‘Mamãe, papai te faz chorar’: vítima de violência fala sobre momento que decidiu romper relação
Se “tudo” para a Polícia começa com o registro de um Boletim de Ocorrência, para a mulher vítima de violência doméstica, este é o passo que pode pôr fim a um ciclo de sofrimento. “Denunciar é reviver”, disse Helena (nome fictício), 40, sentada em uma cadeira em frente à Delegacia da Mulher de Fortaleza (DDM) enquanto aguardava ser chamada para, pela segunda vez, denunciar o ex-esposo.
Romper o ciclo de violência requer apoio dentro e fora de casa. No caso de Helena, foi o comportamento do filho, de três anos, que alertou a mulher para que “algo aqui está muito errado”.
Foram 20 anos convivendo com o mesmo homem. Destas duas décadas, há muito tempo a relação já vinha definhando. Mas Helena, assim como tantas, custou a acreditar que o comportamento do esposo não era ‘ação isolada’: “quando alguém bate na parede para não bater em você, quando alguém quebra um prato para não bater em você… ou até mesmo quando alguém te agride de forma verbal é mais difícil de identificar que ali você está sendo vítima de violência”.
“É complicado identificar quando a violência não é física. A gente tem uma cultura de achar que: ah, fez isso porque está irritado, fez isso porque não vem passando bons momentos.
A gente tende a acreditar que se fez isso é porque a mulher deu algum motivo e assim vamos deixando arrastar e não percebemos a violência sofrida. Eu percebi que não era só um dia ruim quando meu filho de três anos chegou perto de mim e disse: mamãe, não vai ficar perto do papai não. O papai te faz chorar”, contou a vítima, em entrevista ao Diário do Nordeste.
“Uma criança de três anos dizer isso? Imagina aí. Eu vi que ali tinha (alguma) coisa de errado. Meu filho começou a querer brigar com o pai dele para me defender. Amigos se afastaram sem suportar como eu era tratada. Meu próprio ex-sogro saiu da minha casa uma vez dizendo: vou embora, porque não estou suportando a forma como o meu filho vem tratando você”, contou.
Em poucos minutos de conversa, Helena se culpa pela “demora” em ter denunciado. Se culpa até mesmo e se questiona ao argumentar que: “cheguei a pensar, mas logo eu? Logo eu que me considero uma pessoa tão esclarecida, que já acolhi outras mulheres?”.
“Denunciar é reviver”, disse a mulher em entrevista ao Diário do Nordeste, enquanto estava na ‘porta da Delegacia da Mulher’ em busca de uma medida protetiva
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA
A primeira ida à Delegacia de Defesa da Mulher foi em 2023. O casal já estava separado há três anos, mas o distanciamento físico não foi suficiente para cessar os crimes.
“Eu ainda recebo mensagens ofensivas. Me separei por isso e me vejo ainda sofrendo. É complicado vir aqui, é muito dolorido reviver. Muitas vezes eu quero calar, quero esquecer, mas aqui eu me senti acolhida. Por mais que já tenham passado três anos, é uma ferida que quando eu falo, quando eu toco, fica exposta”.
Hoje, a busca é por paz. Enquanto ela escuta do agressor que “não precisa de tudo isso”, reconhece a necessidade de manter distanciamento e de, até mesmo, uma medida protetiva na tentativa de que “as coisas finalmente melhorem”.
“Já quis botar panos quentes, perdoar, achar que não ia acontecer mais, tudo isso para viver em paz, porque é o pai dos meus filhos e isso não vai mudar. Mas eu cheguei a um ponto que preciso fazer algo por mim mesma. A partir do momento que me separo devido a um tipo de violência e isso fica se perpetuando, usando o vínculo que nós temos que são as crianças…”
Segundo a titular da Delegacia da Mulher de Fortaleza, Giselle Martins, em 80% dos casos de feminicídio as vítimas não tinham medida protetiva. “As medidas protetivas de urgência são providências garantidas por lei às vítimas de violência doméstica e têm a finalidade de garantir a proteção, a integridade ou a vida de uma menina, adolescente ou mulher em situação de risco”, alerta a Polícia Civil do Ceará.
SOBREVIVÊNCIA
A versão dos agressores se repete: “não precisa disso tudo”, disse o ex-marido de Helena e muitos outros, na tentativa de menosprezar os feitos criminosos.
O pedido de medida protetiva feito pela vítima foi mais uma tentativa de respiro em meio ao sofrimento: “meu foco é ter paz, tenho uma descrença não só no homem, mas no ser humano como um todo”.
Para quem, durante anos, se privou de denunciar por pensar: “isso vai passar”, hoje, Helena reconhece precisar de ajuda para “dar um basta no sofrimento”.
“Hoje eu tenho uma descrença não só no homem, mas no ser humano. Como pode um amor ser uma obsessão? Um amor que gosta de maltratar o outro. Se hoje eu preciso da medida protetiva é para respirar e me proteger”.
Na próxima reportagem da série sobre 'Violência Doméstica' leia sobre a história de Marina, uma jovem que chegou a tentar suicídio após ser vítima de agressões.