O que o dueto entre Maria Rita e Elis Regina indica sobre o impacto da IA na indústria da música?

Comercial comemorativo de 70 anos da Volkswagen usou inteligência artificial para criar 'encontro' entre mãe e filha

Escrito por Lívia Carvalho , livia.carvalho@svm.com.br
Legenda: Maria Rita e Elis Regina tiveram 'encontro' promovido pela inteligência artificial
Foto: Divulgação

Um vídeo de apenas dois minutos foi um dos assuntos mais comentados nas redes sociais brasileiras na última semana. O comercial de 70 anos da Volkswagen traz a letra de Belchior ‘Como nossos pais’ nas vozes de Maria Rita e Elis Regina, com a imagem da cantora gaúcha falecida em 1982 reconstituída  por meio de ‘deepfake’, técnica usada para combinar fala a imagem.  

E o uso dessa tecnologia não para por aí. Uma empresa sul-coreana desenvolveu ferramenta para fazer Freddie Mercury cantar músicas dos dias atuais; David Guetta fez um sample a partir da voz de Eminem; já teve até Ariana Grande cantando o hit ‘Leão’ de Marília Mendonça. Parece não haver limites. Afinal, qual é o impacto da IA na indústria da música?  

Revolução ou adaptação?  

O professor da Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Júlio César de Melo, pontua que a IA pode impactar diversos contextos em que a música está inserida, desde a composição musical até a edição, porém há pontos positivos no uso da tecnologia, inclusive para a educação na área.  

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“Uma IA pode auxiliar estudantes de música em composições e arranjos através da determinação de estilos e preferências específicas que podem levar a análises, aprendizagens e inspirações. É importante ainda, a meu ver, entender de que não se trata exatamente de uma revolução, mas, sim, de uma adaptação dos modos de vida e trabalho”, aponta. 

Por isso, o professor pondera ser necessário analisar questões importantes que dependerão de uma consciencialização sobre sua utilização, a exemplo das composições, já que por muito tempo se acreditou que a criatividade humana não poderia ser substituída pelas máquinas e hoje vemos bots escrevendo letras de músicas.  

Para Melo, essas criações podem soar interessantes à primeira vista, mas é preciso levar em conta o fato de que uma IA aprende com padrões ofertados a ela. “Ideias originais e que consideram contextos culturais distintos ou originalidade são um grande desafio, por isso as criações feitas por IA podem levar sempre a mais do mesmo”. 

Música é metafísica 

O músico e advogado Ricardo Bacelar acrescenta ainda que a música tem uma conexão com a própria personalidade, ao contrário da IA que não cria, apenas reproduz padrões e faz um cálculo matemático. 

“É um ambiente metafísico de informações, de emoções, de identidade. Tudo isso que você tem na metafísica se torna uma música. A máquina faz uma triagem do que já existe, então acredito que, ou os criadores vão ser muito valorizados, ou desvalorizados”.  
Ricardo Bacelar
advogado e músico

O professor Júlio César corrobora que há cenários distintos que podem ser observados: um de repetição constante de padrões, e outro em que a IA pode trazer inspirações e reflexões sobre o fazer musical. 

Tecnologia condiciona a criação  

O doutor e professor do Mestrado em Avaliação de Políticas Públicas - Mapp, da Universidade Federal do Ceará (UFC), Thiago Novaes, por sua vez, afirma que, às vezes, a tecnologia condiciona a invenção, mesmo que não seja utilizada a de ponta. Um exemplo disso foi o surgimento da Bossa Nova no Brasil.   

“Em um artigo de Marcos Nobre e Tinhorão, eles argumentam que a criação do gênero se deu justamente porque o Brasil na época não tinha mesas de som capazes de captar as orquestras todas que funcionavam na época. O que aconteceu foi uma simplificação de certa maneira da captação de áudio com a batida repetida, o que deu origem à Bossa Nova”, detalha.   

O som surgiu então com três flautinhas juntas, três sopros juntos e uma batida simplificada que é o ‘dim, dom, dim, dom, dim’.  

O especialista também afirma que esse medo de as máquinas substituírem os humanos não faz sentido, mas é uma importação da cultura ocidental euro-americana do começo da cibernética.

No mito do robô, acredita-se que esse ser mais evoluído é capaz de substituir o trabalho humano sem sofrer nem reclamar, além de que nós somos os senhores da técnica.  

“Ter acesso a esse conhecimento não torna os humanos obsoletos. O fato de os algoritmos serem capazes de fazer cálculos que a gente não é capaz, na verdade oferece uma nova ferramenta de análise social e de vivência, que a gente não tinha por exemplo também”, argumenta Thiago Novaes.

Personalização do consumo 

Outro ponto do uso da IA, segundo Júlio César, se refere às plataformas de streaming, que utilizam a tecnologia e promovem uma personalização do consumo ao mapearem as interações com os usuários, para apresentar conteúdo que o algoritmo de inteligência artificial julgue mais atrativo para o usuário logado.  

“Pode-se falar aqui de uma individualização da experiência, o que é de fato interessante, mas, se a relação do usuário com a plataforma não for ativa e crítica ele nunca sairá dos mesmos padrões de escuta. Mas não existem apenas lados perversos, sem contar a maior facilitação para artistas emergentes que podem, cada vez mais, promover a divulgação de seus trabalhos”. 
Júlio César de Melo
professor de Música da UFRN

É assim que ambos os especialistas acreditam que deve ser: usar a tecnologia a nosso favor. “A tecnologia sempre impactou muito a música, desde a época da gravação da música, da invenção dos fonógrafos, é uma aliada da música e sempre vai ser, mas é usar com responsabilidade, como uma ferramenta pra ajudar, e nunca pra substituir o homem”, destaca Bacelar.  

Dentre as possibilidades de uso positivo, o professor acrescenta ainda o potencial de experiências musicais imersivas, da transcrição musical em tempo real e das inúmeras potencialidades para a educação musical. 

“Temos por exemplo uma pesquisa em que estou envolvido em curso na UFRN com o objetivo de desenvolver uma IA mediada por comandos de voz em língua portuguesa para controlar editores de áudio (que permitem gravação e edição) como suporte a deficientes visuais durante os processos de produção musical”, explica.

Direitos autorais  

Para além de todos esses apontamentos, uma questão muito importante que entra em discussão é a titularidade sobre a criação das obras criadas por IA. Bacelar diz que, em alguns países, o autor de uma obra intelectual pode ser uma pessoa física, mas no Brasil, a lei de direitos autorais fala sobre criação do espírito.  

“São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”, é o que prevê o artigo 7º da Lei 9.610/98.  

“O Grammy latino, do qual sou membro votante, já se pronunciou que não vai aceitar qualquer tipo de obra que seja feita por IA. Tem uma discussão ética e tem também um questionamento sobre de quem são os direitos sobre uma música que é criada dessa forma, porque ela gera uma receita, isso ainda não é claro”, reitera.  

Por usar padrões já existentes, há ainda uma discussão sobre possível plágio, uma vez que a obra gerada é derivada de outras.  

Muito embora, ainda não seja possível prever os impactos da inteligência artificial na indústria cultural como um todo, legislação, educação e sociedade precisam se atualizar para acompanhar a contemporaneidade.  

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