Cearenses lembram chegada da Covid e celebram fim da emergência: 'contar minha história é agradecer'

Apesar do avanço, com o rebaixamento do nível de alerta, a pandemia não acabou. O mundo precisa seguir com medidas de prevenção

Escrito por Lucas Falconery, Gabriela Custódio e Thatiany Nascimento , ceara@svm.com.br
Luís Alberto Rodrigues
Legenda: Hoje curado, Luís Alberto Rodrigues, de 68 anos, conta que até uma arrecadação de dinheiro foi feita para custear os medicamentos necessários para a recuperação
Foto: Fabiane de Paula

A vida deixou de ser a mesma para os cearenses no dia 15 de março de 2020. Com a confirmação da presença do novo coronavírus no Ceará, veio a exaustão de profissionais da saúde para salvar vidas sufocadas pela doença então desconhecida e o medo compartilhado pela população isolada. Agora, 1.146 dias depois, vem um novo marco histórico, desta vez positivo: o fim da emergência de saúde pública da Covid-19.

Na sexta-feira (5), a Organização Mundial da Saúde (OMS) rebaixou o nível de alerta da pandemia, que deixou de ser de Importância Internacional. Isso, contudo, não significa que ela deixou de existir.

Sobre esse tempo, em que 28.178 cearenses perderam a vida por causa da doença, além dos mais de um milhão de infectados no Estado, o Diário do Nordeste conversou com pessoas que, além de rememorarem as agonias e as dúvidas da pandemia, também ressaltam o que esse "passar do tempo" representa para a saúde e para a "normalização" da rotina. 

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A mudança de status representa um nível menor de preocupação, mas não o fim desse longo e complexo processo. Na prática, isso muda a logística de enfrentamento da doença pelos governos. Quando se decreta emergência de saúde pública, as regras para aquisição de equipamentos e contratação de profissionais são facilitadas pelo contexto.

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“A gente foi se habituando àquela rotina muito rodeada de tristezas, porque viu os nossos pacientes falecerem; mas muitas alegrias, com as altas que a gente conseguiu dar. Trajetórias muito sofridas dentro das UTIs, mas que conseguiram ter um final feliz”, relembrou em entrevista Francisco José Cândido, infectologista do Hospital São José (HSJ), que esteve na linha de frente dos atendimentos na época.

Já na linha de frente da gestão, como secretária executiva de Vigilância e Regulação da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) no período, Magda Almeida, médica e professora do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC), também guarda as memórias e explica o que o anúncio da OMS significa hoje: 

“Sinaliza que não é mais um nível de preocupação tão grande, por conta principalmente da vacinação. As restrições ao redor do mundo vão poder ser mais flexibilizadas, partindo do pressuposto de que muitas pessoas já estão vacinadas”
Magda Almeida
médica e secretária executiva de Vigilância e Regulação da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) no início da pandemia

Memória da pandemia

No Ceará, os primeiros casos foram registrados dois meses após o anúncio da OMS sobre o início da pandemia, em janeiro de 2020. Naquele momento, as unidades de saúde passaram a receber uma grande demanda de pacientes em pouco tempo. O que fazer?

Não havia protocolos, medicamentos, equipamentos nem profissionais suficientes. Por isso, os gestores de saúde no Estado formaram uma força-tarefa em busca de informações e estratégias para enfrentamento da doença.

Para não precisar das unidades lotadas, a alternativa foi o isolamento do trabalho, da escola, da família e dos amores. Constantes lavagens das mãos e até dos alimentos. Máscaras e potes de álcool em gel. Visitas apenas de longe, das varandas ou do portão.

Ainda assim, a doença conseguiu se espalhar. Um teste positivo vinha com a aflição natural de quem via a contagem de mortos crescer. Angústia.

“O início da pandemia foi rodeado de medo e anseios, porque a gente não sabia o que estava acontecendo e o que a gente iria enfrentar”, resume Francisco José Cândido, infectologista do HSJ.

Francisco José Cândido
Legenda: Francisco José Cândido, infectologista do Hospital São José recebendo a primeira dose da vacina
Foto: Arquivo pessoal

Os profissionais da saúde assistiram à movimentação mundial, aos primeiros casos no Brasil e à chegada dos primeiros pacientes aos hospitais. “Veio o medo de ter o primeiro atendimento, de pegar a doença e de receber os pacientes internados. Esse medo se tornou realidade”, conta.

“Foi aquela escala: um, dois, quatro, seis, 10 casos e o hospital adoecendo, até o momento que era a unidade de Covid com pacientes muitos graves e rodeado desses medos do manejo da doença”, acrescenta Francisco.

Situação dos pacientes

Lembrar da vida há exatos 3 anos, em maio de 2020, é algo que o aposentado Luís Alberto Rodrigues, de 68 anos, evita. Os médicos chegaram a dizer que o idoso não teria mais muito tempo de vida após um período no hospital por causa da Covid.

“Eu, por duas vezes, fui desenganado pelos médicos. Ligaram para minha filha dizendo que eu tinha poucas horas de vida” 
Luís Alberto Rodrigues
Paciente de 68 anos que ficou 32 dias internado devido à Covid

Hoje, no entanto, Luís fala sobre o presente e sobre o cuidado que recebeu. “Passar por tudo que eu passei e contar a minha história é de agradecer a Deus, meus familiares e amigos. Tive muito apoio”, compartilha com felicidade. Foram 8 meses de fisioterapia, e o pulmão ainda exige cuidados básicos pelas sequelas.

“Eu tive a infelicidade de pegar logo no começo, quando ninguém conhecia a doença. Fiquei entubado durante 10 dias e, ao todo, foram 32 dias de sofrimento. Fiquei com fraqueza, não andava, não falava, e não tinha tato nas mãos”, detalha Luís.

A intensidade com que a doença atingia os pacientes, pela forma mais agressiva do coronavírus e a ausência de vacinas, comprometia diversos órgãos. Quem precisava de internamento também sofria pelo isolamento necessário para conter as contaminações.

“A gente só pensava o pior, ficava à mercê dos médicos e enfermeiros, não tinha apoio da família porque era proibido”, resgata da memória. Mas do lado de fora, como acontecia entre várias famílias, as orações, campanhas e torcida eram formadas.

No caso de Luís Alberto, até uma arrecadação de dinheiro foi feita para custear os medicamentos necessários para a recuperação. A saída do hospital foi comemorada numa cena de esperança que se tornou conhecida: aplausos dos profissionais da saúde e sinos.

Apesar disso, Luís comemora a vida ao lado da família. “Somos gratos porque hoje o tratamento das pessoas que se contaminam é mais fácil por conta do avanço da Medicina”, observa.

A orientação de manter os cuidados, alerta feito por autoridades internacionais, também aparece na fala de quem vivenciou o momento mais difícil. “Peço para que as pessoas continuem se cuidando e evitem se contaminar e contaminar outras pessoas. Fazer a nossa parte”, conclui.

Fim da emergência de saúde da Covid-19

“A gente pode comprar equipamentos com dispensa de licitação, contratar mais profissionais. Então, algumas coisas cujo processo é mais demorado, normalmente, quando existe um problema de saúde pública ou principalmente uma emergência, acaba sendo facilitado”, explicou, em entrevista ao Diário do Nordeste, Magda Almeida, médica que atuou como secretária executiva da Sesa durante parte da pandemia.

O rebaixamento, porém, pode ser revisto pela OMS conforme o avanço da pandemia. Caso os números voltem a subir, o alerta pode ser feito mais uma vez.

pandemia covid
Foto: Thiago Gadelha

“O fato é que agora a Covid é uma doença imunoprevenível, a gente já conhece mais do seu mecanismo, então a gente pode meio que flexibilizar algumas regras que tinha, algumas restrições, e continuar com os cuidados normalmente das doenças respiratórias, infectocontagiosos”, completa Magda.

O anúncio da OMS chegou no momento em que o Ceará acumula 1,4 milhão de casos da doença. Graças ao efeito da vacinação e ao conjunto de ações de prevenção, o registro de ocorrências decaiu em 2022 se comparado a 2021. Em 2023, o Estado somou até o momento 15 mil casos. 

Estratégia de saúde

Magda Almeida define a situação como desafiadora. A pandemia foi enfrentada com apoio de professores e pesquisadores para ter acesso às informações em tempo real e em contato com especialistas de outros lugares do País.

“Acabou que projetos que a nossa previsão era executar em quatro anos, a gente acabou tendo que executar em menos de um ano, como a questão das UTIs”, explica sobre o planejamento para modernizar a rede de saúde do Estado.

“O Ceará teve uma boa parceria do sistema público com o setor privado, ajudou muito em relação ao monitoramento, à vigilância, até porque quando a Covid chegou ao Ceará, ela deu entrada pelo sistema privado”
Magda Almeida

Antes da confirmação oficial, alguns treinamentos foram realizados com os profissionais para a realização de testes RT-PCR, além da aquisição de equipamentos para biologia molecular e vigilância genômica do vírus.

“A gente tentou fazer essa rede de informação com vigilância, juntando regulação, monitorando as internações, fazendo classificação de risco”, contextualiza Magda.

Além disso, as unidades de saúde distribuídas pelo Estado contribuíram para evitar deslocamentos de pacientes. “O fato da gente ter regionalização, ter hospitais regionais nas cinco regiões, facilitou muito, que aí os pacientes não precisavam vir para Fortaleza”.

Luta dos profissionais da saúde

O enfermeiro Helber Oliveira assistia incrédulo às primeiras informações sobre a pandemia na TV. Logo, aquelas cenas se apresentariam na realidade do cotidiano de trabalho, no Hospital do Coração de Messejana e no Hospital Geral de Fortaleza.

“Lembro de toda a equipe receosa para o primeiro plantão com pacientes positivos para Covid, a paramentação, o medo de voltar pra casa e levar o vírus com a gente. O medo tomava conta e era diferente em todo plantão”, analisa.

Por vezes, as mortes nas unidades faziam o trabalho da equipe parecer em vão. “Sentíamos ainda mais vulneráveis, cuidando de vidas, mas sabendo que a qualquer momento podia ser um de nós ali, entubado. Foi a experiência profissional mais complexa”.

pandemia covid
Legenda: O enfermeiro Helber Oliveira atuou desde o inicio da pandemia
Foto: Arquivo pessoal

Também foi necessário se afastar por oito meses dos avós - a saudade era ‘contida’ apenas pelas videochamadas. Com o rebaixamento do nível de alerta, a felicidade pelo controle da doença por meio das vacinas se amplia.

“Hoje, a palavra é gratidão. Sou eternamente grato a Deus, à ciência e à tecnologia”, completa o enfermeiro.

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