Bombardeio de nuvens: saiba como aviões foram usados por quase 30 anos para ‘fazer chover’ no Ceará

Estado teve até 4 aeronaves usadas nos municípios para tentar diminuir os efeitos da seca, mas programa foi encerrado no fim da década de 1990

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
Legenda: Iniciativa foi criada para contribuir com os agricultores e para a produção de pesquisas
Foto: TV Verdes Mares/Reprodução

Diante da dor causada pelo histórico de secas, uma missão ambiciosa empolgou meteorologistas e a população com a possibilidade criada pela nucleação artificial de nuvens, uma técnica para "fazer chover", em 1972. Com esse objetivo, naquele ano, surgiu a Fundação Cearense de Meteorologia e Chuvas Artificiais – a atual Funceme.

A tecnologia chamada de bombardeamento, pulverização e até de semeadura de nuvens começou a ser estudada na Universidade Federal do Ceará (UFC), no período, até ser implementada pela Fundação por quase 30 anos. As aeronaves percorriam todo o Estado.

Funcionava assim: os aviões espalhavam substâncias como cloreto de sódio (sal de cozinha) ou iodeto de prata para fazer com que as gotículas dentro das nuvens chegassem ao estado ideal para formar as chuvas.

Nos anos entre a década de 1980 e 1990, eram feitos 20 voos, cada um com cerca de 800 litros de solução em 2 tanques. Os custos disso estavam em torno de 350 cruzados novos, como registram reportagens veiculadas pela TV Verdes Mares, encontradas em pesquisa do Centro de Documentação do Sistema Verdes Mares (Cedoc).

Na época, representantes da Funceme informaram que as aeronaves eram usadas em todos os pontos onde era possível aplicar a nucleação, mas relataram dificuldades para encontrar as condições mínimas. Foram construídas bases para os aviões da Funceme em Juazeiro do Norte e em Crateús.

O esforço era para ajudar os agricultores no planejamento das plantações e para realizar estudos meteorológicos já que os aviões eram adaptados com equipamentos para captação de indicadores. Uma parceria foi articulada com a Nasa (Administração Nacional do Espaço e da Aeronáutica), dos Estados Unidos, para pesquisa nas áreas de queimadas da Amazônia.

Meiry Sakamoto, gerente de meteorologia da Funceme, explica que as nuvens são formadas por gotículas reunidas em torno de um pequeno núcleo, como acontece com a formação de uma pérola dentro da ostra.

“A ideia de fazer uma nucleação é introduzir, em nuvens existentes, mais núcleos higroscópicos (que absorvem umidade) para forçar a nuvem a se desenvolver mais e mais rapidamente”, detalha sobre o que acontece depois que o avião dispersa o líquido sobre a nuvem.

A gerente explica que as nuvens do tipo cumulonimbus a nimbostratus são as principais responsáveis pelas formações de chuvas. Por isso, os meteorologistas precisavam monitorar a formação dessas nuvens para que a técnica fosse aplicada.

“Chegamos a ter uma base no Aeroporto de Jaguaribe por causa dos aviões, fazendo voos para o Ceará inteiro. Eu fiz um desses voos, quando o pessoal estava bem entusiasmado, mas com a evolução do conhecimento a gente acabou por excluir”, pondera.

A Funceme foi criada com esse propósito e, no auge, chegamos a ter 4 aviões pequenos, mas imagine o custo disso, dos pilotos, da equipe de manutenção e equipamentos…
Meiry Sakamoto
Gerente de meteorologia da Funceme

Helder Cortez, primeiro operador da Estação de Tratamento de Água (ETA) Gavião e assessor da presidência da Companhia de Água e Esgoto do Ceará, lembra do momento em que 250 horas de voos foram contratadas para Fortaleza, durante a seca de 1983.

“Naquele momento, a responsabilidade sobre os mananciais da falta de água em Fortaleza era nossa. Nós contratamos o serviço de nucleação artificial para aumentar o volume de chuvas armazenada só para a capital e no interior tivemos outras ações”, contextualiza.

A aeronave usada era pequena e não tinha cadeiras, porque o espaço era usado para colocar um vasilhame com capacidade de 500 a 1.000 litros de água com sal e uma bomba para fazer a pulverização.

Legenda: Aeronaves eram usadas em todo o Estado para fazer chover
Foto: TV Verdes Mares/Reprodução

“O avião saia fazendo um zigue-zague para tentar distribuir igualmente dentro das nuvens e eu ajudei a fiscalizar as horas de voo”, detalha Helder. Os resultados? Não houve alteração na dinâmica da chuva naquele período e, por isso, as horas de voo não chegaram a serem concluídas. 

“O programa foi encerrado pelos custos envolvidos e começou-se a verificar que não era tão efetivo isso. Se fosse a solução teria seca em algum lugar? Na prática é complicado comprovar que essa nucleação foi o que causou chuva”, reflete Meiry Sakamoto.

Apesar disso, alguns moradores com mais idade ainda questionam à Funceme sobre o uso da nucleação em momentos de seca. “Sempre que acontece uma seca, como a dos anos de 2012 a 2016, os mais antigos que sabem que a Funceme fazia isso cobram da gente: ‘por que não voltam com programa de fazer chover?’”, compartilha Meiry.

Parcerias com outros estados

O Ceará foi pioneiro no uso da nucleação artificial no País e contribuiu com ações levadas para outros lugares, como Espírito Santo e a Bahia.

“Fomos convidados por outros estados para fazer chover, mas nem era o propósito de combater a seca era para apagar incêndios. Chegamos a participar de missões desse tipo também”, frisa Meiry Sakamoto.

Em setembro de 1987, a Funceme foi acionada pelo Distrito Federal que enfrentava uma seca intensa, na qual as barragens que abasteciam Brasília e as cidades satélites estavam com pouca água, fazendo com que houvesse um racionamento da água. Além disso, a umidade relativa do ar ficava até 30% e eram registrados incêndios no cerrado.

Foto: Diário do Nordeste

O governador da época, José Aparecido, pediu apoio do governo do Ceará e foi enviado um técnico da Funceme que chegou a uma conclusão: "se depender dos meios artificiais, Brasília vai permanecer sem chuva", como registra reportagem veiculada no Diário do Nordeste. Como não havia a formação de nuvens, não foi possível aplicar a técnica.

Existe impacto ambiental?

A nucleação artificial é usada em vários lugares do mundo e, em Israel, um grupo de pesquisadores avaliou o uso da técnica no período de 50 anos e chegaram a um resultado inconclusivo sobre a eficácia, como explica Meiry Sakamoto.

“Aqui no Brasil um professor da USP também fez algumas verificações, porque São Paulo também contratou uma empresa”, completa. A nucleação, inclusive, foi usada em 2014 no Sistema Cantareira.

Existe um debate ambiental e social sobre o uso do bombardeamento de nuvens, porque apenas governos e pessoas com muitos recursos financeiros conseguem aplicar a técnica.  “Se você tem uma fazenda e tem acesso e eu não tenho? É uma modificação natural da natureza, mas tem impactos”, reflete a coordenadora.

Legenda: Uso da técnica foi descontinuado devido à falta de eficácia comprovada
Foto: TV Verdes Mares/Reprodução

Além de combater os efeitos da seca e de incêndios, a nucleação também já foi usada para controlar as chuvas em plantações.

“Em Santa Catarina, em plantações de maçã, eles faziam a própria nucleação e usavam foguetes nas nuvens, onde explodiam e espalhavam os núcleos. A ideia era introduzir mais núcleos em nuvens nas quais potencialmente choveria granizo e acelerar os processos para chover água líquida”, detalha.

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