Após retirada violenta, moradores voltam a ocupar terreno onde vendedora foi morta em Fortaleza

Grupo pretende construir casas a partir de divisão do terreno no Carlito Pamplona

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
Duas mulheres de costas caminhando na ocupação
Legenda: Moradores retornaram ao terreno e voltaram a planejar a construção de casas
Foto: Thiago Gadelha

Estacas e lonas são reposicionadas para refazer os barracos da ocupação “Deus é Amor”, no Carlito Pamplona, em Fortaleza, com o retorno de famílias em situação de rua ou sem condições de pagar por aluguel, desde a manhã desta quarta-feira (11). Mesmo com medo de uma nova ação violenta, a população voltou a ocupar o terreno e permanece no local, com 33,5 mil m².

Ainda não há uma estimativa final de quantos estão no lugar, mas instituições como a Defensoria Pública do Ceará e o Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Frei Tito de Alencar (EFTA), vinculado à Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), em levantamentos prévios, estimam 500 famílias no local. Na madrugada de segunda para terça-feira (10), conforme relatos, homens encapuzados retiraram as famílias numa ação que acabou com a morte de uma mulher de 28 anos.

A revolta por esse resultado extremo da violência e a incerteza sobre a moradia são parte do cenário da ocupação por onde circulam gestantes, mães solo, bebês, idosos e pessoas que denunciam terem sido feridas por bala de borracha durante a desocupação. A maioria das pessoas ouvidas pela reportagem relata não ter como pagar por aluguel devido à situação de vulnerabilidade social.

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"Quem está aqui é o preto e favelado que não tem voz – ou só tem de dois em dois anos, para votar", avalia Rafael Pequiar, líder comunitário, e uma das pessoas em busca de construir uma moradia no terreno.

A gente vai voltar, isso é um fato, nem que seja debaixo de tiro, porque a comunidade é símbolo de resistência
Rafael Pequiar
Líder comunitário

Os moradores relatam que o espaço está “abandonado há mais de 30 anos”, servindo apenas para a proliferação de doenças e de animais. Por isso, há pouco mais de duas semanas, um grupo derrubou o muro e começou a dividir os espaços onde pretendem construir as casas.

"Estava tudo sendo organizado pela ONG Caminhando Nas Mãos Certas, em torno de 600 pessoas, só que a gente tem muito mais do que isso. A gente tava organizando o terreno pra de uma forma justa dar um pedaço pra cada pessoa", detalha.

Rafael desconhece quais são as medidas do Poder Público para as famílias da ocupação. "O povo tem direito à moradia própria, assistência familiar, ao saneamento básico, à educação, e a gente vai lutar por Justiça", aponta.

Legenda: Terreno tem mais de 30 mil metros quadrados, conforme a Defensoria Pública
Foto: Google/Reprodução

Graciane Vieira, de 31 anos, está entre as pessoas retiradas durante a madrugada, mas que voltaram no início desta quarta-feira ao terreno. "Estamos voltando agora porque está todo mundo com medo ainda, medo de eles voltarem com mais gente", reflete.

Mãe de três crianças, sendo uma autista, a mulher compartilha a dificuldade de conseguir um trabalho e, por consequência, de arcar com as despesas. "A gente paga hoje e quando vê já está no dia do aluguel de novo. A gente tira da boca das crianças para poder pagar porque se não (a saída) é morar no meio da rua", completa.

A filha dormia na rede e ela no chão quando acordou com a pequena, de 11 anos, dizendo “mamãe, tão vindo umas lanternas lá pelas bandas do Carandiru (comunidade)”. “A gente ficou olhando, quando bem uns sete encapuzados com camisa preta, calça comprida e bota falaram 'bora, saí fora, senão o trator vai passar por cima'", lembra.

Legenda: Ocupantes voltam para o terreno de onde foram expulsos
Foto: Thiago Gadelha

Em meio aos membros da ocupação confusos sobre o futuro, Brena Kecia, de 28 anos, guarda ainda mais dúvidas. No sétimo mês de gestação, a mulher se diz “aterrorizada” com o desfecho da ocupação.

"Na hora que eles chegaram eu não tava no local, porque eu moro de aluguel, mas está atrasado. Por isso a gente tá aqui, estamos prestes a ser colocados pra fora", descreve sobre o contexto no qual vive com a outra filha de sete anos.

A gestante chegou no local às 4h, quando encontrou diversos pontos de fogo e barulhos de tiros – um deles que causou a morte de Mayane Reis. "Poderia ter sido em mim, porque eu estava perto dela quando foi baleada. É uma situação muito complicada", resume.

"Eles chegaram e começaram a derrubar os barracos com uma retroescavadeira, no outro lado tinha um pessoal dormindo e eles chegaram tacando a mão na cara, chamando de vagabundo e mandando sair do terreno", lembra.

Apesar disso, os planos são reconstruir o barraco e participar da divisão do terreno para ter uma casa própria. "Há mais de 20 anos não é feito nada nesse terreno que acumula lixo, insetos, tudo que não presta, e a gente está tentando ganhar um espaço. A gente tá com medo de ficar aqui e eles voltarem e, por enquanto, estamos numa casa de aluguel, mas depois a gente volta pra cá", conclui.

O Diário do Nordeste questionou à Fiotex, proprietária do terreno, sobre o retorno das pessoas para o local: o que a empresa pretende fazer e se há alguma ação em curso. Em resposta, a empresa disse, nesta quarta-feira (11), por meio de nota, que "invadir imóvel de propriedade particular é crime previsto no artigo 161 do Código Penal Brasileiro. A pena é de 1 a 6 meses de prisão e multa".

Legenda: Barracos são reconstruídos no terreno do Carlito Pamplona
Foto: Thiago Gadelha

Anteriormente, a empresa havia informado sobre a abertura de um boletim de ocorrência no 34º Distrito Policial por uma demarcação irregular. "Na madrugada desta terça-feira (10), a empresa adotou as medidas para cessar a demarcação ilegal. Não havia moradores no terreno. A ação foi testemunhada por policiais militares e ocorreu de forma pacífica por quase duas horas", detalhou em nota enviada na terça-feira (10).

"A equipe foi surpreendida por agressores vindos de fora do terreno, arremessando pedras, ateando fogo e realizando disparos contra todos que se encontravam no local e seus arredores", completou.

Acompanhamento do Poder Público 

A titular da Secretaria dos Direitos Humanos do Ceará (Sedih), Socorro França, destacou, em entrevista ao Diário do Nordeste, que a oferta de políticas em múltiplas áreas de atuação será necessária para assistir as famílias da ocupação “Deus é Amor”.

“Estamos agindo pra fortalecer a comunidade, fazendo o levantamento socioeconômico das famílias, identificando as demandas sociais, psicológicas e jurídicas pra encaminhamento dessas pessoas pras diversas políticas que o Estado tem, na assistência social, saúde, previdência entre outros”, informa.

Legenda: Reportagem presenciou a reconstrução dos barracos na ocupação
Foto: Thiago Gadelha

Em resposta à reportagem, a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) de Fortaleza informou que as famílias afetadas pela desocupação “receberão, de forma prioritária, atendimento socioassistencial na sede do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) Jacarecanga, equipamento que atende o território.”

Embora o Carlito Pamplona seja numa área um pouco distante do Pirambu, quando questionada sobre o local, a Prefeitura informou que o Pirambu é uma das áreas prioritárias das ações de política habitacional de interesse social realizadas pela Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor).

“Nesta área, cerca de 1.700 famílias foram beneficiadas com as ações de melhorias habitacionais, que incluem a execução de infraestrutura domiciliar, principalmente com a recuperação ou construção de banheiros, proporcionando mais salubridade e dignidade para as famílias”, completou. Ainda conforme a SDHDS, cerca de 7 mil famílias foram beneficiadas com o papel da casa.

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