alguém, até da classe média, residir nessa área”, reflete Isabella Freires Tavares, mestre em geografia.
Com o foco naquela região da cidade, onde o turismo parece justificar uma concentração de investimentos, algumas regiões de Fortaleza ficam menos assistidas, como reflete Alexandre Queiroz, membro do Observatório das Metrópoles e colunista no Diário do Nordeste.
“Vão se criando fragmentos de cidade que demonstram essa desigualdade, concentração de riqueza, que se dá em todos os lugares, mas não é algo para se vangloriar. É preciso fazer um debate de como estão os outros espaços da cidade”, acrescenta.
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Casas de palha e de Veraneio
Imagine pisar nas areias da orla fortalezense sem nenhum prédio e ver as primeiras moradias surgir com a simplicidade dos pescadores. Feitas de palha, em 1925 , um registro mostra a fileira de casas e a vegetação natural.
Além dos pescadores, cearenses que fugiam da seca encontraram na região um lugar de abrigo. Naquela época, a elite local não tinha interesse pela praia. Ali estava a Santa Casa, a Cadeia Pública e o antigo Cemitério São Casemiro.
A Praia de Iracema concentrava as habitações até ali. O Moura Brasil, nos arredores do Centro, era um dos mais habitados. Até que alguns fatores mudaram essa realidade.
“A partir da popularização do lazer na praia, e das práticas marítimas modernas, essa área começou a ser valorizada e passou a ser ocupada”, explica Isabella. Foi quando os primeiros clubes foram instalados, como acrescenta Alexandre.
“Nos anos de 1930, todo aquele trecho era uma grande periferia que foi sendo usada para casas de praia, mas clubes – vinculados à elite local –, criaram uma ambiência para um espaço prioritário para a moradia”, detalha.
Naquele período, também era comum os passeios na praia para o tratamento contra doenças respiratórias. Depois disso, se tornou comum construir casas de veraneio, onde as pessoas passavam as férias
Quase como um do “lixo ao luxo”, a faixa de areia branca ganhou interesse. “Com a construção do Porto do Mucuripe e a erosão da Praia de Iracema, essa área já habitada pela elite passou a ser transferida em direção ao leste, no Meireles”, contextualiza Isabella.
Foi naquele momento em que foi levantada uma edificação até pouco tempo ainda possível de ser vista. “Uma das primeiras casas de veraneio foi da família Jereissati, que se tornou o Boteco Praia, destruído para a construção de um residencial", finaliza a geógrafa.
O Imposto Predial de 1922, consultado na pesquisa acadêmica, aponta 11 casas construídas na antiga Rua Beira Mar. A primeira edificação foi nomeada de Vila Morena, onde hoje está o Estoril.
Prédios históricos
Esse movimento se intensificou ao ponto em que, na década de 1950, já existiam 5 edifícios na orla, sendo 3 residenciais e 2 usados tanto para moradia quanto para hotelaria. O Código da Cidade permitia até 3 pavimentos, mas já existiam edificações mais altas.
Num formato semelhante à ponta de uma embarcação, o Iracema Plaza Hotel – hoje conhecido como Edifício São Pedro – recebia moradores e hóspedes, em 1951, com 6 pavimentos.
“A partir de algumas modificações na legislação, e pela influência de outras cidades, como Rio de Janeiro e Recife, Fortaleza passou a se interessar pela verticalização”, analisa Isabella sobre o contexto da cidade entre a década de 1950 e 1960.
O destaque, então, passou a ser no Meireles. Além do Plaza Hotel, prédios de 3 andares também tiveram destaque como o Santa Martha (1955), o Santa Helena (1955), o São Carlos (1954) e o São José (1954).
Clubes Sociais ganharam força no período. O Clube do Náutico, por exemplo, já estava na configuração conhecida dos dias atuais. Já o Vila Morena, que virou um clube de soldados norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial, foi transformado em um bar e restaurante.
Construção da Avenida Beira Mar
Ainda na década de 1950 começaram as obras de saneamento, urbanização, aterramento na costa, ampliação de avenidas e intervenções no conhecido calçadão. Mas foi em 1962 que houve o primeiro investimento público de impacto expressivo na valorização da orla.
O primeiro trecho da Avenida Beira Mar foi construído numa área estratégica, entre a rua Frei Mansueto e o Clube do Náutico. Isso facilitou o acesso aos clubes e beneficiou donos de terras e de hotéis.
A construção da Avenida Beira Mar, em 1963, também resultou no aumento de casas de veraneio e tornou o espaço a principal área de lazer da cidade, com restaurantes, hotéis e edifícios de alto padrão.
A Praia de Iracema passou a receber intelectuais e os boêmios da cidade, além de ser frequentada por muitos jovens. Os edifícios começaram a alcançar até 12 pavimentos. No início da década de 1970, inclusive, o processo de verticalização se expandiu na região.
Com isso, os clubes e casarões começaram a desaparecer para dar lugar aos prédios, cada vez mais altos. Na mesma proporção, os investimentos públicos e privados buscaram ampliar o potencial turístico e imobiliário.
No final daquela década já era possível erguer construções com até 18 pavimentos, numa altura máxima de 72 metros, como acontece atualmente. Porém, há cada vez mais exceções.
O Hotel Esplanada, inaugurado em 1978, foi o primeiro hotel cinco estrelas de Fortaleza e recebeu uma autorização para erguer 18 pavimentos. O limite máximo também foi flexibilizado para a construção do Dom Pedro I, em 1975, com 16 pavimentos, e o Granville, em 1976, com 18 pavimentos.
Os dados da Secretaria Municipal das Finanças de Fortaleza (Sefin), consultados na pesquisa, dão conta de 120 edifícios na orla até o final dos anos de 1970.
Expansão de arranha-céus
Isabella contextualiza que desde os anos 2.000 está mais comum a realização de parcerias público-privadas a partir de instrumentos urbanos, como o Estatuto da Cidade e a legislação local. Entre os anos 2000 e 2010, o número de edifícios chegou a 764.
Nesse sentido, são usados os instrumentos da Operação Urbana Consorciada (OUC) e da Outorga Onerosa de Alteração de Uso do Solo. Entre as possibilidades, flexibilizar a altura máxima dos prédios.
“Nos últimos 15 anos, vem sendo utilizado de forma muito intensa o instrumento da Outorga Onerosa, principalmente, nas ruas de Fortaleza. Isso converge com os interesses locais em transformar essa área numa orla turistificada”, acrescenta a geógrafa.
Um movimento de aquisição de hotéis busca criar novos condomínios na orla onde é preciso ter estratégia para encontrar espaços de construção. Alguns projetos têm previsão de até 170 metros de altura.
A tendência é que a orla se torne dominada por arranha-céus, talvez numa experiência parecida com Balneário Camboriú, onde existem diversos residenciais e só pessoas milionárias conseguem comprar
Alexandre Queiroz explica que o mercado imobiliário interpreta esse movimento como um avanço moderno para gerar emprego, renda e novos ícones arquitetônicos. A gestão municipal, por sua vez, como algo interessante para o fundo urbano.
“Essa é só uma forma de enxergar, mas outra há outras mais críticas: é uma monopolização de um espaço, que tem condições naturais raras do litoral. É um espaço que recebeu muito investimento público e há uma discussão interessante de como essas construções usam isso para se valorizar”, conclui.
Gestão municipal
O Diário do Nordeste buscou a Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma) para entender quais são os critérios para autorização de construção dos prédios superiores à 72 metros de altura.
Conforme a Seuma, a partir de 2015, a Outorga Onerosa de Alteração de Uso (OOAU), instrumento urbanístico previsto no art. 222 da Lei complementar No 62 de 2009 (PDPFOR), foi regulamentada pelas Lei nº 10.335/2015 e Lei nº 10.431/2015..O recurso permite a flexibilização de parâmetros urbanísticos, mas apenas os empreendimentos considerados Projetos Especiais e Empreendimentos Geradores de Impacto (edificações de uso residencial com mais de 10.000m2 de área útil construída) estão aptos a solicitar a flexibilização de parâmetros urbanísticos.
O pedido, explica a Secretaria, é apresentado, avaliado e apreciado pela Comissão Permanente de Avaliação do Plano Diretor (CPPD). Se for aprovado, o proprietário é obrigado a realizar contrapartida financeira, calculada pela Secretaria de Infraestrutura, mediante assinatura de termo de compromisso.
Por sua vez, a Seuma salientou ter havido modificação na OOAU, em 2022.
"Uma atualização na lei da OOAU (Lei Nº 0333 de 14 de setembro de 2022) foi aprovada viabilizando que uma maior diversidade de tipos de empreendimentos consigam acessar o instrumento de dinamização, buscando também desconcentrar os investimentos em outros territórios da cidade, assim com viabilizar atividades de menor porte. Nenhum projeto ainda foi aprovado por meio desta nova legislação, que passou a vigorar a partir de dezembro de 2022".
A Secretaria também foi questionada sobre os números dessas autorizações e como os recursos são usados. A Seuma destaca que nos bairros Mucuripe e Meireles foram aprovados 15 processos de solicitação de OOAU. Todos os valores arrecadados com os processos de OOAU.
Entre 2018 e 2022, de acordo com a Pasta, foram aprovados cerca de R$ 253 milhões apenas pelos processos de OOAU. "As contrapartidas financeiras das outorgas onerosas são depositadas no Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano (Fundurb) e são investidos em melhorias sociais e urbanas tais como obras de infraestrutura urbana de drenagem e pavimentação já realizadas em mais de 96 diferentes bairros da cidade", destaca.
Por fim, a Seuma lembra ainda a implantação de 34 areninhas financiadas com recursos do Fundurb. "Nos próximos dois anos cerca de 640 moradias receberão melhorias habitacionais financiadas também com esses recursos, assim como a reforma de 42 praças nas diferentes regionais", finaliza.