Saiba o que é biblioterapia e como ela pode ser útil à saúde mental na pandemia de Covid-19
A leitura pode auxiliar na cicatrização das dores do luto, da ansiedade e da depressão
Quase todo mundo tem aquele livro de cabeceira cuja leitura traz uma sensação de melhoria, seja qual for o desafio que se esteja passando. Mas, para além dessa fruição pessoal, você sabia que a literatura é utilizada como método auxiliar em processos de cura desde a Grécia Antiga?
A técnica, mais conhecida como biblioterapia, encontra ecos nas profissões de psicólogos e bibliotecários, por exemplo, e pode ser grande aliada em contextos estressantes como o da pandemia de Covid-19.
“Nunca a literatura foi tão necessária, é um afago na alma o que as leituras fazem. Nos humanizam, nos unem”, partilha Jacqueline Assunção de Lima Braga, que acaba de lançar, pelo selo Inesp, o e-book gratuito “Biblioterapia: poéticas como prevenção para os males da alma”.
Servidora na Assembleia Legislativa do Ceará e atualmente cursando formação em Psicanálise, a autora se deparou com este conceito há seis anos, durante as pesquisas para um mestrado em Gestão de Negócios Turísticos. Em 2017, o projeto se expandiu e Jacqueline propôs ao ambiente de trabalho a criação da “Estante Assalce: ler cuidando do ser com Biblioterapia”.
“A ressonância girou em espiral, potente, virou curso e levamos livros como remédios para a alma, em rodas de conversa que vão morar nessa estante. O objetivo central é que através de uma pausa, um respiro os servidores empoderem as relações, e que haja uma pacificação na alma por meio de boas leituras”, diz ela, que também está organizando encontros remotos durante a pandemia.
Experiência hospitalar e social
À semelhança do que hoje faz Jacqueline, nas décadas de 1990 e 2000, a professora do Departamento de Ciências da Informação da Universidade Federal do Ceará (UFC), Virgínia Bentes Pinto, trabalhou em dois projetos que utilizavam a leitura de textos verbais ou não-verbais como terapia.
O primeiro deles foi realizado no Bloco de Oncologia do Hospital Albert Sabin. À época, ela contava com o apoio do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisa sobre a Criança (Nucepec), do Departamento de Psicologia da instituição de ensino a qual está vinculada.
“Foi um dos trabalhos mais gratificantes para mim e, certamente, para a nossa equipe. Durante esse projeto aprendemos muito, principalmente trabalhar com a morte e outras perdas”, evidencia.
Mais tarde, a mesma parceria viria a desenvolver atividades na Casa da Criança, conhecendo de perto a realidade de pequenos abandonados e/ou violentados. “Nossa atuação foi por meio da leitura como forma de melhorar os conflitos enfrentados pelas crianças, em consequência de sua condição de vida pregressa e na casa”, lembra.
As recordações, aliás, evocam na professora o desejo de atuar novamente como biblioterapeuta, função da qual ela se distanciou em detrimento de outras pesquisas nos últimos anos.
Penso que a biblioterapia, voltada para esse momento que estamos vivenciando, pode contribuir para ajudar a sarar as dores do corpo e da alma ou do espírito. Como estamos com dores coletivas, quem sabe fosse interessante trabalhar a biblioterapia de grupo”, aponta.
Livros e psicoterapia
A psicoterapeuta e mediadora de leitura Nara Barreto explica que as possibilidades de trabalho com a biblioterapia são incontáveis, justamente porque pode ser feito em inúmeros contextos e associado com outros recursos terapêuticos.
“É muito comum, por exemplo, o trabalho com grupos de leitura, onde livros são discutidos e impressões e experiências sobre eles são partilhadas. No contexto clínico, pode haver discussão sobre o material lido, construção de imagens, reformulação do conteúdo, escrita terapêutica, role playing. Aqui, o manejo clínico da leitura vai depender muito da experiência e do processo do leitor-paciente”, destaca.
Em diálogo com o trabalho desenvolvido por Jacqueline e Virgínia, Nara evidencia que a técnica de biblioterapia é usualmente dividida em dois tipos: de desenvolvimento e clínica. “A primeira, bastante difundida pelos bibliotecários, propõe a utilização da Literatura nos mais diversos contextos para proporcionar acolhimento em situações difíceis e dolorosas, potencializar a resolução de conflitos e impulsionar a criatividade”, afirma.
Já a biblioterapia clínica pode oferecer, além das possibilidades já citadas, o recurso da Literatura orientado para o trabalho de questões profundas, estruturantes, no processo psicoterapêutico. “Não descartamos também os efeitos terapêuticos da simples literatura de fruição, que podem trazer consolo, alívio e distração, mesmo que pontuais e passageiros”, observa.
Principais benefícios
Ainda de acordo com Nara, são inúmeros os benefícios da leitura como recurso terapêutico.
A leitura pode fornecer distração para os sentimentos e sensações desagradáveis que se tornam exaustivos; clareza e organização para afetos que parecem bagunçados, batizando sentimentos e sensações que pareciam impossíveis de serem nomeados ou descritos; oferece a possibilidade de expressar aquilo que o sujeito não consegue nomear ou descrever para outras pessoas por falta de palavras, analogias ou metáforas satisfatórias”, explica.
A psicoterapeuta defende que a Literatura é capaz de conceder o consolo que o leitor precisa ao compreender que suas dores e angústias não são exclusivas do seu processo de vida, mas que outras pessoas vivenciaram processos semelhantes.
“Também oferece um espelho para que o leitor veja com mais detalhes as sutilezas de seus afetos, padrões de comportamento, motivações e modos de relacionamento”, completa.
O que ler?
Um dos protocolos da biblioterapia, segundo a professora Virgínia Bentes, é não indicar leituras, porém, deixar expostas as fontes para serem escolhidas individual ou coletivamente. Neste sentido, ela sugere para este contexto de pandemia textos simples, inclusive letras de música, como “Tocando em Frente”, de Almir Sater, e “Epitáfio”, dos Titãs.
As obras “Ensaio de psicologia sensível”, de Celestin Freinet; “Pipa”, de Luiz Falcão; “Perdi meu Amor”, de Luiz Galdino; “A dor”, de Marguerite Duras; e “Les grandes fatigues”, de Isabelle Dumais, também entram nas sugestões da docente.
É preciso que se diga que todos os livros são maravilhosos. Contudo, também, é preciso dizer que nenhum livro é inocente e, portanto, a leitura pode mexer com as nossas Gestalt. Por essa razão, toda atenção se faz necessária às leituras com fins biblioterapêuticos”, alerta.
Nara Barreto, por sua vez, acredita que toda leitura pode ser terapêutica, sim, dependendo da relação que for estabelecida entre o leitor e o texto. “Essa relação sempre será importante por fomentar a criatividade e a imaginação, expandir a sua visão de mundo e de possibilidades existenciais, podendo contribuir para ressignificações necessárias e atribuição de sentido para a vida”, diz.
Mais títulos
Em diálogo com Virgínia, a psicoterapeuta afirma que não existe um tipo específico de livro a ser indicado e que isso vai depender das demandas do paciente, do grupo e das possibilidades do biblioterapeuta/psicólogo. “É importante, no caso da aplicação na clínica, que haja o máximo de abertura e disponibilidade para acolher qualquer sugestão literária que venha do paciente ou do grupo”, salienta.
Entre os títulos que ela tem trabalhado estão "A ridícula ideia de nunca mais te ver", de Rosa Montero; "Altos voos e quedas livres", de Julian Barnes; "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector; e "Mulheres que correm com os lobos", de Clarissa Pinkola Estés.
Outras opções de leitura também podem ser conferidas no livro de Jacqueline Assunção, que traz mais de 40 “remédios para a alma”, elencados a partir das rodas de conversa realizadas com os servidores da Assembleia Legislativa do Ceará.
“A leitura pode ser libertadora. Principalmente se pensarmos nela como fator de inclusão social. Quando leio, posso compreender melhor o mundo e a mim mesmo. Posso escrever e manejar a minha realidade. Nesses tempos de tantas dores e medos, além do alento, precisamos de força para seguir lutando por uma sociedade mais digna para todos. Ação também é cura. Minha sugestão de leitura é apenas essa: leiam”, conclui a psicoterapeuta Nara Barreto.
Serviço
> Livro “Biblioterapia: poéticas como prevenção para os males da alma”, de Jacqueline Assunção. Disponível gratuitamente. Contato pelo WhatsApp (85) 9 9999-4215 (Inesp).
> Curso “Em Rodas de Biblioterapia”, com Jacqueline Assunção. Informações no Instagram @assalceoficial ou pelo telefone (85) 98601-6545.
> Atendimento psicológico com Nara Barreto. Agendamento pelo email narabarretopsi@gmail.com.
> Clubes de Leitura e Cursos de Literatura como Recurso Terapêutico, por Nara Barreto. Disponíveis no Instagram @dropsdeleitura