No Natal e além: o homem que tocou o sino da Basílica de Canindé por quase 80 anos

Mestre da Cultura, Getúlio Colares Pereira cumpriu o ofício devido à promessa feita pela mãe para a cura de uma doença

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Antes de ser Mestre da Cultura, Getúlio Colares tornou-se Patrimônio Histórico da Basílica de São Francisco das Chagas a partir do ofício de sineiro
Foto: Jarbas Oliveira

Não precisava ser Natal – embora, nessa data, fosse ainda mais simbólico. Seu Getúlio acordava com o sol e ficava esperando o dia ganhar corpo. A cidade era alvo de atenção. Cada romeiro em Canindé sinalizava festa grande, momento esperado. Ele, então, subia as centenas de degraus da torre da Basílica Santuário de São Francisco das Chagas e, de lá, puxava as cordas com um sorriso: “As pessoas ouvem os sinos baterem e ficam felizes”.

Foi assim durante 77 anos. Mestre Getúlio Colares – como ficou conhecido o sineiro após ganhar titulação de Mestre da Cultura pelo Governo do Estado do Ceará – fez história no local onde atuou. A primeira vez que tocou o sino foi em uma procissão do Sagrado Coração de Jesus. Era 29 de julho de 1944, data guardada com muito zelo. Tinha 15 anos de idade.

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“Comecei a tocar o sino nas formas tradicionais do Canindé. Vários tempos do sino. Várias tocadas, de alegria e de tristeza”, contou ele para o “Livro dos Mestres - O legado dos mestres: cultura e tradição popular no Ceará”, publicação de 2017 organizada por Dora Freitas e Sílvia Furtado. “Os romeiros ficam apaixonados pelo meu trabalho, adorando a São Francisco e o sineiro. Eu me sinto feliz. É uma função religiosa”.

A vocação para o ofício germinou no sertão. Nascido nessa paisagem, aos 10 anos foi para Canindé. Devido a uma doença contraída no local de nascimento, a mãe fez promessa a São Francisco para obter a cura do rebento. Se Getúlio superasse a enfermidade, passaria quatro anos trabalhando de graça para o santo. Ela talvez não contasse que, ao longo desse período, os frades gostassem tanto dele a ponto de querer efetivar o serviço.

Legenda: O povo de Canindé conhecia os repiques e sabia quando era Getúlio quem estava tocando
Foto: Salvino Lobo

Tendo se aposentado como coveiro no cemitério de São Miguel, em Canindé, Mestre Getúlio foi fartamente reverenciado. Recebeu o diploma de operário-padrão do município e foi homenageado duas vezes, em 1979 e 1980. Antes de ser Mestre da Cultura, tornou-se Patrimônio Histórico da Basílica de São Francisco das Chagas. Faleceu em março de 2021, aos 91 anos, vítima da Covid-19. O legado, porém, permanece vivo e sonoro.

Não é só tocar o sino

Segundo o próprio “padim” – alcunha carinhosa atribuída a Mestre Getúlio, que também se utilizava dela para chamar os amigos – tocar o sino é tradição das promessas de Cristo. A atividade é cercada de detalhes. O ritmo dos sinos das igrejas embala a vida das cidades, sobretudo do interior, e divulga informações importantes para a população. Pode ser desde o início de uma celebração solene até o falecimento de alguém importante.

O povo de Canindé conhecia os repiques e sabia quando era Getúlio quem estava tocando. Inclusive, os toques festivos de sino realizados por ele estão presentes em LP’s de músicas e hinos dedicados a São Francisco. Com habilidade, manobrava o sino em ritmos diferentes para ocasiões especiais. Repertório vasto, com cerca de 85 toques diferentes.

“Pra fazer um som bonito, ele me ensinou a tocar do sino grande para o pequeno, mas ele mesmo tocava do pequeno para o grande. Dá praticamente o mesmo som, mas é diferente”, contextualiza Aglairton Agostinho, 40. “Ele faz muita falta em Canindé, era uma pessoa excelente, muito humana e feliz”.

Legenda: Sacristão da Basílica de São Francisco das Chagas e atual sineiro do santuário, Aglairton Agostinho é discípulo de Mestre Getúlio Colares
Foto: Arquivo pessoal

O sacristão da Basílica de São Francisco das Chagas é o atual sineiro do santuário. Aprendeu com o próprio mestre a função, aos 13 anos. A primeira vez que tocou o sino sozinho foi em 1993. Hoje aos 40, não apenas recorda o feito como o repete toda vez que a Igreja pede reunião de gente. É ato afetivo e urgente.

“Não tem bem uma técnica, aprendi só na base da vontade mesmo. É tanto que mestre Getúlio nunca pegou nas minhas mãos. Só vendo ele tocar, já aprendi. Quando fui tocar pela primeira vez, praticamente já sabia de tudo”, detalha. “Convivi muito com ele, acho que me tinha como filho”. Um parentesco além-sangue repleto de atenção e cuidado.

Desde que seu Getúlio completou 80 anos, por exemplo, Aglairton e outras pessoas da Basílica não deixavam mais o Mestre subir na torre do sino – com quase 30 metros de altura. Assim, ele acabava ficando no espaço onde se apresentava o coro das celebrações. Além disso, nos últimos tempos, uma pessoa ia buscá-lo e deixá-lo em casa para que não precisasse se deslocar sozinho, a pé. Em todos os 10 dias da festa de São Francisco, a presença dele era certa.

“Era a época que ele mais tocava o sino. Eu fazia questão que ele viesse. Enquanto pudesse e tivesse força, era o titular. Enquanto tivesse coragem e vontade, seria ele, até morrer”.

Para a tradição não ir embora

Pai de cinco filhos e avô de oito netos, Mestre Getúlio dizia que não tinha “outra pessoa sineiro no mundo, reconhecido”. Só existia ele. “Abaixo de Deus e de São Francisco, só existe eu”. E, quando alguém perguntava o instante em que o ofício do toque era mais apurado, a resposta vinha fácil: no perdão de Assis, nas Chagas e na festa de São Francisco, na festa de Nossa Senhora das Dores.

“Tem o Dia de Finados, depois o Natal, entrada de Ano Novo, dia de São Brás, dia da abertura do romeiro, na Quinta-feira Santa e no domingo de Páscoa”, completava. Nesse compasso, adiantava também a perpetuação do saber. Tradição não pode deixar de existir

Legenda: Segundo o próprio “padim” – alcunha atribuída a Mestre Getúlio, que também se utilizava dela para chamar os amigos – tocar o sino é tradição das promessas de Cristo
Foto: Salvino Lobo

“Eu tô ensinando a tocar o sino. Tem Sacristão-mor por aqui, e ele bate o sino nos dias que eu estou doente. Bate bem como um todo. E tem um garoto, com serviços prestados aqui na sacristia, que está batendo bem”. 

Da parte de Aglairton, herdeiro primeiro do ofício, o ensinamento está sendo repassado para o afilhado de Crisma, Rogério. Dá gosto ver o jovem incorporando o hábito à vida. “Ainda não está 100% como o padim, mas está dando certo”.

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