'Jogo Justo' é um dos melhores filmes lançados pela Netflix em 2023; confira crítica
O longa de estreia da diretora Chloé Domont traz um olhar cortante sobre uma paixão proibida que é levada ao limite e marcada pelo machismo e a misoginia
A Netflix não fez estardalhaço para lançar "Jogo Justo". Mas deveria. O filme de estreia da diretora Chloé Domont é do tipo devastador. Com certeza um dos melhores títulos do Streaming em 2023
Quem já viveu um relacionamento que se deteriora pelo desequilíbrio entre vida pessoal e profissional, pode esperar um arsenal de "gatilhos" emocionais. Quem já foi vítima do machismo (velado ou visceral) também vai reconhecer sua pior face.
Ricos ou não, os machos Alfa estão na maioria das cenas, desfilando sua marra, seu ar de superioridade e suas crenças neandertais, através de clichês misóginos.
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A jornada de "Jogo Justo" é difícil de encarar porque esfrega em nossas caras outras distorções de nossa sociedade: o assédio moral, as humilhações de poder, as agressões verbais e psicológicas que infestam ambientes corporativos de alta performance.
Mas como uma trama com tantos comportamentos condenáveis poderia render um bom filme? O segredo está na forma inteligente como a escritora e diretora Chloe Domont conduz a trama desviando-se do exagero, dos julgamentos fáceis e inserindo erotismo e paixão que fornecem o alívio necessário e deixam tudo ainda mais real.
Amor clandestino
Na trama, assim como na vida, toda paixão começa perfeita, quase cega de empolgação. E é assim que se desenrola o thriller erótico envolvendo Emily (Phoebe Dynevor, a Daphne de 'Bridgerton') e Luke (Alden Ehrenreich, o Han, em 'Han Solo'). Jovens, lindos, apaixonados, com carreiras promissoras numa respeitada empresa de finanças, os dois vivem um amor tórrido e clandestino.
Como trabalham lado a lado como analistas de riscos, precisam seguir a regra da empresa que não permite relacionamentos íntimos entre funcionários. E desde Adão e Eva sabemos que o proibido é sempre mais tentador.
Apesar das normas corporativas, a paixão é tão intensa e o emprego é parace tão promissor que não demora para os dois planejarem o noivado. Sob segredo absoluto, claro. O problema é que, inesperadamente, Campbell (um intimidador chefe vivivo por Eddie Marsan) promove Emily a gerente em vez de Luke, que dava como certo o novo cargo.
Emily é comunicada da promoção diretamente pelo grande chefe. Eddie opta por fazer isso longe dos demais gerentes, durante uma reunião a sós, no saguão de um hotel, fora do expediente. Tudo formal, sem um traço de assédio, mas um tanto intimidador. Ele espera dela competência à altura de sua "aposta".
Ao voltar para casa que divide com o noivo, Emily não sabe se está feliz ou constrangida. Em lugar de comemorar a promoção, ela se sente no dever de pedir desculpas ao namorado que tinha se preparado para assumir o posto.
Emily fica na defensiva, como se duvidasse de seu desempenho. Como se tivesse tirado algo do homem que ama. Luke, por sua vez não consegue disfarçar ao dar os parabéns a Emily. Mas antes, precisa soltar as indefectíveis perguntas: "Ele fez alguma coisa com você?". Traduzindo: "Ele está fim de você?"; "Você fez algo a mais (sexo) para agradecer ao chefe?".
Porque apesar dos avanços, de muita luta e de uma maior conscientização da sociedade, o fato é que quando uma mulher ascende na profissão há sempre alguém pra jogar o manto da dúvida sobre suas costas. A misoginia arraigada sempre tenta lhes roubar o mérito da conquista.
Sem limites
Estruturalmente, mulheres foram condicionadas a pensar que merecem menos. Em relação, ao amado, ele merece "prioridade". Então, na trama, essa é a primeira rachadura na sonhada felicidade compartilhada.
O filme tem uma temática profunda, mas nem por isso deixa de ser divertido, envolvente e até, diria, engraçado. É quase risível acompanhar um machista enrustido assumir que é movido por inveja, insegurança, fraqueza.
Enfim, pessoas tóxicas e intoxicadas pela incapacidade de enxergar relacionamentos movidos por parceria legítima. Incapacidade de aceitar um vida com mais "nós" e menos eu".
A fotografia envolve o apartamento do casal com uma luz fria. Reforça a vivência de uma rotina sem tempo de diversão. Madrugada é hora de levantar, de acompanhar notícias sobre as bolsas de valores, os informes econômicos. Uma ótima representação do nosso "piloto automático".
Mulheres no poder
No dia seguinte, os dois seguem para o trabalho em condições diferentes. Ela, a chefe direta. Ele, o subordinado que precisa acatar ordens da própria namorada.
É sobre essa nova etapa da vida do casal, que a história se desenvolve de forma soberbamente malévola. Afinal, pelas reações dos amantes, não é difícil prever que os embates não terão tanto "flair play" assim. O jogo não será justo.
Dizem que quando o dinheiro some, o amor foge pela porta da frente. Nunca falamos, no entanto, o que acontece quando um homem moldado pela competitividade reage quando sua companheira assume um papel de poder, ganhando o dobro e assumindo a chefia diante da maioria dos homens da firma.
Não demora nada para Emily começar a ouvir observações cortantes sobre dinheiro, gênero e poder. Luke tenta minar a auto-estima da sua amada de todas as formas. Insinua que sua aparência não está adequada ao cargo, que ela não se impõe o suficiente, que suas decisões são arriscadas e sua competência na verdade não passa de palpites de sorte. Mais rachaduras!.
Fio condutor
Nesse ponto, conseguimos perceber como a direção de Domont (o roteiro também é dela) pretende desenrolar seu fio condutor. A desconstrução da relação não se dá de forma violenta, brusca. Pelo contrário, há sutilezas que envenenam aos poucos. A quebra de confiança, de respeito vai minando o amor aos poucos como um câncer que maltrata devagar enquanto prenuncia o fim.
Tudo isso funciona porque os atores levaram seus personagens ao limite, conferindo veracidade às cenas mais marcantes, seja no erotismo, no confronto, no amor e no ódio. Phoebe Dynevor e Alden Ehrenreich nos fazem sentir a dor, o ressentimento, a raiva e o desespero de ver tudo desmoronando diante da família e dos colegas de trabalho.
Quando começa a ser frontalmente cusada injustamente, Emily até revida verbalmente, mas acaba esmagada pelo fantasma da culpa. Ao mesmo tempo, tenta abrir espaço para que o noivo também consiga um cargo de destaque. Delega a ele análises que podem resultar em lucros astronômicos. Uma vitrine para mostrar sua competência.
A proposta de "vamos crescer juntos" é vista por Luke como uma ofensa, um favor que anularia sua conquista pessoal. Revoltado e certo de que sabe mais, Luke resolve agir por conta própria, ignorando as determinações de Emily.
Faces da traição
A "traição" do namorado, leva a jovem a encarar a discriminação e o assédio moral. É chamada de "vadia" e "burra" diante dos colegas (todos homens). Eles, claro, se divertem sorrateiramente. A humilhação é repetida em voz alta para que Emily entenda bem o quanto vale alguém de seu gênero.
O filme que tem título o original de "Fair Play", quase um deboche diante da história propõe uma jornada de desconstrução que tem conexão direta com o realidade. À medida que as feridas verbais se transformam em hematomas literais, a ação ganha ritmo e se torna frenética, até que o confronto chegue ao ponto crítico.
A trama de estreia de Chloé Domont é do tipo que faz barulho. E que bom. A discussão proposta através da arte acerta em tudo. O final não poderia ser mais claro e emocionante. Vale conferir.