Quem são os assexuais, pessoas para quem o sexo não importa ou importa bem pouco
Pesquisas apontam que 7,7% das mulheres e 2,5% dos homens brasileiros, na faixa de 18 a 80 anos, não se interessam por relações sexuais; entenda o conceito
Nem escolha nem doença. O “A” da sigla LGBTQIAP+ é considerado orientação sexual. A assexualidade é uma das formas de manifestação da sexualidade humana baseada na falta de atração sexual por pessoas. Apesar de essa ser uma das definições mais bem aceitas do tema, ela não abrange todos os que adotam o rótulo. Conceito em construção.
De acordo com Francisco Ilo, psicoterapeuta e terapeuta sexual de jovens, adultos e casais, trata-se de um termo “guarda-chuva”. Nesse caso, é utilizado para se referir e identificar aqueles que não se atraem – ou se atraem pouco ou ainda em situações muito específicas – por outras pessoas. É totalmente diferente de possuir disfunções sexuais (DS), desejo sexual hipoativo ou transtorno do interesse. Estes ocupam a categoria de diagnósticos.
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“Para que você entenda melhor, as disfunções sexuais são caracterizadas pelo sofrimento que a própria questão traz e pelas ‘causas’ biológicas, sociais e psicológicas na vida de cada pessoa com tal DS. Já o sofrimento da pessoa assexual está geralmente na incompreensão e pressão social sobre a relação com o sexo. Além disso, não há consenso de causa para a assexualidade, como também não há consenso para a causa da heterossexualidade”, situa.
Sendo assim, ao referenciar a assexualidade como um termo guarda-chuva, o estudioso quer dizer que, sob essa nomenclatura, abrigam-se diversas pessoas e práticas. Existe quem não sente atração por ninguém; somente por pessoas com quem desenvolvem profunda ligação emocional; e ainda os que se apaixonam, namoram e casam, mas não fazem sexo.
Talvez ajude a entender melhor essa variação quando diferenciamos orientação sexual de orientação romântica/afetiva, e quando distinguimos identidade e comportamento. Vamos lá?
Formas de sentir
Nas palavras do estudioso, orientação sexual diz respeito ao interesse sexual que sentimos com base no sexo/gênero da outra pessoa. Pansexuais, por exemplo, se atraem por todos os gêneros/sexos; heterossexuais por aqueles de gênero/sexo oposto ao seu. Nesse sentido, a assexualidade se encaixa em algo específico: há pouco, muito circunstancial ou nenhum interesse sexual.
Por sua vez, quando o assunto é orientação romântica, o foco é no interesse em se relacionar romanticamente e afetivamente com outras pessoas. Geralmente define-se de forma semelhante à orientação sexual: heterorromântico, homorromântico e birromântico/panromântico.
“Essas nomenclaturas não são fixas e podem ser definidas e redefinidas a depender das culturas. Mesmo no Brasil, podemos achar pessoas com experiências parecidas, mas que se denominam de formas diferentes”, percebe Francisco Ilo.
Existem, assim, assexuais românticos – que possuem interesses românticos e se envolvem afetivamente com outras pessoas; e assexuais arromânticos, com nulo interesse romântico em outras pessoas e que não encontram sofrimento nisso. Alguns também chamam essas pessoas de assexuais estritos.
Detalhe curioso: mesmo sem o interesse e a prática sexual, assexuais românticos podem ingressar em relacionamentos, seja com pessoas também assexuais ou com pessoas alossexuais – como comumente se chama pessoas que sentem interesse sexual por outras pessoas.
Por fim, há uma zona mais cinza, onde as coisas não são facilmente delimitadas. Em geral, nela estão os que praticam sexo, seja em determinadas circunstâncias ou com pessoas específicas. Um exemplo mais facilmente reconhecido é o das pessoas que se intitulam demissexuais, ou seja, que somente sentem atração sexual quando há envolvimento emocional profundo.
Abaixo, um pequeno glossário esquematizado por Francisco Ilo:
Orientação Sexual
- Bissexual/pansexual
- Homossexual
- Heterossexual
- Assexual
Orientação romântica
- Birromântica/panromântica
- Homorromântica
- Heterorromântico
- Arromântico
Assexual
- Romântico
- Arromântico
- Zona cinza
Questão de espectro
A comunidade assexual ganhou mais visibilidade nos últimos anos sobretudo devido ao Big Brother Brasil 20. Na edição, o participante Victor Hugo declarou possuir essa orientação sexual, atiçando a curiosidade do público para saber mais sobre o tema.
Alessandra Barros, 23, também se encaixa nesse perfil. A cearense, estudante de Psicologia, conceitua assexualidade como um espectro. “O que existe em comum em todas as formas de ser assexual é sentir atração de uma maneira não-normativa, isto é, que a gente entende como ‘comum’”, contextualiza.
Ela se descobriu assim bem tarde, muitos anos depois da identificação como LGBTQIAP+. Pessoalmente, o “normal” era exatamente o que sentia, ou seja, a falta de atração sexual – ausência tida como significava atração, independentemente de gênero, por qualquer pessoa. “O que acho muito engraçado hoje em dia é porque é literalmente o contrário. Pra quem se via como pansexual antes, passar a se entender assexual é hilário”, ri.
A estudante concorda que atração sexual e romântica são coisas bastante diferentes. Não necessariamente quem não se atrai sexualmente não se apaixona. Por isso mesmo, diante da incompreensão até mesmo dos pares com quem se relaciona, Alessandra situa alguns desafios nessa dinâmica. “Já estive em relacionamentos, e é sempre uma ansiedade, devo dizer”.
“Isso porque pessoas alossexuais veem sexo como algo mega importante, que diz muito sobre uma relação. Inconscientemente, muitos que namoram assexuais esperam que depois de um tempo nós ‘mudemos’, como se fosse um filme ou algo do tipo. E se você não mudar, se não retribuir o desejo da outra pessoa, ela pode pensar que você não gosta dela o suficiente. É bem complicado. Ainda não tive a ‘oportunidade’ de ter algo com outra pessoa também assexual, mas provavelmente me deixaria menos ansiosa”.
Falando-se de comentários preconceituosos, o panorama fica ainda mais complicado. Um dos que sempre surgem é: “Você só é assim porque não encontrou a pessoa certa, porque não gostou de verdade de alguém”. De fato, Alessandra até pode não ter encontrado a “pessoa certa” ainda – conceito até refutado por ela – mas já aconteceu de gostar realmente de alguém e continuar sendo assexual, driblando a opinião de quem achava o contrário.
“Quando converso sobre isso, a maioria das pessoas não entende a diferença entre atração sexual, desejo (ou libido) e afetividade. E é muito interessante porque você pode ser assexual e ter uma libido ‘normal’, sem precisar concretizar esse desejo com o outro. Pode ser assexual e gostar de BDSM (sigla para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo). Pode ser assexual e ter uma vida sexual ativa, porque a necessidade não é a única coisa que move as pessoas. Quem disse que você precisa ter fome pra comer uma sobremesa depois do almoço? Nada impede!”.
Números e análises
Conforme o Programa de Estudo da Sexualidade (ProSex), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 7,7% das mulheres e 2,5% dos homens, na faixa de 18 a 80 anos, não se interessam por relações sexuais. Para a coordenadoção da pesquisa, trata-se claramente de assexualidade.
No caso específico da masturbação, por exemplo, segundo Alessandra Barros você não precisa de atração sexual para isso. Apenas da libido mesmo, de um desejo, de um momento propício. “Não é algo que se relaciona diretamente com a assexualidade (ou alossexualidade) de alguém”, pontua a estudante.
“Acho que o que falta na sociedade é menos extremismo e mais empatia, mais vontade de enxergar e aceitar o outro. Nossa realidade viaja muito entre conservadorismo e hipersexualidade, preto e branco, sem considerar o que pode estar à parte ou entre os dois”, completa, afirmando se sentir confortável apenas como assexual mesmo, tendo em vista as tantas identidades mais específicas.
O psicólogo Francisco Ilo não conhece nenhuma política pública específica voltada para assexuais. No entanto, a maioria das pessoas que se reconhecem assim comentam ter encontrado apoio, respostas e senso de comunidade em perfis e grupos online, tirando dúvidas, trocando experiências e fazendo os próprios relatos.
Em Fortaleza, há espaços como o Centro Estadual de Referência LGBT+ Thina Rodrigues, voltado para obter informações sobre direitos no Ceará ou receber orientações sobre como denunciar casos de LGBTfobia; de violências doméstica, familiar e institucional; discriminação em ambientes públicos ou privados; negação de atendimentos e outras violações de direitos.
“É algo que acho interessante e, portanto, incentivo, na medida em que você se sinta confortável. É preciso falarmos sobre isso ou a assexualidade continuará sendo um mistério, ou seja, má compreendida”. Inclusive, não há consenso sobre as causas e os fatores de nenhuma orientação sexual humana.
Entender-se assexual
Antes de se visualizarem como assexuais, as pessoas com essa orientação geralmente passam por exames e consultas com diversos profissionais da saúde à procura de um problema. Nessa busca, normalmente não encontram alterações hormonais, disfunções sexuais nem situações nas próprias histórias de vida que se relacionem de forma relevante com a orientação sexual.
No caso de Lune Alves, 22, não houve esse processo, porém. Ela se descobriu assexual há cerca de um ano a partir de diálogos. “Por muito tempo, achei que era qualquer coisa, sabe? Só não estava afim de sexo. Mas, conversando com outras pessoas e tendo maior noção do que era ser assexual, entendi que me encaixava naquilo e que fazia sentido para mim”.
No momento em um relacionamento, a estudante de Psicologia se diz também pansexual – sente atração sexual, romântica ou emocional em relação às pessoas, independentemente do sexo ou identidade de gênero. E destaca que o mundo é um lugar que cobra muito o sexo. Vivenciar isso sempre foi muito difícil para Lune porque as pessoas com quem se relacionava eram alossexuais, ou seja, propensas ao desejo sexual.
“Era uma cobrança muito grande para ter relações sexuais o tempo inteiro, com frequência e intensidade muito grandes, e não é o que eu sinto. Hoje, namoro com uma pessoa que também é assexual. O que a gente costuma fazer é conversar bastante. Entender as relações do mundo e como elas se configuram; que a gente não precisa levar o sexo como um tabu; e que podemos, sim, impor nossos limites. O mundo não tem que ditar o que vamos fazer com os nossos corpos e vidas”.
Além do espectro mais geral, na frondosa árvore da diversidade humana Lune também se define como demirromântica – capaz de sentir atração romântica somente quando há um vínculo emocional/psicológico/intelectual com outra pessoa – e aceflux, alguém cuja orientação sexual flutua sobre o espectro assexual. Isso significa que há dias em que ela se sente como demissexual, outros como greysexual (com atração sexual raramente ou de forma fraca).
Assim, pode se sentir como assexual estrita ou não. Às vezes também como alossexual. É sobre a forma ou intensidade que sente atração sexual. “Falta muito foco e discussão sobre o tema”, opina. “Uma forma de driblar é fazendo grupos de estudos sobre temáticas relacionadas à afetividade; debater sobre isso em grupos que já existem e em rodas de amigos e escolas, por exemplo”.
Para Francisco Ilo, a assexualidade nos ensina sobre a normalidade e a naturalidade do sexo. Não fazê-lo não é nenhuma sinalização de virtude estratosférica, nem necessariamente um problema. “A sexualidade é um aspecto da vida que todos experimentamos de forma diferente. Para alguns ele é bem central, para outros é tangente ou inexistente”.
Alessandra Barros, por sua vez, reflete sobre a importância de validar o “A” da sigla da diversidade. “É quase sempre esquecido, mas existe muito apoio também. Quem é da comunidade sabe as dores de viver em um mundo que te obriga a ser o que não é. Fazer parte dela é não se sentir só, e é bonito saber que outra pessoa pode te enxergar e saber que você tá ali com ela. É doloroso, mas eu não trocaria isso por nada no mundo. São conexões que perpassam o entendimento comum”.