Cavalo, correr boi: facção utiliza termos da vaquejada para despistar planos criminosos no Ceará
A Justiça Estadual recebeu a denúncia contra sete acusados de integrar a organização criminosa de origem carioca no Vale do Jaguaribe, no Interior do Ceará
"Esse cavalo é zerado, esse cavalo nunca bateu, esse cavalo já correu mais de 20 bois". Uma fala que aparentava tratar de uma vaquejada. Entretanto, para a Polícia Civil do Ceará (PCCE) e para o Ministério Público do Ceará (MPCE), fazia referência a mais uma ação criminosa da facção carioca Comando Vermelho (CV) na região do Vale do Jaguaribe.
Segundo a denúncia do MPCE, "cavalo", na linguagem da quadrilha, significa "arma de fogo"; e "correr boi" significa "execução de homicídio". Na conversa, os acusados Antônio Herculano Pinheiro Diógenes, conhecido como 'Cancela', e José Rafael Diógenes Cintra, o 'Cambado', lamentam o fato de a arma ter falhado ("batido") em uma tentativa de homicídio, em 2022, sendo que a mesma já havia sido utilizada em mais de 20 assassinatos.
A reportagem não localizou a defesa dos réus. O espaço segue aberto para futuras manifestações.
- 'Cancela': - Ei primo véi, tudo bom? Rapaz, primo. Sabe o que foi o negocio aqui do prateado. A porra de uma bala, macho, inchou dentro. Ai não roda o tambor, sabe? Ai quando for amanha, eu vou mandar lá o menino tirar e o bicho não tá com problema não. [...]
- 'Cambado': - Ah primo, foi a bala que inchou. Eu pensava que esse cavalo tinha derrubado o cavalo e tinha empenado a vareta entendeu? Porque você sabe que se empenar a vareta também ele trava, tendeu? Não, foi só isso aí, entendeu? O problema é pouco, viu? É pouco o problema. Homem, eu fiquei doidin quando esse cavalo bateu, macho. Esse cavalo é zerado, esse cavalo nunca bateu, esse cavalo já correu mais de 20 bois, esse cavalo faz ano que nós tem ele, entendeu? Esse cavalo nunca negou fogo.
"Ademais, examinando as transcrições anexadas aos autos, viu-se que a facção, quando do cometimento dos seus crimes, utiliza nomes fictícios, tais como cavalo (revólver), ração (munição), leite (cocaína), correr vaquejada/ correr boi (execução de homicídios), boi (vítimas desses homicídios), em alusão à vaquejada, esporte bastante praticado e enraizado na cultura local. Em virtude disso, a operação policial que levou à prisão dos seus líderes foi batizada de 'Boi Mobral'", resumiu o MPCE.
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Nove pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público do Ceará, no dia 16 de abril deste ano, por integrar a organização criminosa e por cometer outros crimes - como tráfico de drogas e posse irregular de arma de fogo. A Justiça Estadual recebeu a denúncia contra sete acusados, que viraram réus, no mês de junho.
Entretanto, o processo contra um deles foi desmembrado e a Vara de Delitos de Organizações Criminosas ratificou o recebimento da denúncia contra os outros seis réus, no último dia 12 de novembro. O colegiado de juízes que atua na Unidade também marcou audiência de instrução e julgamento do processo, para o dia 16 de dezembro deste ano.
Quem são os réus e por quais crimes:
- Antônio Herculano Pinheiro Diógenes, o 'Cancela': integrar organização criminosa, tráfico de drogas, associação para o tráfico, posse irregular de arma de fogo de uso permitido e adulteração de sinal identificador de veículo;
- Antônio Hércules Pinheiro Diógenes: integrar organização criminosa e posse irregular de arma de fogo de uso permitido;
- Anderson Meireles Cavalcante, o 'Cremosinho': integrar organização criminosa e posse irregular de arma de fogo de uso permitido;
- Jardson Pinheiro Diógenes, o 'Dadinho': integrar organização criminosa, posse irregular de arma de fogo de uso permitido e adulteração de sinal identificador de veículo;
- Jeferson Bezerra da Costa: integrar organização criminosa;
- Leonardo Rodrigues de Sousa, o 'Uá': integrar organização criminosa;
- José Rafael Diógenes Cintra: integrar organização criminosa, tráfico de drogas, associação para o tráfico, posse irregular de arma de fogo de uso permitido e adulteração de sinal identificador de veículo (processo desmembrado).
Vaquejada ou planos criminosos?
Conforme a denúncia do Ministério Público, o grupo criminoso ligado ao Comando Vermelho "comanda o crime em Jaguaribe" e "é bastante organizado, tendo 'Cambado', como já dito, como o líder e mentor intelectual, o Herculano o 'secretário', organizador da execução dos crimes, e Marcelo como homem de confiança do 'Cambado' para estratégia e cometimento dos homicídios".
"Marcelo", em questão, é Marcelo Gomes da Silva, morto em uma ação policial na zona rural de Russas. Antônio Herculano e Antônio Hércules são irmãos gêmeos.
A Polícia Civil teve acesso a conversas dos investigados, extraídas a partir de ordem judicial. Os diálogos apontavam para conversas sobre vaquejada e criação de gado e de boi. Porém, os investigadores decifraram os códigos utilizados pela quadrilha e chegaram a planos criminosos.
Em uma conversa com 'Cancela', o acusado conhecido como 'Cremosinho' afirma que está procurando um motociclista para levá-lo para matar dois homens, segundo o MPCE. "Tô chegando poraí, meu patrão, tô aqui em Jaguaretama ainda, macho, o Caba aqui tá só enrolando para dirigir pra mim, tem dois bois dando bobeira direto, mas o caba não quer correr, eu já tentei ontem invadir a casa lá, mas o caba desligou foi a internet, para invadir a casa do homi", disse 'Cremosinho'.
"O boi ontem bebendo direto, aí o moto-táxi aqui que é para pegar para ficar rodando pra cima e pra baixo, o caba não quer, não quer dirigir. E eu não posso quebrar o boi e eu não posso ir direto para Jaguaribe, aí a polícia me pega no meio do caminho", completou o réu.
Os investigadores também chegaram a mensagens em que 'Cambado' oferece cocaína (leite), armas (cavalos) e munições (rações): "Cho dizer, primo. Cê vai querer as dez lá. Você vai querer o que? Vinte é? De Leite?"; "Vamos ajeitar pra entregar os cavalos mais tarde, viu? Os dois cavalos e as rações tudinha, viu? Vai ser entregue o cavalo, o "M" vai chegar em você, o "M" aí, viu?".
O que dizem as defesas?
A reportagem não conseguiu localizar as defesas dos acusados. No entanto, em documentos obtidos pela reportagem, os advogados negam o cometimento dos crimes. A defesa de Antônio Herculano Pinheiro Diógenes apresentou Defesa Prévia em que afirma que, "ao analisar minuciosamente a denúncia e todo o conjunto probatório que a acompanha, chega-se à conclusão de que, pelo menos até o momento presente, não há preliminares que mereçam ser arguidas, da mesma forma, não têm-se documentos ou justificativas que necessitem serem adicionados".
A defesa de Jardson Pinheiro Diógenes ratificou que, "ao analisar os autos, verifica-se que não existem provas suficientes que induzam à conclusão de que o Denunciado tenha cometido os delitos descritos na denúncia. Do que se infere dos depoimentos colhidos no inquérito policial, constata-se a ausência de provas suficientes para o oferecimento da denúncia".
Já o advogado de Antônio Hércules Pinheiro Diógenes também reforçou que "a atenta leitura de todos os elementos encartados aos autos indica a impossibilidade de que a exordial acusatória prospere. Isso porque, não há justa causa para a instauração da persecução penal, vez que inexistem elementos capazes de revelar consistentemente a existência de indícios mínimos de autoria dos crimes em desfavor do Defendente".
A Defensoria Pública Geral do Ceará, que representa a defesa de Jeferson Bezerra da Costa, Anderson Meireles Cavalcante e Leonardo Rodrigues de Sousa, afirma que "os fatos atribuídos ao acusado na denúncia não representam na integralidade a expressão da verdade. Destarte, reserva-se no direito de aguardar a fase das alegações finais para apreciar o meritum causae, quando restará comprovado que os fatos não se deram nos termos da peça inaugural".