Viscerais, contos de 'Rinha de galos' exploram as profundas camadas da brutalidade humana

De autoria da equatoriana María Fernanda Ampuero, livro faz das violências interditas do cotidiano um poderoso substrato para a reflexão de realidades

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: A escritora equatoriana María Fernanda Ampuero: literatura numa íntima relação com a beleza e a violência
Foto: Divulgação

“As pessoas não são capazes de ver a si mesmas e esse é o princípio de todos os horrores”. Não vale apenas sublinhar esta frase em “Rinha de galos” – primeiro livro de contos da escritora equatoriana María Fernanda Ampuero, publicado no Brasil pela editora Moinhos. Também é importante considerar que a sentença parece emoldurar eficazmente a medula da obra, captando o espírito brutal das histórias reunidas no volume.

No total de treze, elas penetram no mais profundo da humanidade ao evidenciar os estilhaços emocionais dos quais somos feitos e por muitas vezes submetidos sem pedido de licença. Esse componente desalmado e inclemente atravessa desde a capa do exemplar até às epígrafes, passando pelos curtos títulos de cada narrativa e o tom rubro do design editorial. Tudo orquestrado numa fina sinfonia, de modo a validar que o mundo, antes de ser assombroso lá fora, é primeiro chocante nas estruturas internas.

Nesse sentido, ter o conto “Leilão” abrindo a coletânea é primordial, uma vez que ele não apenas ambienta o tom da escrita de Ampuero, como também apresenta as bases propostas pela autora ao mergulhar tão fundo no animalesco que nos rege. 

Legenda: Dentre os tantos êxitos de María Fernanda Ampuero no livro, o de compatibilizar nas quatro paredes de um recinto realidades inteiras de um Equador em desbalanço, talvez seja o maior
Foto: Divulgação

Na história – um angustiante relato sobre a vulnerabilidade dos corpos – passado e presente dialogam ao trazer uma protagonista numa situação-limite enquanto recorda o fato de que, quando criança, o pai criava galos de briga e, sem ter alguém com quem deixá-la, a levava para as rinhas.

“No caminho, algum criador de galo sempre me dava uma bala ou uma moeda para que eu o deixasse me tocar ou beijar, ou que eu o tocasse e beijasse. Eu tinha medo de que, se dissesse isso ao meu pai, ele voltasse a me chamar de mulherzinha”, ela confidencia. O pavor, logo ficamos sabendo, torna-se força motriz para que ela busque as próprias armas contra a crueldade dos homens, num labirinto de sentimentos em que o sujo da existência se sobressai.

Fraturas íntimas e sociais

Entre temores e angústias, o universo dessa primeira mulher da obra percorre o fio das demais narrativas, cuja ênfase recai sobretudo em uma investigação a respeito dos corpos e condições de outras mulheres

Feito no conto subquente, “Monstros”, sobre duas irmãs acorrentadas pela ausência dos pais e pela presença de uma doméstica que lhes diz a todo momento o quanto é preciso ter mais medo dos vivos do que dos mortos.

Imersas nesse torvelinho, os filmes de terror que as meninas assistem são mais uma ponte possível para o entendimento de que, longe de qualquer susto dos vampiros, zumbis e possessões demoníacas das películas, nada mais parece ser mais perigoso que a própria vida. A frase que escutam quando menstruam pela primeira vez, por sinal, sintetiza de um fôlego só essa perspectiva: “Agora vocês são mulheres. A vida não é mais uma brincadeira”.

Dentre os tantos êxitos de María Fernanda Ampuero no livro – a linguagem precisa, o exímio desenho da estrutura narrativa, a capacidade de alocar o público para dentro das emoções das personagens – talvez este seja o maior: compatibilizar nas quatro paredes de um recinto realidades inteiras de um Equador em desbalanço, numa América Latina igualmente trôpega.

Para isso, ela se vale de diálogos com ditames religiosos, num interessante compilado de referências – ampliado por uma sequência de três contos, “Cristo”, “Paixão” e “Luto”; a dor da solidão, como em “Persianas”; e a intransigência do olhar social, expressa em “Coro”

Também encontra, numa tessitura mais poética e metafórica, como em “Cloro”, um modo de igualmente descortinar violências, trazendo para o centro da narrativa uma mulher e três homens ao redor de uma piscina – receptáculo de lodos e dejetos, bem como uma estrutura-gatilho para o disparo de pensamentos sobre a situação de nações e a fisionomia de lugares.

“Talvez a crueldade seja a norma nos contos de ‘Rinha de galos’ porque Ampuero a conhece e a entende, porque sua escrita tem uma íntima relação com a beleza e a violência”, escreve Mariana Enríquez, uma das vozes mais aclamadas da literatura argentina contemporânea, no texto de orelha do livro. O caminho para enveredar pelo trajeto narrativo de María Fernanda, de fato, parte exatamente daí.

Avolumando a relevância da editora Moinhos de conferir um esmerado olhar para a produção literária sul-americana – um compromisso que a casa passou a assumir sobretudo desde o ano passado, e com muita dedicação – a obra é instrumento de convocação para um olhar demorado sobre os interditos de todo dia, escondidos na poeira do cotidiano e responsáveis por expor a barbárie em nós. “É assim, né? As pessoas veem os outros e não sabem o que se passa por trás das portas da sua casa”. É, é assim. 

 


Rinha de galos
María Fernanda Ampuero
Tradução de Silvia Massimini Felix

Moinhos
2021, 112 páginas
R$ 55

 

Assuntos Relacionados