Seis anos após Chacina do Curió, dos 34 PMs acusados apenas 8 estão aptos a irem a julgamento
Os outros 26 PMs pronunciados recorreram a Tribunais Superiores e alegam falta de provas. Familiares das vítimas não desistem de buscar Justiça
Onze assassinatos em sequência, em pontos do bairro Curió, na Grande Messejana, em Fortaleza, entre a noite de 11 de novembro e a madrugada de 12 de novembro de 2015. Seis anos depois do episódio que ficou conhecido como Chacina do Curió, apenas 8 dos 34 policiais militares pronunciados pelos crimes na Justiça Estadual estão aptos a irem a julgamento - ainda sem data para ocorrer. Os outros PMs recorreram a Tribunais Superiores.
A investigação da Delegacia de Assuntos Internos (DAI), da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD), concluiu que policiais militares - em serviço e de folga - se reuniram para vingar a morte do soldado PM Valtemberg Chaves, ocorrida em um assalto no bairro Lagoa Redonda (próximo a Messejana), na noite de 11 de novembro de 2015. E decidiram procurar os responsáveis pelo crime na região, quando escolheram vítimas aleatórias para matá-las, nas horas seguintes.
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O Ministério Público do Ceará (MPCE) ofereceu denúncia contra 45 policiais militares por participação nos crimes, no dia 14 de junho de 2016. Um colegiado de juízes criado na 1ª Vara do Júri de Fortaleza, da Justiça Estadual, para acompanhar especialmente o processo, recebeu a denúncia contra 44 PMs e decretou a prisão preventiva dos mesmos, em 25 de agosto daquele ano. O processo foi desmembrado em três ações penais, sendo dois com 18 réus cada e o outro, com 8.
As prisões perduraram até a sentença de pronúncia, feita em 23 de maio de 2017. Os magistrados decidiram levar 34 réus a julgamento por homicídio e 8 acusados, não; enquanto outros 2 PMs tiveram a conduta desclassificada, para responderem por crimes como tortura, prevaricação, lesões corporais e abuso de autoridade. As informações foram repassadas pelo representante do MPCE na 1ª Vara do Júri de Fortaleza, o promotor de Justiça Marcus Renan Palácio.
Os PMs pronunciados recorreram ao Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), ao passo que o MPCE recorreu da impronúncia dos 8 militares. Em 2019, a Segunda Instância manteve as decisões da Primeira Instância. Então os acusados recorreram a Tribunais Superiores, o que parou os processos na 1ª Vara do Júri. Apenas 8 PMs pronunciados estão com os recursos transitado em julgado e já podem ser julgados, conforme o colegiado de juízes marcar a data. A expectativa é que isso ocorra em 2022.
Marcus Renan garante que "o Ministério Público, para além de ter acompanhado todas as investigações junto da Delegacia de Assuntos Internos, da Controladoria Geral de Disciplina, tem prestado a este processo a devida prioridade, sempre atuando com zelo e com proficiência".
O Ministério Público é sensível e se solidariza, a mais não poder, com as dores e os sentimentos das famílias enlutadas. Não obstante a complexidade do processo, secundada pela pluralidade de réus e multiplicidade de vítimas, faz incidir, na espécie, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade."
Questionado sobre a demora do julgamento do caso, o TJCE alegou que o processo "é de alta complexidade pela quantidade de réus envolvidos", que o mesmo foi desmembrado em três ações penais "com o objetivo de acelerar o andamento dos atos processuais e necessários em cada ação penal, como realização de audiências e oitivas de testemunhas" e que recebeu diversos recursos, após as deciões de pronúncia e impronúncia.
O ingresso desses recursos, que são respaldados por lei, inevitavelmente, acabam fazendo com que o tempo de tramitação do processo seja mais extenso, já que são recursos cabíveis e que devem ser apreciados pelas instâncias superiores da Justiça. Após a apreciação de todos os recursos e observadas as possíveis decisões oriundas deles, o Colegiado de magistrados que atua no processo deverá marcar as datas de julgamento para os que tiverem a decisão de pronúncia mantida."
O TJCE completa, na nota, que "o Judiciário cearense tem empenhado esforços para dar resposta à população que anseia por justiça e reforça o compromisso com a celeridade processual. Destaca-se ainda que todos os trâmites realizados durante o andamento dos processos estão dentro dos prazos estipulados por lei".
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Familiares não desistem de buscar justiça
Os seis anos que se passaram desde a matança não fizeram os familiares das vítimas desistirem de buscar por justiça nem se calarem.
Infelizmente, é um sentimento de impotência, apesar da gente não perder as esperanças que tenha uma solução para isso. As pessoas acham fácil tirar a vida das outras, mas o mais difícil ainda é termos que provar que nossos filhos eram inocentes. Até agora, não teve reparação de nada. E a gente fica esperando, sem saber se vai ter uma solução".
Oito pessoas que tiveram a vida ceifada naquela noite de horror tinham menos de 20 anos. Entre elas, Jardel Lima dos Santos, de apenas 17 anos, filho de Maria Suderly Pereira de Lima. Segundo ela, todo os dias, nesses seis anos, são dolorosos. "É como se tivesse acontecido ontem. A gente não esquece, porque quando se perde um filho na idade que a gente perdeu é muito difícil. Não vamos esquecer nunca", pontua.
"São seis anos de negacionismo. Eu luto pelo meu filho como se ele estivesse vivo. Uma mãe não desiste do filho, e eu não vou desistir do meu. Eu vou lutar até que a Justiça seja feita. A esperança que eles (acusados) sejam condenados é pelo fim da impunidade."
Álef Sousa Cavalcante, 17, filho de Edna Sousa, é outra vítima da Chacina. Edna afirma que os últimos meses do ano são os mais difíceis: "A gente sente (saudade) toda hora. Toda data comemorativa, todo aniversário, toda passagem de ano. Quando chega novembro, já tem o dia 2, que é o Dia de Finados. Aí vem o dia 11, que é o dia da morte. Depois vem o fim de ano. Não tem dia alegre para a gente".
Foi em um coletivo próprio, 'Mães do Curió', que esses familiares encontraram apoio e força para continuarem a lutar. O grupo se encontra mensalmente para compartilhar as dores e a esperança. "Ele é muito importante, porque todas nós ficamos sem saber a quem recorrer. Uma apoia a outra", define Maria Suderly. O grupo está lançando um projeto transmídia cujos frutos são um livro e uma série de podcasts sobre a luta por Justiça.
"Graças a Deus a gente tem esse movimento, porque eu nunca deixei de lutar. Mesmo com toda nossa dor e nossas diferenças, mas a gente sabe que o nosso ponto de apoio, de refúgio, é o movimento. Para correr atrás de tudo", corrobora Edna Sousa.
A Defensoria Pública Geral do Ceará afirma que dá assistência às famílias das vítimas da Chacina da Messejana desde que aconteceu o caso. Essa experiência serviu de laboratório para a Rede Acolhe, criada em julho de 2017, quando começou a dar apoio psicológico, assistencial e de orientação criminal para vítimas da violência e seus familiares, no Ceará.
Foi uma experiência muito rica que mostrou para a Defensoria Pública a necessidade de oferecer um atendimento específico para esse público. A gente sente ainda muito que o acesso à justiça para as vítimas da violência, de um modo geral, é negligenciado. Uma ideia culturalmente muito forte é que a violência implica apenas nas questões de natureza criminal, que teria como marca de sucesso a condenação. Não é isso, as vítimas da violência têm uma diversidade de demandas muito grande e necessitam de um atendimento específico."
As vítimas da Chacina:
– Antônio Alisson Inácio Cardoso, morto aos 17 anos;
– Álef Sousa Cavalcante, 17;
– Francisco Enilso Pereira Chagas, 41;
– Jandson Alexandre de Sousa, 19;
– Jardel Lima dos Santos, 17;
– José Gilvan Pinto Barbosa, 41;
– Marcelo da Silva Mendes, 17;
– Patrício João Pinho Leite, 16;
– Pedro Alcântara Barroso, 18;
– Renayson Girão da Silva, 17;
– Valmir Ferreira da Conceição, 37.
PMs acusados alegam falta de provas
Os policiais militares acusados por participação na Chacina da Messejana alegam, no processo, que não cometeram os crimes e que não há provas para incriminá-los. Pontuam ainda que a denúncia do MPCE generaliza a participação dos PMs e que um réu não poderia estar em dois locais que aconteceram mortes ao mesmo tempo ou em um curto intervalo de tempo.
O advogado Paulo Pimentel, que representa a defesa de um réu pronunciado (e já ingressou com recurso para os Tribunais Superiores), afirma que "não há qualquer participação direta ou indireta do meu cliente dentro dos autos. Além de ele não ter participado e é lógico, não há prova alguma indiciária contra ele".
O representante da defesa de outros policiais militares afirmou que não pode comentar o caso. Enquanto outros advogados dos réus também foram procurados pela reportagem, mas as ligações não foram atendidas.