Filme ‘Eduardo e Mônica’ amplia 'Renatoverso' nos cinemas com adaptação sóbria
Alice Braga e Gabriel Leone falam ao Diário do Nordeste sobre novas nuances do casal que embalou a fantasia de gerações
“Quem um dia irá dizer que não existe, razão, nas coisas feitas pelo coração...”. Com ares de trovador medieval, Renato Russo (1960-1996) canta o testemunho de uma improvável história de amor acontecida em Brasília.
Composta anteriormente à Legião Urbana, a canção lançada no disco “Dois” (1986) tomou lugar cativo entre os fãs do grupo. Mesmo com os mais de quatro minutos de duração, tempo considerado longo para os padrões do rádio, fez história pelas FMs do Brasil. “Eduardo e Mônica” agora é filme e chega aos cinemas em 20 de janeiro.
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Alice Braga (“O Esquadrão Suicida”) e Gabriel Leone (“Minha Fama de Mau”) dão vida aos protagonistas. René Sampaio dirige a produção. Um detahe chama atenção. É dele também a versão para o cinema de “Faroeste Caboclo” (2013). Assistimos o filme, conversamos com elenco e será que estamos diante de um “Renatoverso” nos cinemas?
Essa possibilidade diverte os dois atores. Fã assumido da banda, Leone descreve que as características criativas do compositor podem ter a chave dessa resposta. "Renato tinha algumas músicas meio Bob Dylan, de contar histórias e elas sempre se ambientam em Brasília que era o universo dele. ‘Faroeste...’ e ‘Eduardo...’ foram escritas antes mesmo da Legião existir, inclusive. Era ele moleque vivendo em Brasília. É absolutamente possível esse 'Renatoverso'", brinca o ator.
Alice Braga explica que recriar Mônica foi um processo de contribuição entre roteiro, set e direção. "É uma mulher que é várias coisas em uma. Sou um pouco assim também. Ela tem força, ela é feminista, briga pelo que acredita. Mas, é amorosa, verdadeira. Gosta de viver, viajar, rodar o mundo. Tem umas coisas que seria bonito fazer essa personagem numa década tão difícil como foram os anos 1980. Acabando de sair da Ditadura, tem coisas muito interessantes ali para interpretar", conta.
Ainda sobre a construção dos personagens, Leone aponta que a música, por mais elementos visuais que tenha e esteja no imaginário popular, precisava ser pensada enquanto uma obra cinematográfica. Diferente disso, seria mais um videoclipe do que um filme.
“Acho que essa era nosso grande objetivo. Transpor a essência da música para um roteiro de longa-metragem de quase duas horas. É claro que a música está muito presente, tanto enquanto essência e alma, como referências a situações e diferenças entre os dois. Expandimos o universo da música, mesmo personagens que são citados, até personagens que precisaram ser trazidos, construídos e criados no roteiro para que o filme tivesse coerência e fosse um bom filme", descreve.
Esperança
Ao trazer uma história escrita há mais de 40 anos, o filme encara a oportunidade de atualizar a mensagem original. Alice explica que a esperança é uma linha condutora da trama.
O amor salva. O amor inspira. Eu realmente espero que as pessoas se emocionem, pois o filme fala de diferenças e encontro. Estamos num momento muito triste de um governo que incita a diferenças, a raiva, o ódio e que incita a morte. Temos que lutar com todas as forças contra isso. E a arte, é por isso que ele quer tanto destruir a arte. Arte dá esperança, dá amor e inspiração. Temos que cada vez mais ver a arte e acreditar no amor"
Para Leone, o filme ilmunina duas pessoas diferentes e que descobrem a se respeitar. "Aprendem um com o outro. Inclusive a se abrir às diferenças, aprender com isso e evoluir. É muito bonito, ampliando isso para uma comunidade, uma sociedade como a que vivemos isso é fundamental.
As filmagens do longa começaram em 2018. A pandemia da Covid-19 adiou a estreia da produção. Mesmo com a realidade do streaming, os realizadores optaram por aguardar o tempo certo e lançar o longa nos cinemas. Alice revela esperar há anos que as pessoas vejam o filme.
"Fazia tempo que não filmava no Brasil. Foi bom fazer esse projeto. Me reencontrar com o cinema brasileiro. Poder trabalhar com Gabriel que admiro, foi muito especial. E lançar um filme hoje no Brasil é um ato de resistência. Tem esse prazer de “Poxa, vamos lançar!”. Vamos mostrar para o público o nosso cinema, a nossa equipe e o nosso talento. Tem isso também", descreve.
Baseado em um sucesso do rock brasileiro, o trabalho de René Sampaio investe em trilhas não só da Legião Urbana, mas de referências sonoras da década onde a história acontece. Os atores dividem a relação pessoal com a música de Renato Russo.
A relação de Leone veio por conta dos pais e se afirma como um "legionário", como os fãs do grupo de Brasília gostam de falar."É minha banda de rock favorita. Renato é um dos caras que mais me emociona. Foi uma honra contar uma história que vem a partir de uma música deles", conclui Gabriel Leone.
"Eu sempre gostei do Renato como poeta. Suas letras têm uma potência, uma força. Tem certas músicas que eu escutava muito, especificamente para fazer a Mônica. Que é sobre a angústia que bate sobre o próprio País. Renato transbordava as emoções de uma forma muito linda. Sempre admirei ele nesse lugar. Não era legionária como o Gabi, mas aprendi muito com ele e fazer esse projeto foi uma delícia, pois é celebrar esse poeta que escreveu tantas coisas fortes sobre o Brasil. Difíceis algumas vezes, mas muito verdadeiras e bonitas", finaliza Alice Braga.
Crítica
Em essência, a mensagem original da música continua intacta. O amor nem sempre é uma ciência exata e os diferentes podem se completar. Se Romeu e Julieta tinham a barreira do ódio entre as famílias, o casal Eduardo e Mônica enfrentava o dilema de estarem em ritmos de vida diferentes.
Renato Russo é hábil em enumerar as contradições dos pombinhos. Relata os dois cotidianos em paralelo e demarca os hábitos culturais e sociais de cada um. Pode parecer uma riqueza de detalhes para uma música de rock, mas ficou a curiosidade de saber como isso funcionaria em um filme de quase duas horas.
A partir do roteiro escrito por Matheus Souza, o diretor René Sampaio decide inserir novos elementos à história original. As liberdades e escolhas que fogem ou ampliam a narrativa podem causar certo estranhamento em quem cresceu ouvindo e imaginando aquele história. No entanto, falamos de cinema. E como adaptação existe a liberdade do diretor, roteirista e elenco em criarem suas visões pessoais.
Nome de peso do cinema brasileiro, Otávio Augusto interpreta “Bira”, o Avô com quem Eduardo jogava futebol de botão. Victor Lamoglia é “Inácio”, citado na canção como o “carinha do cursinho”. Porém, a Mônica é quem ganha a maior intervenção e o filme chega a criar uma origem desta personagem.
Nessa visão reescrita para as telonas, sabemos a explicação de como ela era tão cheia de referências culturais e da escolha por fazer medicina. Esse subcontexto em família poderia quebrar muito do mistério que a Mônica original carrega na música. Diante do desafio, Alice Braga se destaca ao construir uma protagonista angustiada e repleta de conflitos.
Perspectiva mais contemplativa
Munidos da imaginação, construímos filmes particulares em nossas cabeças. Quem conhece a cria de Renato certamente possui uma versão sua. Com isso, "Eduardo e Mônica" passa certa impressão de que poderia ter explorado mais algumas passagens da letra. Cito dois exemplos que são o momento em que “um dia se encontraram sem querer” ou a tal “barra mais pesada que tiveram”.
Em outra perspectiva, René Sampaio entrega contornos plausíveis de como aquele casal conseguiu construir uma história juntos. Sua leitura é de que foi a sensibilidade quem uniu aqueles dois. Muito desse amor passou pela escuta, por entender e reconhecer o lugar de cada um.
Mesmo imaturo, Eduardo mostrou ser um cara tranquilo na primeira noite que eles tiveram. Já Mônica entendeu que é possível reaprender e adentrar um outro mundo fora da sua bolha.
O trabalho investe num tom contemplativo e por vezes sisudo para uma comédia romântica. Mas, nada que interfira no resultado.
Outro destaque fica para a trilha sonora que é um forte elemento de construção da narrativa.
A adaptação do sucesso da Legião Urbana reconta a possibilidade do amor entre lados antagônicos. A conclusão nos aponta ser impossível querer domar os caminhos do coração. Opostos podem se atrair e se completarem, mas "Eduardo e Mônica" reflete que essa união dependerá de uma contínua busca de sabedoria por ambos.