‘Coaches arrependidos’: profissionais desistem de continuar na área e criticam ‘estratégias pesadas’

Profissão ainda não é regulamentada no País e técnicas sem embasamento científico podem ameaçar saúde mental

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
Legenda: Conteúdos motivacionais ganham a internet e levam pessoas para cursos
Foto: Shutterstock

Dar um ponto final nos problemas, obter sucesso e ter uma vida extraordinária. São resultados assim os oferecidos por coaches (prestadores de serviço, geralmente motivacionais, que dão consultorias para alcançar objetivos dos clientes). Mas a realidade, como analisam alunos e profissionais com formação em coaching, insatisfeitos com os métodos, não é bem assim.

A reportagem ouviu pessoas que estudaram para atuar na área - embora a profissão não seja regulamentada - ou buscaram o serviço, mas desistiram. Na visão delas, há ênfase no lado comercial, no estímulo excessivo à produtividade, além de questionamentos sobre a eficácia das técnicas aplicadas e da obrigação de assumir ou recusar ideologias ou crenças pessoais. 

Na semana passada, Diário do Nordeste publicou matéria com denúncia de discriminação política e religiosa envolvendo empresa de coaches de Fortaleza, que treinava profissionais a não contratarem “comunistas, petistas ou pessoas do candomblé”. Enquanto isso, vídeos e cursos de coaching ganham visibilidade, sobretudo nas redes sociais, com técnicas consideradas absurdas. 

‘Por que desisti de ser coach?’

“Na época eu não tinha muita ideia do que era [coach], mas eu aproveitava toda oportunidade de estudar". A afirmação é da Cecília Dassi, de 33 anos, ex-atriz da Rede Globo e atual psicóloga clínica, em entrevista ao Diário do Nordeste, lembrando do encantamento ao entrar na graduação e buscar outras perspectivas de estudo relacionadas ao tema.

Ela recebeu um convite para fazer um curso de professional and self coaching, voltado para assistência de carreira e autoconhecimento. Nesse processo, Cecília disse ter percebido uma visão limitada em relação aos transtornos mentais e sobre a necessidade de tratamentos multidisciplinares na turma de formação de coaches.

"Falta consciência da complexidade dos comportamentos, sentimentos e afetos humanos. Isso me deixou muito incomodada", acrescenta a psicóloga. Esse foi um motivo, junto com a cobrança intensa por resultados, para Cecilia abandonar a área.

A ideia da produtividade a qualquer custo atropela a saúde mental e a sociedade que passa a mensagem 'você só tem valor se estiver produzindo muito' é muito problemática
Cecília Dassi
Psicóloga

A falta de fiscalização contribui para que os coaches não tenham receio de falar ou agir de forma equivocada, como analisa Cecília.

Durante o processo de formação, Cecília teve contato com um curso de coaching voltado apenas para profissionais. "Fiz outra formação que era específica para psicólogos, bem mais legal, nem dá para colocar no mesmo pacote, embora eu tenha posicionamentos críticos", pondera.

Apesar disso, Cecília acredita na busca de mentoria para assuntos como gestão de pessoas e finanças de profissionais sérios.

"Tem pessoas que são mais radicais, mas eu acho que tem coisas que coaches poderiam ajudar nesse lugar da mentoria, que podem compartilhar experiências e dar ideias", completa.

Essa mentoria, todavia, precisa ser feita com profissionais capacitados para o atendimento. "A gente precisa prestar muita atenção nesse senso crítico, alguém que não dê soluções simples, que não prometa mundos e fundos e que vai resolver todos os problemas", conclui.

Em situação semelhante à de Cecília, o psicólogo e doutor em Ciências Médicas, Tauily Taunay, atuou por cinco anos como professor numa empresa de formação de coaches, em Fortaleza. Após uma experiência profissional com dependentes químicos, decidiu se especializar na área do coaching. 

Legenda: Alguns alunos desistem das aulas por entenderem o conteúdo como não adequado
Foto: Shuttestock

Ao notar algumas falhas na abordagem da neurociência de um curso, tendo dialogado com a gestão, foi convidado a dar aulas. Após esse período, decidiu sair do trabalho e realizar uma formação em coaching com turmas compostas apenas por psicólogos, o que foi um “um grande alívio porque vi o coaching sério”, como analisa.

“Me incomodava uma excessiva ênfase no lado comercial em detrimento do aspecto científico, com estratégias de marketing pesadas”, explica sobre os motivos para deixar o trabalho antigo.

Como coaching não tem regulamentação, praticamente qualquer pessoa pode criar uma escola, dizer que promove uma formação e certificar. Então, existe um discurso muito equivocado, como receitas de bolo e sucesso em curto prazo.
Tauily Taunay
Psicólogo e doutor em Ciências Médicas

Existe um cenário de imediatismo, da busca por soluções rápidas para problemas complexos, como analisa Tauily. “Viu-se que havia um mercado, se prometem algo grandioso para ser resolvido de forma fácil, as pessoas acabam comprando”, completa.

No novo exercício profissional, dando aulas online de forma independente para coaches, o debate gira em torno de dar foco para as necessidades do cliente. “Quem guia o processo é o cliente por meio de perguntas, são metas esclarecidas assim, o plano de ação quem cria é o cliente. É um processo colaborativo e sistemático, que auxilia a pessoa a realizar um objetivo no médio prazo”.

Frustração com o método

A reportagem ouviu duas pessoas que compraram cursos e livros de uma empresa de coaches de Fortaleza. Ambas optaram por não se identificar com receio de ter algum prejuízo por opinarem sobre os métodos.

Em busca de ter mais produtividade, uma empresária comprou um curso, em 2018, após a indicação de uma pessoa conhecida. A visão dela é que as pessoas de lá querem “passar por cima de qualquer coisa a qualquer custo”.

"Eles vendem uma ideia de empresa ideal que não existe na vida real. Tem gente que acaba dando o que não tem, achando que vai conseguir enricar sem precisar trabalhar… Só gritando ‘yes yes e yes’", acrescenta sobre uma das técnicas de motivação.

Legenda: Alunos investem em cursos e livros na área do coaching
Foto: Shutterstock

Numa das palestras, ela ouviu o depoimento de uma outra empresária, que foi compartilhar a experiência como modelo para os estudantes. “Ela disse que só teria sossego quando ‘quebrasse’ o vizinho da loja dela para conseguir o ponto comercial dele”, lembra.

Isso fez com que ela desistisse do curso mesmo após pagar em torno de R$ 5 mil na matrícula e de R$ 80 a R$ 150 reais em livro. Após a experiência negativa, a empresária procurou uma consultoria de organização financeira e empresarial.

Já a outra fonte ouvida pela reportagem conta que desistiu da formação em 2020, mesmo após ter pago quase R$ 3 mil, por causa do posicionamento político da principal liderança da empresa.

Veja também

"Começou a falar mal do comunismo e a falar bem do governo Bolsonaro, numa época em que estava todo mundo revoltado com as declarações dele e com a falta da vacina", lembra o fotógrafo.

Ele pondera que existem professores profissionais que o ajudaram a montar o próprio negócio, mas ainda assim considera a experiência como negativa. "Davam muita ênfase à riqueza, eu queria saber os macetes de como se dar bem na vida, mas quando começaram a defender o indefensável, eu fiquei enojado", completa.

Eu preferi deixar para lá e até hoje me arrependo porque gastei um dinheiro que não precisava, era para eu ter ido atrás do conteúdo das pessoas que se destacaram
Estudante não identificado

O fotógrafo entrou em outras formações, inclusive algumas gratuitas na Rede Cuca, e encontrou novos caminhos para a carreira.

“Foi esse curso que me motivou a voltar a fotografar. Então, ao invés de fazer transição de carreira, eu me aprimorei no que já fazia e montei um estúdio com minha esposa. A partir daí, e de várias outras estratégias como network e pesquisa, comecei a engrenar na área”.

Coaching

Também ouvida pelo Diário do Nordeste, a psicóloga clínica Cecília Alves, especialista em Neuropsicologia e mestre em Psicologia, explica que o coaching é uma atividade dentro do campo da Psicologia Organizacional e pode ser aplicada por profissionais capacitados, mas há uma “apropriação dessa prática por pessoas que não possuem preparo para lidar com o emocional do cliente”, como observa.

O que vemos são pseudocientistas se apropriando de um lugar de saber, utilizando teorias vazias e duvidosas como ‘energia feminina/masculina’, técnicas de hipnose e gatilhos mentais para gerar um impacto emocional nas pessoas e assim reforçarem uma imagem de ‘autoridade intelectual’ naquele campo
Cecília Alves
Psicóloga clínica

Isso pode, inclusive, ter um efeito contrário ao que o cliente procura. “O resultado que temos visto na clínica são pessoas extremamente fragilizadas por ouvirem que seus resultados não são estratosféricos por não se esforçarem o suficiente”, conclui Cecília Alves.

Para convencer as pessoas a comprarem os cursos, existem estratégias com discursos esperançosos, alguns elementos de ciência e muitas técnicas de marketing, como acrescenta Tauily Taunay.

“Tem um curso de fim de semana, muito conhecido em Fortaleza, que o pessoal fica até de madrugada e, no auge do cansaço e da exaustão, histórias dramáticas são colocadas, com histórico de superação, é vendido um curso caro prometendo alcançar os mesmos resultados”, contextualiza.

Contexto social

As mudanças sociais e no mercado de trabalho são constantes. Para definir esse contexto, existem 4 tópicos principais: Volatilidade, Incerteza, Complexidade e Ambiguidade, como explica a mentora de carreira Ana Cristina Barros, professora do Curso de Administração da Universidade Federal do Ceará (UFC), doutoranda em administração.

“Para que os profissionais possam estar adaptados a esse contexto, diversas competências e habilidades precisam ser desenvolvidas e, portanto, ter um novo direcionamento de carreira”, completa Ana Cristina.

Nesse sentido a atuação dos coaches tem um impacto significativo no mundo do trabalho, especialmente por ajudar indivíduos a alcançar metas, desenvolver habilidades e superar desafios pessoais e profissionais. 
Ana Cristina Barros
Doutoranda em administração

Nessa realidade, existe uma pressão para desenvolvimento profissional em diversos segmentos de atuação. Por isso, surgem coaches dos mais variados setores.

“É fundamental escolher um coach com formação e credenciais reconhecidas para garantir uma experiência profissional e ética. Além disso, é importante lembrar que o coaching não é uma solução para todos os problemas e que problemas de saúde mental devem ser tratados por profissionais especializados, como psicólogos ou psiquiatras”, conclui.

Vida de coach, profissão não regulamentada

“Coach”, do inglês, significa treinador. Ou seja, é uma pessoa que guia alguém para ter uma melhor performance na vida profissional ou pessoal. Conforme a Federação Internacional de Coaching (ICF na sigla em inglês), “os coaches apoiam o seu cliente na busca do seu resultado desejado em diversas áreas da sua vida, acelerando o seu progresso com o auxílio de um foco mais claro e preciso, acreditando no potencial inerente de cada um”.

Existem diversos serviços de coaches em Fortaleza, bem como em outras cidades brasileiras, e os cursos podem ser comprados por cerca de R$ 3 mil em algumas unidades. Para se tornar um coach, no entanto, não é exigida nenhuma formação específica.

Hoje, é comum ver coaches que dão assistência em áreas como carreira, finanças, relacionamentos e emocional, por exemplo. Contudo, a profissão não é regulamentada no País. O projeto de lei (PL) 3550/2019, que busca o reconhecimento da atuação, ainda é analisado na Comissão de Trabalho da Câmara dos Deputados.

Legenda: Profissionais comprometidos ajudam clientes a alcançar objetivos
Foto: Shutterstock

Uma Sugestão Legislativa (SUG), elaborada e enviada para os senadores por iniciativa popular e aprovada por mais de 24 mil pessoas por meio virtual, pediu a criminalização dessa atividade em 2019.

A ideia era que, caso fosse lei, não permitir "o charlatanismo de muitos autointitulados formados sem diploma válido. Não permitindo propagandas enganosas como: "Reprogramação do DNA" e "Cura Quântica". Desrespeitando o trabalho científico e metódico de terapeutas e outros profissionais das mais variadas áreas".

Contudo, a Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal debateu e decidiu não transformar a sugestão em projeto de lei.

A reportagem procurou organizações ou instituições representantes de coaches no Ceará, para discutir a atividade da classe, mas não identificou nenhuma entidade com esse tipo de atuação.

Newsletter

Escolha suas newsletters favoritas e mantenha-se informado
Este conteúdo é útil para você?
Assuntos Relacionados