Nos trilhos da Estação das Artes, as memórias da ferrovia e o sonho de novos encontros em Fortaleza
Fundamental no desenvolvimento da Capital, Estação Ferroviária João Felipe hoje é complexo cultural, abrigo de fortes memórias e grandes transformações
Antes mesmo do vírus, da máscara e da solidão, Fortaleza já vivia num desencontro consigo. Faz oito anos que o último apito de trem soou na Estação Ferroviária João Felipe. De lá para cá, apenas a memória percorreu os trilhos, tomou carona nos vagões, escutou o sino anunciando chegadas. O histórico prédio, outrora em estado de deterioração, guardou tudo no íntimo enquanto sonhava mudanças. Uma nova forma de ser e de estar na cidade.
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Com ele, milhares de cearenses – órfãos do frenesi diário nas galerias da estação – também acumulavam expectativas. Feito a artesã e costureira Lúcia Viana, 69. Nos 296 anos da capital alencarina, celebrados nesta quarta-feira (13), ela recorda momentos vivenciados no local, ao mesmo tempo que projeta vivências no recém-lançado Complexo Cultural Estação das Artes Belchior. O empreendimento é a versão restaurada da antiga estação ferroviária.
“A primeira e melhor lembrança aconteceu em 1971, quando viajei daqui da Estação pra Castelo do Piauí”, introduz. Era a primeira vez que saía de Fortaleza. Ia encontrar amigas. Tinha 18 anos. Agora, pensa nas paisagens. A sensação de estrear no mundo e, ainda mais, num trem, foi inesquecível. “Depois de madrugadinha, a gente via o sol nascer e toda aquela vista. Uma viagem linda”.
Outros detalhes se achegam ao pensamento. Na década de 1980, quando inauguraram estações nos bairros, ela passou a ir todos os fins de semana para Jurema, distrito do município de Caucaia. Saía do bairro Moura Brasil, onde reside até hoje, com o coração na mão. Ia visitar a irmã, Fátima Viana. Matar o tempo e a saudade. Ao longo das jornadas, foram perceptíveis as transformações no modal.
Em época de São João, por exemplo, havia momentos de descontração entre os passageiros. “A gente brincava dentro do trem. Era uma animação. Tinha movimentos de quadrilha, ficávamos andando de um vagão a outro, o pessoal tocando”, emociona-se. Gosta de recordar também os embrulhos e objetos levados pelas pessoas. Uma fartura: de bicicletas a miudezas dos ambulantes. “Agora, no VLT, já não é permitido. É diferente”.
Depois de anos vendo arruinadas as estruturas que guardam essas imagens, Lúcia Viana caminha pela Praça da Estação e pelo Complexo Cultural Estação das Artes Belchior tomada por ternura. O mesmo sentimento de quando esteve na reinauguração dos espaços, no último dia 30 de março. Levou um tapete de tiras com um coração no centro para presentear o Governador. Festejar a cidade é ter esse novo encontro consigo, com as pessoas, com o entorno que aprendeu a amar.
“Esse lugar vai ser uma maravilha para a população. Pretendo visitar sempre e, se por acaso, tiver algum curso por lá, eu vou fazer. Espero que todos possam ir e ter a consciência de que aquele é um espaço público, histórico. Na maioria das vezes, as pessoas não pensam assim. Tem que revitalizar o centro da cidade porque ele passou um bom período abandonado. Agora é o momento de a gente fazer acontecer”.
Centenário e fundamental
Fato é que o prédio outrora sede da Estação Ferroviária João Felipe representou um marco importante no processo de modernização dos meios de transporte na província do Ceará, em fins do século XIX. Tudo se deu a partir do início da construção da ferrovia Fortaleza-Baturité, num período marcado por grandes secas.
Quem nos situa nesse contexto é Francisco Pinheiro, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. Uma vez tendo exercido o cargo de Secretário da Cultura do Estado, ele diz que, ao idealizar o espaço cultural relativo à Estação João Felipe, a perspectiva era de fortalecer um corredor interligando Passeio Público, Museu da Indústria, Emcetur, Forte Nossa Senhora da Assunção e Mercado Central.
“Mas, sobretudo, instalarmos a Pinacoteca do Ceará, Museu Ferroviário, cafés e livrarias. Um espaço que seria importante no processo de requalificação do centro histórico de Fortaleza. Além do mais, o prédio tem valor histórico e arquitetônico”, destaca.
Veja o antes e depois de alguns espaços da Estação Ferroviária João Felipe:
Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Estação é uma das edificações mais antigas de Fortaleza, inaugurada em 9 de junho de 1880. Local de progresso, foi construída em estilo dórico-romano pelo austríaco Henrique Folgare.
Conforme reportagem do Diário do Nordeste publicada em setembro de 2020, o nome do equipamento foi dado em 1946, quando o cearense José Linhares era presidente da República. Agora, neste momento de revitalização, outros ares sopram sobre o lugar.
“Para a população se sentir atraída a frequentar o espaço, é necessário organizar atividades como exposições e espaços de leitura aberto ao público, por exemplo – principalmente para pessoas em situação de rua. Essa experiência já foi realizada no período em que a Biblioteca Pública esteve ocupando aquele espaço”, avalia Francisco Pinheiro.
Erguer a ferrovia
Em resumo, é preciso estimular o contato, algo também presente na fala de João Batista Alves Carolino, 83, mais conhecido como João Coragem. O apelido é justificado. Ferroviário aposentado, membro da Associação dos Ferroviários Aposentados do Ceará, carrega história de luta e sacrifícios a fim de oportunizar o pleno funcionamento dos trens em tempos remotos.
O fortalezense iniciou as atividades sobre trilhos em 1961, cumprindo expediente durante 32 anos. Foi o único trabalho formal exercido na vida, motivo de orgulho. “Comecei na época do empedramento. Dei o maior duro, o cimento era grosseiro. Isso em 1957. Cinco anos depois, tive minha carteira assinada, mas aí eu já estava trabalhando numa turma volante”, explica.
A modalidade funcionava desta forma: onde surgisse serviço, os profissionais precisavam se deslocar até lá. Foi desse modo que João conheceu vários lugares do Estado e do Brasil. No correr do tempo, passou a exercer diferentes funções, de guarda-chaves a manobrador de trens. Assim criou oito filhos, superou limites, foi além.
“A lembrança que tenho é que a gente passava às vezes o dia e a noite trabalhando, andando em cima daqueles trens cargueiros, mudando um trilho, alguma coisa do tipo… Isso foi tudo que eu fiz na minha vida quando comecei na RFFSA (extinta Rede Ferroviária Federal). Depois a coisa foi melhorando, fui lotado em vários lugares”.
Nada que lhe tenha poupado de incontáveis riscos – sobretudo ao cumprir ofício em uma pedreira numa época de serviços exclusivamente manuais. Era preciso reunir suprimento para otimizar o fluxo dos transportes. Ultrapassando essa realidade, João Coragem também singrou estradas por vontade própria. A passeio, conheceu Crato, Crateús, Camocim.
Hoje mantém um comércio no mesmo bairro de Lúcia Viana, o Moura Brasil. Recebe a ajuda do neto, José Júlio, nas atividades. Aos 11 anos, o garoto é confidente das memórias do avô. Com ele, aprende a valorizar o trabalho e a história, premissas fundamentais para João Coragem. Não à toa, ambos foram juntos para a noite de abertura do Complexo Cultural Estação das Artes Belchior. A emoção foi indisfarçável.
Mas ainda resta um sonho: “Seria muito bom que as pessoas pudessem se encontrar e se reencontrar na Praça da Estação e no complexo cultural. Inclusive, estamos com o projeto de colocar a Associação dos Ferroviários para lá de novo, tornando tudo mais fácil. Assim, as novas gerações vão conhecer não só aquele espaço, mas as ferramentas que a gente trabalhava, um outro tempo. Vai ser bom”.
Patrimônio de histórias
Secretário da Cultura do Ceará, Fabiano Piúba informa que a Associação dos Ferroviários Aposentados do Ceará e a Associação dos Engenheiros da Rede Viação Cearense são as responsáveis pelo acervo do Museu Ferroviário do Estado.
O equipamento – fundado na década de 1980 e um dos cinco integrantes do Complexo Estação das Artes – deve ser reaberto no segundo semestre deste ano. No momento, toda a reserva técnica passa por higienização, catalogação e sistematização. O orçamento para a iniciativa é de R$200 mil, conquistado via Lei Aldir Blanc.
“Vamos iniciar o processo do plano de trabalho para a abertura do Museu, compreendendo que esse instante de montagem também é um instante de abertura, de formação técnica e cultural, de curadoria, montagem e projeto museológico. Assim, desenvolveremos reuniões com as Associações para desenvolver essa ação tão importante”, prevê.
O gestor enfatiza que o procedimento engloba não apenas o Museu Ferroviário, mas toda a estação – compreendida como território museográfico, uma vez ser lugar de memória, chegadas e partidas. Em linhas gerais, de acordo com Piúba, o Complexo Cultural Estação das Artes Belchior envolve a recuperação, valorização, restauro e o novo uso de um bem tombado como patrimônio histórico de Fortaleza e do Estado.
Ao mesmo tempo, quando das primeiras ideias sobre o conceito do empreendimento, a Secult também considerou o espaço da Praça da Estação. Numa parceria com a Prefeitura de Fortaleza, requalificou-se esse ambiente, oportunizando a mesma dinâmica para o centro da cidade e o convívio social. Unir públicos por meio das artes e da cultura.
“A Estação das Artes é um complexo que reúne um conjunto de equipamentos culturais: Estação das Artes, Mercado Gastronômico, Pinacoteca do Ceará, Centro de Design e Museu Ferroviário. Este último deverá ter gestão compartilhada, entre a Secult-CE e os próprios ferroviários, e se localizará num galpão ao lado da estação, com área de reserva técnica, área expositiva e administrativa e área de convívio para engenheiros e ferroviários – compreendendo essas pessoas como guardiãs de memória”, especifica o secretário.
Na visão dele, todos esses passos são um presente para Fortaleza, justamente em um momento de celebração pelo aniversário da Capital. “O exercício do direito à cidade passa pelo direito à cultura. E o direito à cidade é o direito de reinventá-la. Estamos fazendo isso, reinventando o centro da cidade a partir de um complexo cultural, convidando a sociedade para a fruição, para exercer esse direito às artes e à cultura como direito à cidadania”.
Voltar ao passado, morar no futuro
Filho de ferroviário, Hamilton Pereira parece que desde muito cedo – ainda que intuitivamente – entende esse importante componente do direito à cidade por meio da cultura e do trabalho. Engenheiro aposentado da RFFSA, aos 82 anos ele passeia o olhar pelo novo espaço da Estação João Felipe, num exercício de retorno ao passado. E de morar no futuro.
Embora natural de Fortaleza, morou em Quixeramobim, Aurora e Camocim. Nas férias, vinha para a Capital, onde ficava na casa da avó. “Passava pela estação. Andava até de bonde, que transitava em frente à estação e ia até à Praça José de Alencar. Ficava olhando… Isso era em 1947”, contabiliza.
Enumera também as diferenças sentidas ao longo de 36 anos no ofício. Além do aumento do fluxo de passageiros, a evolução do aspecto romântico das viagens de trem e a convivência das pessoas na Praça da Estação, repara transformações sutis, relacionadas às cores de paredes e portas. Estas, antes vermelhas, agora são brancas. Já aquelas passaram do amarelo para o rosa. Hoje, são tão alvas quanto as portas.
“O ponto zero dos trens do Ceará era lá, na Estação João Felipe. Ao longo do tempo, os horários de partida e chegada mudaram várias vezes. Viajar de trem era muito bom. Tinha um sentimento de saudade, por quem ficava e por quem partia. Quando eu era criança e a gente ia viajar, não dormia não. Ficava doidinho pelo momento de embarcar. Ficava ali ao redor dos pais, a ansiedade de subir no vagão era enorme”.
Feito João Coragem, Hamilton exerceu apenas um emprego formal na vida, e foi na RFFSA. Atualmente, torce para que o Museu Ferroviário do Ceará seja logo reaberto. Será hora de reavivar, com ainda mais força, todas as memórias.
“Trabalhar na ferrovia possibilitou a minha formação cultural e muitos adjetivos que eu não consigo mencionar aqui. Talvez uma das maiores saudades seja de observar o relógio na estação. Era mecânico, fabricado nos Estados Unidos no século XIX. Dava para ouvir o badalo, ‘pooom, poooom…’. Parecia uma igreja. Agora é um relógio eletrônico, está tudo bem diferente. Mas a gente tem que conhecer e abraçar”, defende o memorialista.
Entoar baixinho um poema de Adélia Prado: “Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,/ mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,/ Atravessou minha vida,/ virou só sentimento”. Virou herança e trajeto. Virou cidade.