Quando artistas se tornam professores, a aula é de liberdade; conheça cearenses que repassam a arte

No Dia do Professor, o Verso conta histórias de pessoas que ensinam os saberes artísticos fortalecedores do humano e da cultura

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: A bailarina Katiana Pena fundou um Instituto na periferia de Fortaleza que atende 840 crianças e adolescentes ávidas pela dança
Foto: Divulgação

Vivemos um pouquinho mais toda vez que aprendemos. O mesmo vale para quando repassamos conhecimento. E se esse saber encontra a arte, o processo se torna ainda mais infinito. É quando compreendemos que professores não morrem jamais porque o legado se transforma em beleza e força. Em registro permanente da memória e da História.

Marinêz Pereira do Nascimento sabe muito bem disso. Foi por meio dela que a dança do Coco na região do Cariri cearense pôde chegar a outras praças, atingindo pessoas de menor e de maior idade. Mais que passado, o costume é prova viva de um presente ativo e pulsante.

Legenda: Mestra de Coco no grupo Frei Damião, em Juazeiro do Norte, Marinêz Pereira do Nascimento repassa saberes em eventos, escolas e universidades
Foto: Arquivo pessoal

“O maior prazer que tenho é repassar conhecimentos sobre a minha origem e história. Isso já vem desde muito cedo”, conta a bordadeira, cozinheira e Mestra de Coco no grupo Frei Damião, em Juazeiro do Norte. Ao telefone, é possível sentir o vigor não apenas da fala, mas dos percursos trilhados por Marinêz. Ela é toda alegria pela fundação, em 2006, do projeto que reúne 22 mulheres em prol da conservação da cultura na região, e além dela.

O movimento é germinado nas reuniões e apresentações empreendidas pelas brincantes e, então, ganha também escolas e universidades do entorno, fazendo do saber hereditário e intuitivo um patrimônio comum a todos. 

“Os desafios nesse processo são vários. Os homens da minha própria família acham que eu, por ser mulher, não posso compartilhar os saberes. Mas temos que vencer os obstáculos em prol da educação e da arte. Eu me sinto muito bem ao compartilhar o que sei com as pessoas porque o nosso Brasil é muito rico em cultura e cada um tem uma história pra contar”.
Marinêz Pereira do Nascimento
Bordadeira, cozinheira e Mestra de Coco no grupo Frei Damião

Para a Mestra, impressiona o quanto os jovens, principalmente, ainda desconhecem princípios básicos do panorama cultural em que estão inseridos. Por isso, ao adentrar ambientes tradicionais do conhecimento, são essas fronteiras que Marinêz quer diluir. 

“Sempre vejo como uma oportunidade de esses alunos brincarem comigo, interagirem com o grupo. É uma forma de manter viva a tradição e também de alimentar neles o gosto pelo conhecer. Tem educadores que passam o dia na sala de aula e tem esse outro tipo de professor que está na própria casa, com seus saberes: são os mestres e as mestras”.

Legenda: O grupo Coco Frei Damião foi fundado pela Mestra Marinêz e conta com 22 mulheres, de 5 a 82 anos de idade
Foto: Arquivo pessoal

Não à toa, durante a pandemia de Covid-19, o Coco Frei Damião não parou. Por meio da realização de lives, pessoas de todas as partes do mundo puderam acessar os detalhes de uma travessia costurada há muitos anos e por muitos pés e mãos. Nesse movimento, a Mestra Marinêz continuou a esticar os fios da memória, tornando-se inclusive professora de um curso de pós-graduação. 

Intitulada “Saberes Populares para a Arte e a Educação através das vivências com a Carroça de Mamulengos - O que nós podemos fazer por nós mesmos?”, a formação é empreendida pela agremiação caririense mencionada na designação. “Me sinto maravilhosamente agradecida a Deus por eu também estar nessa lista como professora passando meus conhecimentos, que são a minha história e a história do Coco”, festeja a Mestra.

Leitura do mundo

Coordenadora do curso em questão, a brincante, atriz, produtora, terapeuta e mãe Maria Gomide é outra pessoa cujo enlace com a educação e a arte promove novos olhares e fazeres. Ela nasceu em uma companhia artística, a Carroça de Mamulengos, projeto que se tornou família e escola. Foi onde ela aprendeu a ler e escrever as palavras e o mundo, além de andar de perna de pau, cantar, dançar, brincar de bonecos e ser quem hoje é. 

“A arte na minha vida nunca esteve dissociada da educação. Cresci ouvindo meus pais dizerem que não estavam nos criando (eu e meus irmãos) para sermos artistas e, sim, para sermos pessoas capazes de construir o seu próprio caminho. No meu olhar, todo artista é um professor, pois está ensinando o que faz. Veja o mundo: o que as pessoas de modo geral estão cantando? Ou dançando? Ou vestindo? Quem ensinou? Cultura é formação, e os artistas têm uma responsabilidade muito grande, pois ocupam lugar de exemplo na sociedade”, observa.

Legenda: Maria Gomide cresceu vivenciando a arte de forma itinerante pelo Brasil, de modo que a pergunta mais ouvida por ela sempre foi: “Qual a escola que você estuda?”
Foto: Divulgação

Segundo ela, quando um artista se propõe a dar aula, a primeira coisa que muda é o ponto de vista do espectador – uma vez que, quando se diz que fará um espetáculo, quem assiste é uma plateia; quando se diz que ministrará uma aula, quem assiste é um estudante. Essa dinâmica, conforme Maria, abre a consciência para perceber que algo está sendo ensinado. 

“O campo da educação traz a questão de lidar com métodos, fórmulas e muitos conceitos a respeito do desenvolvimento cognitivo. O desafio do artista é entrar nesse universo como artista, aquele que tem um olhar naturalmente inventivo, criativo, em busca da sabedoria, do saber e da experiência. É trazer para a sala de aula a intuição, a conexão e a percepção mais aguçada, que é o que pode acender a luz da vontade de saber dentro de cada pessoa”.
Maria Gomide
Brincante, atriz, produtora, terapeuta e mãe

Maria cresceu vivenciando a arte de forma itinerante pelo Brasil, de modo que a pergunta mais ouvida por ela sempre foi: “Qual a escola que você estuda?”. Ela não frequentava  esses espaços, e sabia disso. Logo, também se perguntava onde estava o próprio recanto de conhecimento.

A resposta veio com a compreensão de que nasceu dentro de uma seara formativa, o que a fez começar a pesquisar os processos de aprendizados nas vivências da Carroça de Mamulengos – trupe cearense de formação familiar com 45 anos de trajetória.

Legenda: A brincante, atriz, produtora, terapeuta e mãe Maria Gomide, da Companhia Carroça de Mamulengos, situa que todo artista é um professor
Foto: Divulgação

Aprofundamentos

O resultado desse mergulho se traduziu em dezenas de espetáculos e ações e, mais recentemente, também no curso de pós-graduação ofertado pela agremiação. Os integrantes foram convidados pela Casa Tombada (SP) para conduzir o percurso de ensino. A primeira turma começou em março deste ano e as inscrições para a segunda turma estão abertas, com as aulas iniciando em março de 2022.

“O curso é conduzido pela Carroça de Mamulengos e contamos com vários mestres e mestras da cultura popular, a exemplo de Mestre Antonio e Mestre Raimundo (Reisado dos Irmãos), Mestra Marinêz, Mestre Nena, além de vários outros professores convidados. Começou durante a pandemia, acontece de forma online e está sendo uma jornada incrível”, vibra.

Eles estudam os saberes e fazeres culturais, a vivência como forma de aprendizado, além de qual o papel do educador que vive o que ensina. Em resumo, algo voltado para a formação em todas as áreas do conhecimento, pois se propõe a apontar um caminho que leve a uma aproximação maior entre o que se pensa e o que se vive, o que se fala e o que se faz.

Legenda: A Companhia Carroça de Mamulengos é uma trupe cearense de formação familiar com 45 anos de trajetória
Foto: Divulgação

Por isso mesmo, neste Dia dos Professores, a fala de Maria Gomide é clara e poderosa: “Os educadores podem ensinar tudo o que o ser humano precisa aprender para viver bem, em paz entre os seus e a natureza. Assim, que cada professor encontre no olhar de um estudante a força necessária para seguir semeando o conhecimento. É ele o caminho para a sabedoria; a sabedoria é a luz que devemos buscar”.

Retribuição

Do Cariri para Fortaleza, a máxima ecoa no semblante de Katiana Pena. Bailarina com farta experiência no segmento, ela se tornou professora na área movida pelo sentimento de gratidão, e, ao mesmo tempo, pela necessidade de retribuir o que a atravessou em sala de aula. 

“O desejo de poder orientar os caminhos de outras pessoas foi latente. Eu sempre soube que iria ser professora. Me encontrei em sala de aula e quis entrar nesse universo tão importante, responsável por mudar tantas vidas. Comecei a lecionar em 2003, e tive essa oportunidade por meio do movimento de crianças que vieram da minha mesma realidade. Isso me motivou ainda mais a estudar, me capacitar e ousar nas ferramentas que desenvolvo. Às vezes, penso que nasci professora”, conta.

Legenda: “O desejo de poder orientar os caminhos de outras pessoas foi latente. Eu sempre soube que iria ser professora", conta a bailarina Katiana Pena
Foto: Divulgação

Na visão dela, o maior desafio nessa dinâmica é fazer com que a metodologia desenvolvida chegue efetivamente aos estudantes da forma mais completa possível. Um outro, igualmente importante, é driblar o pouco investimento que existe para o ensino de dança e balé. “É uma área que requer muita disciplina e entrega, estudo constante e metodologias”, observa.

“Outro ponto é o estereótipo e o preconceito. Espera-se que uma professora de balé seja branca, pele tratada, magra. Infelizmente, os artistas da periferia sofrem muito por não se encaixarem nesse ‘padrão’ esperado. Contudo, estamos aqui para desconstruir isso e mostrar excelência”.
Katiana Pena
Bailarina e professora

A verdadeira realização para Katiana é ver o resultado do aluno na sala de aula, conseguindo que eles também alcancem passos para além das paredes da escola, se firmando como cidadãos preparados para enfrentar os obstáculos da vida. Felizes, disciplinados e, portanto, satisfeitos nas trajetórias pessoal e profissional.

Transformação e impacto

Fundadora do Instituto Katiana Pena – organização da sociedade civil sem fins lucrativos surgida em 2015, localizada no bairro Granja Lisboa – a bailarina e professora afirma que o projeto foi criado com a motivação de ela se ver nos estudantes por meio dos movimentos, e também pelo desejo de percebê-los formadores. 

Nesse sentido, os esforços foram voltados para formar bons profissionais para a linha de frente, ter um bom espaço, trazer metodologias que dialoguem com a comunidade onde o Instituto está inserido e, principalmente, que os pequenos bailarinos se sentissem bem naquele lugar. Atualmente, o IKP atende 840 alunos.

Legenda: Para Katiana Pena, o mais importante na trajetória é transformar e impactar a vida de centenas de pessoas por meio daquilo que ela sempre acreditou: a dança
Foto: Divulgação

“O mais importante é transformar e impactar a vida de centenas de pessoas através daquilo que sempre acreditei: a dança. Potencializar essa arte na minha comunidade é um privilégio. Me sinto a pessoa mais completa, liberta, inspirada. É um sentimento de dentro pra fora”, emociona-se. 

“Podemos festejar o Dia dos Professores reverenciando esses profissionais, legitimando essa área tão importante. Valorizando um papel tão essencial na sociedade”. Percursos que, aliados à arte e, portanto, ao mais profundo do ser humano, promovem aulas de afirmação e contentamento. De liberdade.

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