‘Tom na Fazenda’, premiada peça sobre violências estruturais, chega a Fortaleza e você precisa ver

Apresentações acontecem no Cineteatro São Luiz nesta sexta (8) e sábado (9); produtor e protagonista, Armando Babaioff reflete sobre alcance da história: “O que temos de melhor no teatro”

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Armando Babaioff e Gustavo Rodrigues em cena de "Tom na Fazenda": motor de reflexão e transformação
Foto: Victor Pollak

Lama, muita lama ocupará o Cineteatro São Luiz nesta sexta (8) e sábado (9). Argila que molda vaso, coisa útil e acabada, mas também é chão, terra e cenário para um dos espetáculos mais reconhecidos dos últimos anos, dentro e fora do Brasil. “Tom na Fazenda” desembarca em Fortaleza prestigiado, embora não menos consciente: é preciso continuar a fazer pensar.

No centro do enredo, a viagem do personagem-título à fazenda da família do companheiro, agora morto. É lá onde acontece o funeral e onde Tom conhece a mãe do namorado – que ainda não sabe a orientação sexual do filho falecido – e o irmão dele, um camponês viril e violento, desejoso de que o cunhado esconda o relacionamento da mulher enlutada.

Veja também

Mentir, assim, é lei, e pouco a pouco a trama vai se descortinando, numa dança entre presente, passado, expectativas frustradas e, sobretudo, coragem. Custa bastante ser o que se é. “É um assunto muito caro a nós, então temos oportunidade de, numa peça de teatro, numa obra de arte, discutir coisas por meio da cena, de um texto, de um gesto, de uma fala”.

É Armando Babaioff quem nos conta, em entrevista ao Verso por telefone direto da casa dos pais, em Copacabana (RJ). A pausa é necessária: em turnê pelo Nordeste, o ator, produtor e idealizador da montagem não tem parado, mas vê tudo isso com alegria incontida. Significa que mais e mais pessoas abraçam o espetáculo e se permitem ser envolvidas por ele.

Os números não negam. Desde que estreou, em 2017, “Tom na Fazenda” soma mais de 350 apresentações, mais de 70 teatros ocupados e mais de 70 mil espectadores. Um feito raro, sobretudo em território nacional. “Há muito o que comemorar, e são conquistas que não foram de uma vez só. Então é celebração atrás de celebração, dia a dia”.

Exercício coletivo

Uma comunhão de fatores justifica essa vibração. Armando destaca que a peça, patrocinada pela Vivo, gera reflexão por possuir texto de alta qualidade, encenação tão minimalista quanto devoradora e elenco disposto a entregar tudo no palco – além do ator, compõem o tablado Denise Del Vecchio, Gustavo Rodrigues e Camila Nhary.

“Isso faz com que o público se transporte da poltrona para um universo imaginário, para um lugar que não é apenas o da peça, mas o da imaginação, da reflexão e da emoção. Passa pela visão e pela vida de cada um, e também pela maneira como guardamos as memórias ao longo da existência. É o que a gente tem de melhor em teatro”.

Transformação e entretenimento juntos. Algo que se confunde inclusive com literatura. Já na primeira cena, quando Tom começa a descrever o cenário, o público já é obrigado a fabular, como na leitura de um livro. Transpor os espectadores para essa dinâmica, num choque de imaginários – o de quem está apresentando e o de quem está assistindo – é poderoso.

Legenda: Aproximação, empatia, comoção e catarse são frutos da montagem
Foto: Victor Pollak

Aproximação, empatia, comoção e catarse, assim, entram como frutos. “Algo muito potente nessa peça é que tudo isso acontece ao mesmo tempo em que uma denúncia está sendo feita, quando falamos de violência, homofobia… É um lugar de experiência muito legal e sinto que, aonde quer que a gente vá, será absorvido pela cultura local”.

Armando lança o comentário quando pergunto quais os desafios de fazer com que a montagem, de DNA estrangeiro, dialogue com as diferentes culturas brasileiras por onde tem passado. “Tom na Fazenda”, com tradução do próprio Babaioff, é baseada na obra “Tom à la Ferme”, do canadense Michel Marc Bouchard. Além do terreno das Artes Cênicas, também já se tornou filme pelas mãos do também canadense Xavier Dolan, em 2013.

“Digo que a gente pegou essa peça, engoliu e regurgitou. No país de origem, ela entra numa categoria de thriller psicológico, mas no Brasil ganha ares de denúncia, de estudo sobre a violência, de questionamentos de comportamentos familiares – comportamentos machistas, sexistas, uma denúncia do patriarcado. Vai ganhando todas essas camadas porque esse é o país em que a gente vive”.

Há outros fatores em jogo. No processo de adaptação do texto, o pernambucano foi retirando referências estrangeiras – climáticas, geográficas, de animais, pratos típicos e frases – e colocou muito da própria vida e família, abrindo espaço, na liberdade poética, para gerar identificação imediata a quem quer que assistisse, em qualquer lugar do planeta.

A ideia da cenografia assinada por Aurora de Campos e reforçada com a direção de Rodrigo Portella – de permitir que toda a peça seja contada em cima da lama – potencializa essa experiência do texto. Não à toa, quando, ao completar 200 apresentações, o próprio autor da peça convidou a equipe para jantar na casa dele, a impressão veio forte.

No país que mais mata pessoas LGBTQIAP+ no mundo, trabalhos como “Tom na Fazenda” fazem muito mais sentido no Brasil do que no Canadá. São motor de revolução. “Sinto o público respirando junto com o espetáculo. Na hora que é para rir, tem risada; na hora pra se emocionar, há emoção. Ali, naquele momento, a gente vira uma coisa só”.

Não é apenas um fenômeno

Tendo morado e sido alfabetizado em Fortaleza – estudou no antigo Colégio Integral, localizado na Avenida Santos Dumont – Babaioff é todo felicidade ao retornar à Capital. Gosta das pessoas, do clima, da energia. E pretende se conectar com as plateias de modo tão intenso quanto foi em outras praças.

A circulação, garante, foi resultado de muito esforço e a crença certa de que, desde as primeiras apresentações, o espetáculo iria muito longe. “‘Tom na Fazenda’ poderia ter parado depois que estreou porque o dinheiro e a verba acabaram. O que nós fizemos foi perceber que a montagem, mesmo num teatro de 47 lugares, onde estreamos, tinha muita demanda de público e indicações a prêmios, sinais de que deveria seguir”.

Foi o que aconteceu e o que acontecerá. Em 15 de janeiro do próximo ano, toda a trupe levanta voo e vai para a Europa fazer uma turnê de quatro meses e meio por França, Suíça e Bélgica. Antes disso, ainda na passagem por Fortaleza, Babaioff e equipe se reunirão com estudantes de cursos de produção cultural, teatro e artes em geral para abrir a caixa preta da montagem e desbravar caminhos e estratégias de trabalho na seara.

“É olhar para a peça com pensamento de empresário. Encarar um projeto cultural como algo que pode realmente fazer dinheiro. Acho que as pessoas – os investidores, o governo – ainda não entenderam o potencial do setor cultural, responsável por mais de 4% do Produto Interno Bruto desse país. Não tenho que explicar pra ninguém qual a importância da arte. Só tenho que mostrar números e dizer: ‘Teatro entrega, teatro faz dinheiro, cultura vende’”, diz Armando, cuja defesa aponta para uma forma mais “agressiva” de fazer arte.

E, nessa postura, se permitir sonhar. Daqui a 40, 50 anos, cumprir o desejo de ver a peça sendo lembrada como um marco histórico do teatro brasileiro. “Quero chegar em lugares em que muitos artistas brasileiros não chegaram. Quero pisar em palcos que brasileiros ainda não pisaram. Quero fazer isso, tenho muita vontade. O mesmo tesão que um jogador de futebol tem ao pisar no Maracanã, eu tenho quando subo nos palcos. É o que me faz continuar”.

 

Serviço
Espetáculo “Tom na Fazenda”
Nesta sexta-feira (8) e sábado (9), às 20h, no Cineteatro São Luiz (Rua Major Facundo, 500, Centro). Ingressos por meio deste link, no Sympla. Mais informações: (85) 3252-4138

Assuntos Relacionados