‘Ele colocou um app no meu celular para me monitorar’: vítima relata perseguição e ameaças sofridas
Episódios de violência psicológica, ameaças, agressões verbais e físicas. Uma sequência que poderia ter custado a vida de Marina (nome fictício). Aos 17 anos e o corpo tomado por hematomas após mais uma discussão violenta com o namorado, a jovem tentou suicídio.
Hoje, Marina tem 26 anos e ainda desacredita: “não sei como eu permiti viver isso e que continuasse”. Nas histórias contadas pelas sobreviventes da violência doméstica, uma premissa se repete: por um momento, elas acreditaram serem as ‘vilãs’, como se sentiu a jovem quando a mãe do ex-namorado foi à casa dela dizer que um Boletim de Ocorrência, a instauração de um inquérito e um processo judicial com medida protetiva “iriam acabar com a vida do filho dela”.
O sociólogo, professor e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Alisson Rodrigo de Araújo Oliveira, que estuda o tema violência doméstica, ressalta: “nunca é demais dizer que uma mulher que permanece em um ambiente no qual a violência está sendo praticada contra ela não precisa de julgamentos, precisa de ajuda. Romper o ciclo da violência é um processo extremamente complexo, na medida em que envolve múltiplos fatores”.
“EU GENUINAMENTE ACREDITAVA QUE NÃO FOSSE ACONTECER DE NOVO”
Quieta, reservada e diante da primeira ‘experiência romântica’. É assim que Marina resume o início de um relacionamento com um jovem, de classe média alta, quando ainda pensava estar diante de um ‘príncipe encantado’.
“Ele era presente, simpático, educado. Eu nem sei dizer o início disso tudo… mas lembro que as primeiras agressões foram verbais”, conta.
“A gente tinha condição social diferente e ele dava algumas alfinetadas por causa disso. Quando eu não conseguia dar o que ele queria, sair com ele, ele começava a me xingar e me agredia verbalmente. Me chamava de várias coisas. Eu genuinamente acreditava que não fosse acontecer de novo, que ele falava aquilo porque estava se sentindo mal. Essas agressões continuaram e ele se tornou muito ciumento", segundo Marina.
"Botou um aplicativo para ver as mensagens do meu celular, sabia cada passo que eu dava, o que eu falava com outras pessoas”
Já no primeiro episódio de violência física, o agressor deu ‘sinais’ de acreditar que a namorada era posse dele.
“Eu estava na faculdade e gostava muito de um professor X. Ele entendeu como se eu tivesse apaixonada pelo professor. Ele me pegou pelo pescoço e eu fiquei atordoada, ele tentou me enforcar”, conta a jovem.
O ciclo se repetia com: “fazia e pedia desculpa”, levando a vítima a acreditar que ele “estava em uma semana ruim”.
“Eu queria dizer que a denúncia partiu de mim, mas não foi. Foram duas situações específicas que a Polícia interveio. A primeira eu ia sair com a minha irmã. Ele foi até a minha casa e ficou um tom de ameaça. Até aí eu queria protegê-lo, mas senti que ele também estava ameaçando a minha família. Outro episódio foi no Carnaval de 2019. Em determinado momento eu descobri que ele estava me traindo. Confrontei ele, ele ficou com muita raiva. Eu estava também totalmente desequilibrada, desestabilizada". Chegou a um ponto que ele me agrediu, me deu um murro no rosto. Nesse dia eu falei pra ele que ia na delegacia. Fui para a casa de uma amiga. Eu estava determinada a fazer a denúncia, bloqueei ele de tudo. Aí ele me mandou um e-mail pedindo para eu não denunciar, que ia acabar com a vida dele”.
“Muitas mulheres permanecem ao lado de seus agressores por motivações diversas: seja o medo, a vergonha ou mesmo a falta de recursos financeiros para sair do ambiente violento, sempre na expectativa de que essa situação de violência venha a cessar. Não se trata, portanto, de aceitação ou concordância com a violência”
SAÚDE MENTAL
A dependência psicológica do namorado levou Marina a tomar uma dose elevada de calmantes por conta própria e ser hospitalizada: “aí eu já tinha me afastado dos meus amigos, da minha família. Eu acreditei que ficar sem ele ainda seria pior”.
No hospital, recebeu apoio da família e acolhimento: “quando eu fiquei bem pedi a medida protetiva. Demorou muito para eu querer sair novamente, fazer novas amizades, voltar a viver. Durante três anos a minha vida era essa pessoa. Foi difícil voltar ao eixo”.
Já com a medida protetiva, Marina lembra que foi “cercada” pela mãe do agressor. Se aproveitando da fragilidade emocional da vítima, a mulher “fazia parecer como se eu estivesse acabando com a vida dele”.
A jovem chegou a ir à Delegacia de Defesa da Mulher para tentar remover a medida. Lá, ela conta, que a acalmaram e tentaram entender a situação, se havia alguma ameaça e explicar que não havia por que retroceder.
“Hoje eu não estou 100%. Essa história impacta ainda na minha vida hoje. Tenho insegurança, acho que em algum momento alguma coisa vai acontecer. Às vezes acho que não mereço alguma coisa boa. Ainda penso: meu Deus, como eu passei por essa situação toda", diz a vítima.
"Quando eu procurei a Delegacia de Defesa da Mulher eu me senti acolhida. Me explicaram algumas coisas, pontuar coisas que eu não tinha conhecimento sobre como funcionava a medida protetiva”
O sociólogo Alysson destaca que o acolhimento e políticas públicas são necessárias para fortalecer a rede de proteção. Romper o ciclo, como conseguiu a jovem, é possível a partir do fortalecimento e da articulação de uma rede que “precisa ser cada vez mais ampliada, especialmente no que diz respeito à prevenção”.
Nesta terça-feira, você lê a continuidade da reportagem sobre 'Violência Doméstica', com os números do judiciário.