'Quero contar a história que não foi contada': 6 anos após a Chacina do Curió, mães lembram vítimas

Em livro e podcast, elas tecem memórias sobre os filhos enquanto revivem o luto em busca de justiça

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Intitulado “Onze – Movimento Mães e Familiares do Curió com Amor na Luta por Memória e Justiça”, livro reúne relatos das mães de cada vítima da barbárie
Foto: Ilustração de Eduarda Moiano

Bastava ter festa, comemoraçãozinha que fosse no número 628 da Rua 202, no bairro São Cristóvão, em Fortaleza, para Álef Souza Cavalcante vibrar com a possibilidade de doces e salgados. “Mãe, a senhora vai fazer o quê? Um bolo de brigadeiro, um creme de galinha?”, impacientava-se em saber. Era sempre o mais animado nos assuntos de celebrar a vida.

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A lembrança é uma das mais bonitas guardadas por Edna Carla Souza Cavalcante, mãe do jovem que hoje teria 23 anos. Há também outras, várias, feito o sorriso dele acompanhado de uma brincadeira. Tão alto aos 17 anos, o garoto se orgulhava pelo fato de dona Edna alcançar somente até a altura do longo braço. “A senhora não tem vergonha disso, não?”, gargalhava.

“Ele era aquele menino carinhoso, bom. Não era respondão, tinha educação com todo mundo”, enumera a mãe, timbre emocionado ao telefone. “Eu tenho uma lembrança muito linda que ele deixou escrita num caderno, vou até mandar colocar em um quadro. Diz assim: ‘Edna, a dona do meu coração’”.

Legenda: Álef Souza Cavalcante tinha o sonho de ser skatista profissional e é descrito pela mãe como alguém carinhoso e divertido
Foto: Arquivo pessoal

O papel ficou como prova da permanência. Álef não se foi. Continua por entre os objetos da casa, agarrado às memórias de familiares, amigos e conhecidos. Persiste porque a luta por justiça, segundo a mãe, não acaba. O jovem foi uma das 11 vítimas mortas na Chacina do Curió, ocorrida na virada dos dias 11 e 12 de novembro de 2015, em quatro bairros da Grande Messejana.

Agora, seis anos após o trágico acontecimento que marcou para sempre a fisionomia de um lugar, da cidade e de todo o Estado, emergem as trajetórias das pessoas dizimadas, contadas pelas próprias mães de cada uma. A iniciativa faz parte de um projeto transmídia cujos frutos são um livro e uma série de podcasts.

Estes últimos já estão disponíveis no Spotify, e a cada dois dias será colocado um novo episódio até totalizar 13. Já a obra impressa, intitulada “Onze – Movimento Mães e Familiares do Curió com Amor na Luta por Memória e Justiça”, tem lançamento marcado para esta quinta-feira (11), às 18h, no anfiteatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC). Devido às limitações da pandemia de Covid-19, o evento foi planejado para 100 convidados. O livro será distribuído gratuitamente pelas mulheres que o compuseram. 

Reviver gestos

Integrantes do movimento referenciado no título da publicação, as mães também estiveram à frente de outras atividades nas duas últimas semanas a fim de lembrar a data – foram lives, webinário, mobilização virtual, seminário e sarau. Junto a elas, somaram-se representantes de ONGs e de diversos projetos sociais. 

De acordo com dona Edna, cuidadora de idosos e ativista dos Direitos Humanos, o objetivo de toda a programação, sobretudo da obra que será lançada, é contar a história que ainda não foi contada das vítimas. “São relatos que não foram ditos pela polícia, pelos jornais, por ninguém. Só quem podia fazer isso eram as próprias mães”, sublinha.

De fato, o componente memorialístico toma conta de todo o livro, realizado em parceria com profissionais do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) e ativistas sociais. Mas não apenas. Unidas a cada detalhe da personalidade dos filhos, estão a dor e a revolta de um barbárie ainda sem julgamento. Nenhum dos mortos pela chacina tinha envolvimento com os crimes que levaram policiais militares a agir na ocasião.

Foram dizimados pelo acontecimento: Álef Souza Cavalcante, de 17 anos; Antônio Alisson Inácio Cardoso, de 16 anos; Francisco Elenildo Pereira Chagas, de 40 anos; Jardel Lima dos Santos, de 17 anos; Jandson Alexandre de Sousa, de 19 anos; José Gilvan Pinto Barbosa, de 41 anos; Marcelo da Silva Mendes, de 17 anos; Patrício João Pinho Leite, de 16 anos; Pedro Alcântara Barroso do Nascimento Filho, de 18 anos; Renayson Girão da Silva, de 17 anos; e Valmir Ferreira da Conceição, de 37 anos.

Eu cuido dessa luta como se o meu filho estivesse vivo. Só quem podia matar ele era Deus, que foi quem deu a vida a ele. O que aconteceu não foi uma fatalidade, foi uma maldade. O Álef era muito divertido, um rapaz vaidoso, que tinha o sonho de ser skatista profissional, de ser reconhecido por isso. O que mais me maltrata é saber que o meu filho não devia nada e foi morto. Eu nunca vou me conformar com isso”, afirma dona Edna, entre lágrimas.

Legenda: "Espero que o público leia o livro e goste do Álef e dos outros jovens tanto quanto nós", torce dona Edna Carla Souza Cavalcante
Foto: Ilustração de Eduarda Moiano

Logo, é grande o desejo de que o livro chegue ao maior número de pessoas possível a fim de tirar da nebulosidade a trajetória de conquistas e vontades alimentadas por cada vítima. A mãe de Álef quer esticar a herança de sentimentos e passos dados pelos jovens, fazendo com que a sociedade repense quem outrora chamou de bandido e, mais tarde, de inocente.

“Eu quero que chegue nas pessoas a história que não chegou. O dia 11 de novembro é o pior da minha vida porque é o dia que meu filho foi morto. Mas eu espero que o público leia o livro e goste do Álef e dos outros jovens tanto quanto nós. Que entendam o tamanho da injustiça que aconteceu e da dor que tudo isso deixou”.
Edna Carla Souza Cavalcante
Cuidadora de idosos e ativista dos Direitos Humanos

Memória viva

Assistente social no Cedeca, Neyla Castro realiza um trabalho de assessoria comunitária com os integrantes do Movimento Mães e Familiares do Curió. Segundo ela, desde o ano passado se iniciou o processo de sistematização dos relatos para o livro, após vários encontros de construção da metodologia.

“Depois desse momento, convidamos cinco professoras da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Estadual do Ceará para compor a equipe, juntamente com mais oito profissionais do Cedeca, que ouviram as histórias de vida dos jovens vitimados. Finalizamos o processo de escuta e escrita coletiva em janeiro deste ano. As histórias narradas contam sobre momentos felizes vividos na infância e na adolescência de cada um”, diz.

Legenda: "O grande diferencial desse trabalho é ver uma escuta transformada em ato político, porque é isso que o livro significa", destaca Neyla Castro
Foto: Arquivo pessoal

Há três anos acompanhando a luta dessas mulheres por memória e justiça, Neyla diz que fazer parte dessa trajetória tem um significado pessoal muito nobre. Ela também é mãe de um menino negro, como a maioria das vítimas da chacina, portanto sabe o impacto do racismo no cotidiano. “Esse sentimento materno faz com que eu compartilhe de muitas histórias. O grande diferencial desse trabalho é ver uma escuta transformada em ato político, porque é isso que o livro significa”, destaca.

“Quem escutar os podcasts e ler a obra vai se identificar com muitas histórias de moleques travessos, que gostavam de brincar de bola, andar de skate, namorar e passear por aí, como todo adolescente. O ápice de cada relato é quando essas vidas são interrompidas de forma tão precoce por uma ação violenta do Estado”.
Neyla Castro
Assistente social

Ela ainda enfatiza que os desafios e dificuldades das mães e familiares dos jovens são diários, uma vez que eles carregam, além dos traumas pela morte antecipada e violenta dos filhos, a falta de assistência do Estado junto às famílias. “As demandas se expressam principalmente por atenção à saúde mental, assistência social, e principalmente por justiça. Elas anseiam a condenação dos culpados pela chacina”.

Não à toa, a proposta de que o livro chegue nas escolas e universidades, fortalecendo a militância dos diversos movimentos sociais e coletivos organizados contra o extermínio da juventude negra e periférica do Ceará

Legenda: A proposta é de que o livro chegue nas escolas e universidades, fortalecendo a militância dos diversos movimentos sociais e coletivos
Foto: Arquivo pessoal

Tristeza, mas luta

Outra mãe cuja voz percorre a pele do livro e dos podcasts é Maria de Jesus da Silva. A travessia do filho, Renayson Girão da Silva, é intitulada nos dois suportes como “Mais que um filho, um amigo e confidente”. “Ele era. Tudo me marcou durante os 17 anos de vida dele. Foi tudo muito bom, ele trouxe muita alegria para mim”, conta.

Descrito por dona Maria como “estudioso, maravilhoso e extrovertido”, Renayson jogava futsal e já se imaginava, quando adulto, nos grandes campos e quadras do Brasil e do mundo. O nome do time do qual participava era Metamorfose, atribuição carregada de importância e significado que a mãe deseja colocar para a frente. “Estou só esperando o treinador dele decidir alguma coisa”.

Legenda: Renayson Girão da Silva foi um menino muito aguardado, portador da felicidade e da esperança para a mãe, dona Maria de Jesus
Foto: Arquivo pessoal

Para além desses detalhes, a obra narra vários outros fatos relacionados aos passos do jovem, começando pela chegada dele na vida de dona Maria. Foi um menino muito aguardado, portador da felicidade e da esperança. Uma vez tendo uma infância difícil, a mãe de Renayson viu no nascimento da criança o preenchimento de diversos vazios.

É o que explica a tremenda angústia que ficou com a partida prematura do garoto. Dona Maria se apega a pequenos gestos a fim de lembrá-lo. O filho está em tudo. Nas roupas do armário, nos calçados solitários, no peito de frango frito que ele tanto gostava e pelo qual perguntava após chegar das partidas de futebol. “Era a comida predileta dele. Isso me marcou tanto que até hoje não gosto de peito de frango porque lembro do meu filho”, confessa.

Legenda: Dona Maria de Jesus se apega a pequenos gestos a fim de lembrar Renayson; o filho está em tudo
Foto: Eduarda Moiano

“Contar a história do Renayson é importante para que todos conheçam quem era o meu filho de verdade. Até então as pessoas não sabem, conhecem apenas o outro lado: o da mentira. E, com certeza, eu quero justiça, sim, pelo que fizeram com ele e com todos os outros. Transformar cada vez mais o meu luto em luta”.

 

Serviço
Lançamento do livro “Onze – Movimento Mães e Familiares do Curió com Amor na Luta por Memória e Justiça”
Nesta quinta-feira (11), às 18h, no anfiteatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (Rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema). Restrito a 100 convidados. Contato: (85) 3488-8600

> Saiba Mais: Chacina do Curió em audiovisual

Antes das iniciativas realizadas neste ano, a Nigéria Filmes, produtora audiovisual cearense, lançou em 2018 o documentário “Onze - A chacina da Messejana”. De caráter colaborativo, o trabalho também retrata a história de familiares das vítimas e as manifestações que ocuparam a periferia em protesto aos assassinatos. Disponível neste link.


Onze – Movimento Mães e Familiares do Curió com Amor na Luta por Memória e Justiça
Idealizado por Edna Carla Souza Cavalcante
Vários autores

Independente
2021, 160 páginas
Distribuição gratuita

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