Ednardo celebra 50 anos de estrada e faz aniversário junto de Fortaleza
Diretamente do Estoril, um dos grandes nomes da música brasileira fala do novo disco, que traz um registro ao vivo inédito dos anos 1970 e a paixão pela arte capaz de ligar passado e futuro
É uma sexta-feira nublada em Fortaleza. Do Estoril, prédio ícone da cultura local, é possível testemunhar o verde-mar da Praia de Iracema. O horizonte de nuvens carregadas traz a poética constatação: É um dia “bonito para chover”.
Ednardo escolheu o Estoril como espaço para entrevista. Ao chegar no prédio que hoje funciona a sede da Secretaria Municipal de Turismo (SETFOR), os olhos do artista brilham na tentativa de identificar cada detalhe do lugar. Trata-se de um reencontro. “Aqui tem as impressões digitais da gente”, divide emocionado.
A edificação erguida nos anos 1920 atravessa a existência deste cearense, cuja voz e poesia se faz reconhecida há décadas pelo Brasil. De profundas memórias, lembra da noite em que visitou o Estoril com os pais. Enquanto os parentes dançavam no salão ao som de uma orquestra, o menino observava o longínquo e hipnotizante Farol.
Devia ter seis para sete anos, estipula. “Eu ficava nessa mureta, tinha a mesma altura. Olhando ali para o Farol do Mucuripe. Rodando aquela lâmpada, de aviso aos navegantes”, descreve com o braço direito a recriar o movimento da luz.
Anos mais tarde, o Estoril consolidou-se como bar e referência da boemia em Fortaleza. Junto ao extinto "Bar do Anísio", compunha o território por onde circulava inúmeras cabeças criativas. Aquelas colunas testemunharam a criação de sucessos que ganharam destaque nacional.
“De um lado, tínhamos a repressão da Ditadura Civil Militar e, do outro, um povo com ansiedade por liberdade muito grande. A juventude, principalmente os artistas, empunharam à sério aquela coisa do ‘Paz e Amor’, ‘Amor Livre’. Tinha parte da consciência social e política. Foi aí que começou as 'doidices' do 'Pessoal do Ceará'. Foi justamente nesse tempo
Abril é um especial para José Ednardo Soares Costa Sousa, ou simplesmente Ednardo. Poucos dias depois da capital cearense completar 296 anos de fundação (dia 13), o músico celebra 77 primaveras no dia 17 que se avizinha. 2022 traz também a irretocável marca de 50 anos de carreira. "É um tempo que merece ser comemorado”, nos conta.
Uma série de lançamentos e atividades prometem repercutir a importância da data. A ação mais próxima é o lançamento do disco “Sarau Vox 72”. Em 30 de abril, o álbum será apresentado ao público em uma esperada noite de autógrafos. O registro ao vivo é considerado uma relíquia em sua carreira.
Gravando!
Estamos em 1972. Ednardo assume a missão de ir ao Rio de Janeiro e tentar a carreira artística. Porém, antes de migrar e “voltar em vídeo tapes e revistas supercoloridas”, o jovem cantor foi convidado a realizar um sarau de despedida.
O concerto foi realizado na Vox, loja de discos atuante na Capital. Gerardo Barbosa Lima Filho (cujo pai era dono da Vox) gravou a apresentação. A fita segui preservada por todos esses anos. O repertório daquela noite reunia as muitas canções compostas entre as noitadas de Anísio e Estoril. Obras autorais que evidenciam o começo dos artistas posteriormente conhecidos como "Pessoal do Ceará".
Com 17 faixas, o disco contempla músicas que jamais tiveram registro oficial. É o caso de "Bip Bip" (Eletricor), parceria com o amigo Belchior (1946-2017). A letra dessa composição foi encontrada recentemente em arquivos da Ditadura Militar, pelo pesquisador Renato Vieira.
Esta e outras músicas foram enviadas entre 1971 e 1979 à Divisão de Censura de Diversões Públicas, órgão censor que decidia o que podia ou não ser gravado. A lista de inéditas conta com "Momentos", "Além Muito Além" (ambas de Ednardo) e "De Areia e Vento" (de Ednardo e Tânia Cabral).
“É um disco que, o meu ver, é histórico, pois registra esse momento de gestação do que acontecia aqui em Fortaleza, com o ‘Pessoal do Ceará’. Aqui, tenho o prazer de interpretar músicas de vários colegas, todos eles iniciando naquele momento, em 72. Belchior, Rodger Rogério, Fagner, Ricardo Bezerra, Tânia Cabral... O disco tem uma característica. É o som que cantávamos nos bares. No Anísio. Estoril
Para a seleta plateia da Vox, Ednardo cantou títulos que estariam em seus dois primeiros discos solo, entre elas "Carneiro", "Desembarque", "Ausência", "Mais Um Frevinho Danado", "Beira-Mar" e "Varal". A noite de autógrafos acontece no Cantinho do Frango, casa da capital notória enquanto palco de artistas da cidade.
Assim, o sarau demarcava o começo de uma grande história. Da turma que seguiu para o Sudeste estavam Ednardo, Rodger Rogério e Teti. Lá, gravaram o primeiro (e clássico) disco daquela geração: ‘‘Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem’. Veio em seguida o registro solo “O Romance do Pavão Mysteriozo” (1974).
11 discos somados na discografia (entre outros feitos em parceria). Shows. Apresentações na TV, teatro e videotape. Veio a Massafeira Livre e trilhas para o cinema. Da Rua Artur Timóteo, esquina com a Lauro Maia, no bairro de Fátima, para o infinito. A voz segue ecoando resistente por cinco décadas.
Coordenadas
Longe de loas à nostalgia, Ednardo escolheu conversar no Estoril por conta da inspiração que o lugar proporciona. Toda a música, companheirismo e criatividade experimentadas ali o motivam a criar mais. Pensamento no futuro, sempre.
“Isso daí eu trago de volta nestas comemorações. Nestes 50 anos, que eu acho, já disse antes, merecedoras de rememorar, vivenciá-las, re vivenciá-las e seguir. Pegando o que já foi feito e que nos servirá de autoestímulo”.
Após a sessão de fotos, é momento de registrar em vídeo os depoimentos de Ednardo. Ligo a câmera. Testo o som do gravador. Até a neblina dera uma leve pausa. Tudo certo. Gravando. Conversamos entre a pequena porta de acesso ao Estoril e o começo do Calçadão.
O cantor pontua a alegria que é completar meio século de dedicação exclusiva à arte. Em outra perspectiva dessa feliz dessa jornada, integrou uma geração responsável por cativar mentes e imprimir a voz cearense no cenário cultural do Sudeste.
Além de “Sarau Vox 72”, um livro está sendo produzido. As páginas contarão um pouco dessa saga. São memórias que recortam do primeiro contato com a arte até os dias atuais. Desse rico panorama, também emerge o Ednardo artista plástico.
A obra contará com pinturas e desenhos nunca mostrados publicamente. Terão contos, ficções, outras realidades. “Será uma mistura de como eu sou, como é minha cabeça”. Para este mestre da música brasileira, aniversariar tão perto de Fortaleza é uma alegria sem igual. São comemorações recíprocas. “Acredito que Fortaleza me ama tanto que eu amo Fortaleza”, enfatiza. Poesia, som e querer bem na mesma sintonia.
“Eu dedico tanto de mim, do meu fazer artístico, da minha música para Fortaleza, para o Ceará. Para esse local que são as minhas coordenadas existenciais. E eu tento traduzir de uma maneira, como fiel amante dessa cidade, as minhas e nossas vivências. Tudo aquilo que vivenciamos", completa.
A noite vai chegando
Intervalo para a água. O Calçadão da Praia de Iracema começa a ganhar circulação intensa. Uma criança se esgoela para mãe. Uns cachorros de madame fazem zoada. Escurecerá rápido. É quando o cartão de memória do gravador dá defeito. Parte do áudio gravado se foi.
Diferente de Gerardo Barbosa Lima Filho, que na Vox, no distante ano de 1972, capturou o áudio cristalino do sarau, com o novíssimo gravador digital deu ruim. Ednardo até troca uma ideia sobre o equipamento. "Deve ser coisa japonesa, eles são ótimos em compactar tecnologia", medita.
Em diferentes momentos da entrevista, o músico foi carinhosamente chamado pelos fãs. Registrou selfies, a voz grave compartilhando gentileza. Os longos cabelos, o chapéu, o visual característico. Agradecia cada carinho e conversava com um sorriso generoso. Sim, Fortaleza o quer bem.
Desculpo-me pelo imprevisto do gravador. Já se encaminhando à noite daquela sexta-feira, se despede e tranquiliza com propriedade. "São 50 anos de história. Já vi muita coisa". No próximo dia 30, “Sarau Vox 72” será apresentado. Ednardo cantará algumas destas canções com Carlos Patriolino ao violão. O som das ondas rebenta chamando atenção. As luzes do histórico Estoril começam a ser acesas.
Serviço:
Noite de autógrafos de "Sarau Vox 72" e apresentação de Ednardo com Carlos Patriolino. Dia 30/04 (sábado). De 17 às 19h, no Cantinho do Frango (Rua Torres Câmara, 71, Aldeota). Pré-venda do CD aqui.