Black Mirror: quando a realidade pode ser mais sombria do que a ficção
Uma das grandes apostas da Netflix ganhou novos episódios após quatro anos de espera. A série que fez sucesso explorando distopias inovadoras, retorna com pouco sci-fi e fantasia em excesso. A guinada na proposta dividiu a opinião de fãs e da crítica
A espera foi longa. Quatro anos até que a Netflix finalmente colocasse em seu catálogo a sexta temporada de Black Mirror, série antológica de Charlie Brooker. A produção que já foi aclamada por público e crítica, no entanto, parece ter perdido o rumo. O desvio que os criadores usaram apelou para clichês, monstros e demasiada dose de fantasia que impactam menos do que a própria realidade exibida nas redes sociais.
Os grandes trunfos de Black Mirror sempre foram o incômodo, o inusitado, até mesmo o horror construído a partir de distopias onde o elemento comum era (quase sempre) o uso da tecnologia e de Inteligência Artificial.
O estilo Sci-fi, o suspense e a experimentação estética eram aplicados a diferentes histórias nas quais a humanidade tinha que enfrentar as suas próprias criações “geniais”. Evolução ou armadilha? No fim dos episódios, (com algumas exceções) o que ficava no ar era sempre uma necessária reflexão.
É claro que quem acompanha a série vai querer conferir tudo, apesar das polêmicas que vêm fazendo barulho na mídia. Afinal, há quem defenda a guinada radical na proposta. Outros enxergam na atual leva de cinco episódios a pá de cal que pode sepultar de vez o futuro dessa produção original Netflix.
O episódio que abre a nova temporada é “Joan é Péssima”. Embora tente sustentar o estilo Black Mirror, a história envolvendo um reality show “não” consentido, e profundamente constrangedor, até começa bem, mas logo descamba para o escracho, incluindo um toque escatológico. Annie Murphy e Salma Hayek abusam dos termos chulos, mas o “time” da comédia se perde rápido.
E, se a intenção era chocar, a ideia em si não funciona. No máximo, consegue tirar sarro da própria Netflix e alertar os desavisados sobre os termos de contratos que aceitam quando entram no território digital. Como peça de marketing para gerar engajamento seria uma boa sacada. Como episódio, precisaria de bem mais para fazer jus à série.
O que vem a seguir também é uma autocrítica aos conteúdos de streamings que abusam de documentários sobre assassinos em série, psicopatas e crimes reais. “Dhammer, um canibal americano” é o exemplo máximo de sucessos do tipo. Seguindo a linha, o segundo episódio, “Loch Henry”, até pode instigar o público a questionar suas opções de entretenimento.
Violência nas redes sociais
Mas, afinal, quantas vezes por dia nos deparamos com posts no Instagram, Facebook e Twitter onde flagrantes de mortes cruéis e atos pavorosos de violência são registrados por pessoas comuns e viralizam num piscar de olhos? Nesse campo, vamos combinar que a realidade consegue ser bem mais sombria do que muita ficção em cartaz.
“Loch Henry” acompanha a jornada de dois jovens aspirantes a cineasta em busca de um bom tema para explorar. Casualmente, os dois esbarram num crime bárbaro do passado. O caso, no entanto, não estava tão enterrado como se imaginava e revirar os escombros do massacre pode render bem mais do que um filme.
Pouca ficção
Apontado como o melhor da temporada, “Beyond the Sea” até trafega pela ficção científica, ao mesmo tempo em que se lança nos limites desconhecidos da mente humana. Na trama, dois astronautas cumprem missão fora do planeta enquanto seus clones ficam na Terra para suprir a ausência junto às respectivas famílias. O corpo é sintético, mas a consciência é 100% real, graças a uma ligação mental ultra sofisticada instalada na nave.
Crime, ciúme, violência e uma disputa iminente movimentam o enredo. O problema é: o público consegue prever cada acontecimento sem fazer o mínimo esforço. A criatividade na finalização vai literalmente pro espaço.
“Mazey Day” é o quarto episódio e também o mais criticado. Nem é Black e menos Mirror ainda. A história mira no excesso praticado pelos paparazzi em plena década de 1980. A invasão de privacidade em troca de dinheiro move uma horda faminta por escândalos. O alvo aqui é uma atriz com crise de consciência que surta em meio a filmagens na República Tcheca. Logo, vira alvo valioso para os donos das câmeras.
A “caça” à celebridade culmina com uma inversão de papeis e vantagem para o verdadeiro “caçador”. Porém, os clichês tiram o foco da ação. A solução escolhida para evidenciar a falta de limites e de empatia dos paparazzi não poderia ter sido mais desastrosa. Um cineasta amador erraria menos. Talvez por isso, na lista dos piores episódios de todas as temporadas, “Mazey Day” já está no Top 5.
Paródia de terror
Por fim, uma paródia de filme de terror se desenha em “Demônio 79”. Os atores sustentam os papéis. A música é boa e a fotografia convence. E só! O que sobra além disso é um curta que flerta com o sobrenatural e fica totalmente fora de contexto, sem conexão alguma com a proposta de Black Mirror.
Após um hiato de quatro anos, tempo em que Ellon Musk inaugurou sua ponte-aérea entre a Terra e o espaço e o ChatGPT chegou com potencial de pulverizar milhões de empregos em questão de anos-, era de se esperar que roteiristas tivessem inspiração de sobra para trabalhar. Para decepção da maioria, entregaram episódios que parecem ter saído do antigo seriado de TV “Além da Imaginação”.
Para os que sonham com a retomada de um Black Mirror “raiz” , resta sugerir que, durante a espera, liguem suas telas escuras e revejam os filmes baseados nas obras de George Orwell, Audous Huxley, Philip K. Dick e Isaac Azimov (o maior de todos). Não tem como errar!