Projeto voluntário Cabinhas Leitores impacta vida de crianças da periferia com diversão e arte

Rodas de mediação de leitura, empréstimos, debate e até lanche fazem parte do cotidiano da ação, com biblioteca comunitária localizada no bairro Padre Andrade

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Equipe à frente do coletivo convida ao diálogo pequenos e grandes leitores, além de realizar várias outras atividades
Foto: Fabiane de Paula

Você é criança e mora na periferia de Fortaleza. A cidade parece inacessível – shoppings, cinemas, livrarias. Mas às vezes basta dobrar a esquina para o universo aumentar. No bairro Padre Andrade, essa realidade acontece todos os dias e tem ganhado cada vez mais lugares de forma revolucionária: transformando vidas por meio da literatura.

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Trata-se do Cabinhas Leitores. O projeto compreende coletivo e biblioteca comunitária de modo a prover arte, cultura e vivências para pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica. O foco são crianças, mas o raio de alcance não se restringe somente a elas. Vai da família à escola, passando pelo modo como passam a enxergar as próprias potencialidades.

“A iniciativa surgiu em 2012 na cidade de São Paulo, mas foi ressignificando a existência ao longo dos anos, ainda que sempre baseada em duas premissas”, introduz a mediadora de leitura Tiaia Tavares, 37. São elas: o poder transformador da literatura no desenvolvimento crítico e cidadão; e a compreensão de que a atuação da sociedade civil possui caráter fundamental para desenvolvermos o mundo que queremos.

Legenda: Iniciativa atende crianças neurodivergentes, cadeirante e três imigrantes – duas venezuelanas e uma peruana
Foto: Fabiane de Paula

Quando chega em Fortaleza, no ano de 2017, o programa ganha o nome que tem – alusão à palavra “cabra”, utilizada para se referir a alguém como em “cabra da peste” ou “cabra macho”. “Cabinha” é o substantivo feminino diminutivo desse vocábulo, jeito amoroso de chamar os pequenos cearenses – principalmente os nascidos no sertão.

A partir de 2022, outro grande passo: a iniciativa começou a atuar majoritariamente em bairros periféricos da cidade. Foi quando viu despertar ainda mais revoluções. O esquema é simples, mas importante: semanalmente, crianças atendidas pelo projeto levam um livro para casa e leem com os próprios cuidadores – não necessariamente pais ou responsáveis legais.

Legenda: Projeto compreende coletivo e biblioteca comunitária de modo a prover arte, cultura e vivências
Foto: Fabiane de Paula

Na sequência, a equipe à frente do coletivo convida ao diálogo pequenos e grandes leitores, além de realizar diversas outras atividades. Entre elas, estão roda de mediação de leitura, debate, diálogo sobre a cultura regional a partir de personalidades, lanche e atividade lúdica e/ou artística (partidas de xadrez, Uno, jogo da memória, confecção de pulseiras etc).

Expandir horizontes

Visitas a espaços culturais – do Museu da Imagem e do Som à Caixa Cultural, passando pela Pinacoteca do Ceará, Theatro José de Alencar e Biblioteca Pública do Estado – também surgem para ampliar horizontes. O próximo passeio será neste domingo (2) para o Cineteatro São Luiz. Os pimpolhos assistirão a um concerto de música clássica.

Para tanto, o coletivo custeia integralmente ingressos, transporte e merenda. No próprio dia a dia do Cabinhas, o investimento é grande para que tudo fique especial. Cada criança/jovem frequentador, por exemplo, recebe uma farda (camiseta) e uma pasta com zíper e etiqueta personalizada para o transporte dos livros emprestados da biblioteca.

Legenda: Uma criança ajuda a outra a ler na biblioteca dos Cabinhas
Foto: Fabiane de Paula

“O coletivo foi idealizado por Rafael Cipriano Torres e Tiaia Tavares. Atualmente, é gerido por três pessoas – os dois citados, além de José Maria Torres –  e operacionalizado pelo nosso corpo de voluntários. Nossa estrutura organizacional é cem por cento composta por eles, os quais possuem variadas origens, idades e fenótipos”.

Eleger o bairro Padre Andrade como sede da biblioteca, em janeiro deste ano, foi imperativo: foi justamente nela que Rafael Cipriano nasceu, cresceu e morou até ir para o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). A trajetória do engenheiro de 38 anos é testemunho de que a educação e a cultura mudam destinos e realidades. 

Legenda: Além de atividades envolvendo livros, ação empreende outros momentos lúdicos para os participantes

Mas há desafios. “Entre eles, está a sistemática falta de acesso a livros ‘de qualidade’ que não subestimem a inteligência dos leitores, principalmente quando crianças, e que as estimulem a vivenciarem, no plano simbólico, as diversas situações da realidade humana, seja ela ficcional, fantástica ou não”, afirmam os voluntários.

Foco no cuidado

São eles os que, desde meados de 2022, realizam um balanço social do projeto, contabilizando presença dos alunos das rodas de mediação, quais livros foram mediados, participação de cada criança e o cumprimento de prazos de empréstimo/leitura semanal.

Em números, o panorama impressiona: de maio de 2022 a maio deste ano, foram investidos mais de R$65.530 na manutenção do coletivo e na fundação da biblioteca comunitária (em doações de pessoas físicas e dos próprios idealizadores); 2.274 crianças e pré-adolescentes atendidos; 897 livros mediados; e 1.478 horas de voluntariado líquido. “O tanto de aprendizados e causos que vivenciamos com os cabinhas, literalmente, não está escrito”, situa Tiaia Tavares.

Legenda: Desenvolvimentos interpretativo e criativo das crianças ao longo dos meses é motivo de orgulho para equipe à frente do projeto
Foto: Fabiane de Paula

“Uma das coisas mais marcantes para nós, mediadores de leitura, é testemunhar os desenvolvimentos interpretativo e criativo deles ao longo dos meses, seus embates com a recepção das obras levadas semanalmente para casa ou lidas em roda e, principalmente, o pulular de perguntas das mais variadas vertentes”.

Outra riqueza do projeto é a convivência envolvendo pessoas de várias faixas etárias. Assim, em uma mesma roda de leitura, há crianças de dois anos de idade e um adolescente de 12. A interação não-segmentada etariamente transforma a relação dos cabinhas entre si mediante senso de responsabilidade e de compreender que existem diferentes estágios do pensamento.

Legenda: No Cabinhas, crianças atendidas pelo projeto levam semanalmente um livro para casa e leem com os próprios cuidadores
Foto: Fabiane de Paula

O acervo literário – proveniente sobretudo da biblioteca pessoal dos idealizadores – é reflexo dessa diversidade. Obras valorizadoras da pluralidade étnico-racial, de comunidades tradicionais, que atentem à inclusão da pessoa LGBTQIAPN+, bem como da pessoa com deficiência, são fundamentais nas estantes. 

Além disso, o programa atende crianças neurodivergentes (com laudo para Transtorno do Espectro Autista), uma criança cadeirante e três imigrantes – duas venezuelanas e uma peruana – para os quais se busca adquirir, mediar e emprestar livros em espanhol com temática latino-americana. 

Quanto ao futuro? Caso consigam suporte financeiro de pessoas jurídicas – públicas ou privadas – a equipe espera promover várias melhorias. Projetor, colchonetes/almofadões, cadeiras e mesas plásticas, constituição de poupança para garantir despesas, e constituição formal do coletivo como associação sem fins lucrativos com CNPJ próprio são as principais.

Legenda: Parte da turma dos Cabinhas Leitores: unidos pelo fio das palavras
Foto: Fabiane de Paula

“Essas melhorias viabilizarão desde mais espaço para armazenar nosso acervo e as novas aquisições até voluntários mais motivados e com maior bagagem teórica e prática”, calculam.

“Não são raros os relatos dos cuidadores das crianças/jovens sobre a ansiedade destes últimos em participarem novamente de nossas atividades e passeios. Isso evidencia que os cabinhas chegam com vontade de querer estar naquele espaço, em nosso ciclo de atividades em roda”.


Serviço
Cabinhas Leitores
Sede da biblioteca comunitária na Rua Senador Álvaro Adolfo, 1369, bairro Padre Andrade

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